terça-feira, setembro 28, 2004

segunda-feira, setembro 27, 2004

Aplastamiento de las gotas

Yo no sé, mira, es terrible cómo llueve. Llueve todo el tiempo, afuera tupido y gris, aquí contra el balcón con goterones cuajados y duros, que hacen plaf y se aplastan como bofetadas uno detrás de otro, qué hastío. Ahora aparece una gotita en lo alto del marco de la ventana; se queda temblequeando contra el cielo que la triza en mil brillos apagados, va creciendo y se tambalea, ya va a caer y no se cae, todavía no se cae. Está prendida con todas las uñas, no quiere caerse y se la ve que se agarra con los dientes, mientras le crece la barriga; ya es una gotaza que cuelga majestuosa, y de pronto zup, ahí va, plaf, deshecha, nada, una viscosidad en el mármol.

Pero las hay que se suicidan y se entregan enseguida, brotan en el marco y ahí mismo se tiran; me parece ver la vibración del salto, sus piernitas desprendiéndose y el grito que las emborracha en esa nada del caer y aniquilarse. Tristes gotas, redondas inocentes gotas. Adiós gotas. Adiós.

[Julio Cortázar, in Histórias de Cronópios e de Famas]

terça-feira, setembro 21, 2004

Difícil

É difícil mesmo, espero que você saiba. Dizendo assim parece conversa de taxista, a coisa está feia, preta, hoje chove, esse prefeito de merda. E é justamente dentro de um táxi, as gotas correndo histericamente pelo vidro, o mundo entortado, que vou pensando em quanto, no quão difícil é.

No começo tudo parece simples. Afinal, eu, senhora dos meus caminhos, estou firmemente plantada no solo com os meus ferimentos e as janelas fechadas, todos os meus sábios conselhos aos que são mais puros do que eu, dama altiva, envenenando esperanças, apagando-as como se apaga um cigarro em um cinzeiro de bar – sem cerimônia, sem educação, sem melindres. Eu, onde o começo e o fim de tudo parece ser algo delimitado, visível, concreto e sobretudo provável. Eu, que olho de um lado a outro e permito emocionar-me apenas porque sei que sou capaz, pobre diaba, de não emocionar-me seriamente com mais nada. Eu, brincando e jogando e perdendo, virando livros de capa a capa sabendo de antemão o que contêm, averiguando com completa descrença cada vislumbre de poço, depois dando de ombros porque já sei, já sei o que encontrar. E o que não encontrarei jamais.

Agora a chuva engrossa. Não há nada nítido do lado de fora do táxi. O motorista não é de conversa. Permaneço imersa naquele cheiro próprio de todos os táxis de todos os mundos. Encosto a cabeça na janela, que é o melhor jeito de pensar, mas você sabe (ou deveria saber): é difícil, mesmo assim. Porque tenho um pouco de pitonisa e por isso sei que quando estiver diante de você direi “decifra-me ou te devoro” e você temerá decifrar-me, preferindo antes me devorar com sofreguidão, daquele seu jeito doido que se esconde sob um manto roxo e blasé. A cada instante mínimo tentarei vomitar setecentas e doze palavras, todas elas querendo dizer, querendo ser a mesma coisa, irmanadas no destino de morrer na enseada de uma boca trêmula e morna.

Essa chuva que não pára. Essa maldita corrente de ex-suicida que carrego por onde quer que vá e que não me permite gozar da beleza das palavras fáceis. Porque, como já disse, é tudo muito difícil. O nó aumenta, o pescoço apertado como o de uma galinha a caminho da panela, aquela coisa que chamo de “coisa” só para ver se fica menos horrível, mas que na verdade tem nome próprio e é bastante feio, ou quem sabe lindo, nos limites do miraculoso, do epifânico, não sei, não sei, olhe que chuva e que difícil é estar aqui falando para o nada dentro da minha cabeça, negando com força, reagindo às artimanhas do pulso e do verbo.

Vem para mim o Cortázar, olhe, é terrível como chove, vem para mim porque por dentro dessa moça que chamo de Eu também está uma chuva que nem gosto de pensar. O chiado das rodas no asfalto encharcado vai me embalando, me vem um sono e um pavor de não mais acordar, curioso, me vem junto um medo de não mais ver seu rosto. Um chamado tímido: vem, vem para mim, você, por favor me beije agora.

Como é difícil. Está bem aqui, na enseada da boca. Enquanto você aproveita sua tranqüilidade, seu conforto interno, suas certezas todas, eu estou do outro lado da cidade, afundada em um táxi, sofrendo a maior das angústias, que é deparar-se com a dificuldade intrínseca das coisas absurdamente simples. As pessoas que moram nos hospícios usam camisa-de-força porque não suportam, precisam expandir-se para todos os lados, e ninguém as compreende tão bem quanto eu, nesse justo momento em que passo a aceitar a dor da impotência como algo natural.

O taxista liga o rádio. Por certo, incomodado com o meu silêncio. Rezo para que não seja nada assim escandaloso, nada daquelas canções populares que eu e você detestamos, nada que seja vulgar e macule o meu instante. Por sorte, a única estação que está pegando nessa chuvarada toda é erudita. Parece, você sabe, uma coisa de destino: é um tango. Quase saio de dentro das minhas roupas, quase quero cantar e gritar, mas em contrapartida a toda essa excitação um soluço seco agoniza em minha garganta. Tenho sede e um pouco de fome, mas sei que isso tudo não passa de um aviso e um pedido de socorro.

Sinto meus olhos ardendo em lágrimas e realmente não consigo enxergar a rua. A chuva é muito forte e a morte na enseada da boca é metálica como um bom tango. Astor Piazolla. Que hora! Coisa de destino. Tão difícil que subitamente parece fácil, plano, limpo, uma vereda aberta para que eu possa me derramar toda sobre você, com todas as letras. Mas... Você entende? Acho que sua carne é feita de rosas azuis, porque te vejo como algo tão absurdo e raro que nem posso pensar em tocá-lo sem acreditar estar violando uma estátua santa. Vê só? Essas coisas eu sei dizer. Você me chamaria de literata, poeta ou algo assim, mas eu responderia que não sou de nada, merda nenhuma, porque o mais fácil não sei dizer.

É melhor parar com isso. Estou chegando. Estou arrepiada. Tão nervosa que nem sei como vou olhar nos seus olhos e manter a calma, a civilidade. Outro tango. Quero dançar, quero esquecer que tenho coisas aqui morrendo dentro de mim, frutas que crescem rápido demais e que, por um capricho além da minha compreensão, apodrecem antes de amadurecer, o que é uma subversão vital. Nesse instante problemático, em que tenho que tirar dinheiro da carteira, dizer boa-noite ao taxista, descer do carro com minha bolsa e minha garrafa de vinho, abrir um guarda-chuva rosa e saltar definitivamente para a vida... Chega de pensar. Prometo: não vou apodrecer. Mas por favor, dê-me tempo, enquanto lutarei para manter-me fresca como a primeira flor que você colheu em meus jardins.


[Marpessa, 02/2004]
Travesseiro de flocos

Tenho a mais clara certeza de que ninguém jamais vai entender a maneira como nós conversamos todas as noites. Quando apoio minha cabeça no travesseiro e vamos conversando daquele jeito mental e suave, percebo que não há mesmo como explicar com as palavras do nosso idioma, e que não adiantaria pegar emprestadas as palavras de outra língua, viva ou morta, para executar tal tarefa.

Em nossas conversas parecemos crianças cheias de idéias. Vadiamos pelos vazios imaginativos que moram em nossas cabeças, flutuando imaculados por outras esferas, por círculos inefáveis, enrodilhados em sonhos alados. Um de nós pergunta e o outro responde; se a resposta não nos agrada, voltamos atrás e começamos de novo, e formulamos nova pergunta para engendrar novíssima resposta, desta vez mais adequada e sonora. O mundo então adquire aquela consistência de algodão doce, e logo estamos em um parque de diversões de filme americano, procurando pelo trem fantasma e torcendo para que a nossa conversa continue cor-de-rosa: você me compra um balão de gás e uma maçã do amor; eu te sorrio de volta com a boca melada de doce.

Quando vamos assim conversando, dessa maneira que é só nossa, não existe pensamento particular. Tudo é nós, querido, tudo é nós nos lençóis limpos, deitados que estamos, um observando a profundidade do rosto do outro e nos perdendo em tonturas estranhas, para depois traçarmos um caminho que nos traga de volta pela escuridão do quarto. Em nosso diálogo, estamos de mãos juntas. Se interrompermos a conversa, ouviremos somente o ruído dos flocos do travesseiro.

O ruído dos flocos do travesseiro, quase sempre, não me deixa dormir. Difícil ignorar. Por isso converso com você, e quando estamos conversando, imersos, não existe floco no mundo que seja capaz de interromper o fluxo da nossa conversa. Com os olhos abertos e cheios de escuro, aprecio sua coleção de gestos e sorrisos. Graças a este mesmo escuro, posso farejar seu cheiro escondido em alguma curva insuspeitada, como aquela formada pela nuca quando o seu pescoço gira quarenta e cinco graus à direita. Um perfeito lírio amarelo.

Enquanto conversamos, você sabe, gosto de enrolar algumas mechas dos seus cabelos nos meus dedos, porque eles têm uma cor inédita para mim. Tento inventar um nome adequado a essa cor; vou ouvindo você me contar sobre a sua vida antes de mim como quem ouve uma repousante e confiável canção de ninar. Fico louca porque não consigo chegar a uma conclusão; passo a chamá-lo de Gilbert e você fica bravo porque não sabe quem é Gilbert. Eu rio e mastigo as mechas. Então você pára de falar para desenroscar meus dentes dos seus cabelos.

Somos muito nostálgicos. Nos perdemos em recordações. Isso não parece estranho? Mal temos uma história. Caso nos perguntem, que diremos? Jogamos com palavras para que a existência nos seja leve, mas estamos sempre a um passo de quebrar um copo. Tomamos cuidado. Para nossa sorte, sempre podemos voltar atrás e apagar o erro, como se jamais tivesse existido.

Noutras vezes não saímos da cama. Curioso é que sempre estou deitada à sua esquerda, observando você meio sentado e meio coberto, as pernas movendo-se sob o tecido e criando elevações pontiagudas nos joelhos e nos pés. Acho interessante porque, ao mesmo tempo em que você fala sobre coisas aparentemente banais, move-se feito uma espécie qualquer de peixe raro. Deve ser somente minha imaginação. Ouço-o passar para as confissões; tudo soa tão natural quanto o rio chegando ao mar, sem sobressalto, as águas se misturando nesse ritmo de enguia que usamos tão bem para nos comunicarmos. É bom. Quase sempre reluto em mergulhar no esperado silêncio que nos ronda e nos chama todo o tempo. Mas é impossível resistir e logo sou apanhada em sua rede infalível. Nessa hora não ouço os flocos, porque ficam quietos, abafados por sons que se impõem com calculada intensidade.

Feito os sons do oceano.

Movo-me de um lado a outro da cama, mas prefiro ficar de costas para a parede. Surge diante dos meus olhos fechados uma série complexa de pontos coloridos, pequenos, que bruxuleiam ao ritmo dos ruídos feitos pelos flocos do meu travesseiro.

Eu aqui e você, amor, longe. Assim conversamos todas as noites.

[Marpessa, 02/2004]
O último dia

Cloto, Láquesis e Átropos conversavam, como antiqüíssimas comadres. Estavam sentadas à beira de um rochedo, para o qual se abria o Grande Mar. O mundo parara. As vagas não rugiam, tampouco os pássaros voavam por sobre as águas adormecidas. Nem homens, nem quaisquer seres viventes, viviam. Isso porque Cloto, Láquesis e Átropos haviam perdido seus instrumentos de trabalho.

Impensável! As Moiras perderam seus instrumentos de trabalho. A linha, a tesoura, a roca de fiar. Como puderam deixar acontecer? Uma tragédia. Estariam velhas demais para o ofício? Não houve resposta dos deuses aos apelos enfurecidos das artesãs do Destino. Não mais decidiam. Que força misteriosa teria sido esta que levara o material que constrói a vida e a morte? Rogaram ao Olimpo, e parecia-lhes que ouviam risos, risos enormes vindos do alto, dos céus distantes.

De súbito, caiu-lhes quase sobre as hediondas cabeças uma salamandra de pedra. Era negra e polida, feita de um mineral famoso por ser o mais escuro – a Pedra da Eterna Sombra. Entreolharam-se, as Moiras. O brilho da Pedra da Eterna Sombra permitia ver o que se passava do outro lado da lua. Permitia ver o que os deuses faziam. Bastava para isso olhar para dentro do corpo da salamandra, cujo interior é oco.

As damas olharam, então. E viram seus preciosos instrumentos de trabalho deslizando por um túnel que terminava em luz. Linha, tesoura e roca de fiar: mergulharam na luz e foram subindo, subindo, subindo cada vez mais e mais depressa. As Moiras desviaram os feios olhos; os instrumentos estavam sendo carregados por Clio envolta em ouro, as mãos manchadas de sangue imemorial. Uma das mãos suspendia os instrumentos; a outra acenava muitos adeuses. Clio elevou-se, dando o braço a Zeus, ambos finalmente em paz.

Cloto, Láquesis e Átropos atiraram longe a salamandra. Voltaram-se para o mar. Um profundo enigma a ser decifrado. A única explicação que obtiveram, do fundo de suas existências imortais, era de que o mundo estava acabando.


[Marpessa]
Roxo

Atirada a um canto frio e solitário está Virginia, a comer baratas como se castanhas fossem. A bela e louca Virginia veste branco, mas pensa que é o encantador vestido roxo com o qual estava naquela noite fugitiva, de triste lembrança. Tléc!, mais uma pequena barata é estourada entre os incisivos podres de Virginia, a bela e alheada Virginia que gostava de orquídeas e de uvas, antes de voltar-se inteiramente para os insetos. Por uma abertura mínima em sua cela Virginia vê e sente o final do sol. As luzes são alaranjadas, mesmo Virginia as compreendendo roxas. O vento das seis horas sopra junto com o sol e arrepia a pele de Virginia. Por todo o corpo, que não traz aos olhos mais que um laivo dos antigos encantos, esparramam-se impiedosas marcas – Virginia belisca-se o tempo todo. Ela ama a roxidão dos edemas. Tléc!, entre os dentes feios. Usa também a língua para sentir o mundo e seus sabores. Como sempre sorri, Virginia usa batom roxo, de modo que para ela tudo é desta enigmática tonalidade. Incluindo a morte, os fetos, o quadro da Pediatria.

[Marpessa]
Acorrentada

Eu tenho uma boneca bem pequenininha. Ela veste bordô, tem olhos azuis de plástico, duas minúsculas esferas. Bochechas redondas, nariz pontudinho e arrebitado. Devo dizer que a minha boneca tem menos de dez centímetros de altura e é recheada de bolinhas. Lembro-me que, muito antigamente, ela trazia no pescoço uma echarpe laranja, tudo muito pequeno e bom. A boquinha entreaberta confere um ar de bebê, e ela é um bebê. Apesar de ter quase trinta anos. Jamais vi um bebê verdadeiro tão belo quanto a minha bonequinha bordô. Eu a amo com a mesma intensidade do dia em que a ganhei, e lá se vão anos de infância, quintais, gatos e bolhas de sabão à luz do entardecer.

Pois então: estou seriamente desconfiada de que a boneca não quer ir embora. De lá para cá, desde aquele tempo escondido em décadas passadas, andei por aí, de casa em casa, de rua em rua, de cidade em cidade. Vi minhas coisas sendo encaixotadas; logo também eu mesma encaixotei minhas coisas. Perdi muito nesses anos: objetos que me eram caros, lugares especiais, meus anos de flor em botão. Mas nunca, nunca a minha bonequinha bordô. E como isso é possível? Uma boneca tão pequena e fácil de sumir! Não sumiu. Quando eu a beijava, nos anos de flor em botão, quem pensaria? A boneca venceu. Venceu o tempo, o espaço, o esquecimento, a própria morte. Bonecas não morrem; essa, em especial, recusa-se. Diz: ela é minha, e não eu dela. O que, convenhamos, só pode ser verdade. Jamais brigamos. Eu a amo.

E que surpresa agora! É o que mais amo nessa vida. Sem a minha bonequinha, não vivo. Se a perder, acabo-me. Mas sei que ela não me deixará partir sem carregá-la. Quando eu me for, alguém terá a decência de depositá-la em minha bagagem. Assim espero.

(Ai! Que já não posso com minhas lágrimas!)

[Marpessa]
Nota inacabada de Morelli

Jamais poderei renunciar ao sentimento de que aí, encostado à minha cara, entrelaçado nos meus dedos, existe algo como uma deslumbrante explosão em direção à luz, uma irrupção de mim para o outro e do outro em mim, algo infinitamente cristalino que poderia coagular e transforma-se em luz total sem tempo nem espaço. Como uma porta de opala e diamante a partir da qual se começa a ser aquilo que se é verdadeiramente e que não se quer e que não se sabe e que não se pode ser.

Nenhuma novidade nessa sede e nessa suspeita, mas sim um desconcerto cada vez maior frente aos ersatz que me oferece esta inteligência do dia e da noite, esse arquivo de dados e de recordações, estas paixões onde vou deixando pedaços de tempo e de pele, estes indícios tão debaixo e longe daquele outro indício aí do lado, junto do meu rosto, previsão já misturada com a visão, denúncia daquela liberdade fingida com que me movo pelas ruas e pelos anos.

Dado que sou apenas este corpo, já podre num ponto qualquer do tempo futuro, estes ossos que escrevem anacronicamente, sinto que este corpo está se reclamando, reclamando à sua própria consciência aquela operação ainda inconcebível por meio da qual deixaria de ser podridão. Este corpo que sou eu tem a presciência de um estado em que, ao negar-se a si mesmo como tal, e ao negar simultaneamente o correlato objetivo como tal, sua consciência teria acesso a um estado fora do corpo e fora do mundo, que seria o verdadeiro acesso ao ser. O meu corpo será, não o meu Morelli, não eu, que em mil novecentos em cinqüenta já estou podre em mil novecentos e oitenta, o meu corpo será porque detrás da porta de luz (como designar esta insistente certeza encostada ao meu rosto?) o ser será outra coisa que não corpos e, que não corpos e almas e, que não eu e o outro, que não ontem e amanhã. Tudo depende de... (uma frase riscada).

Final melancólico: um satori é instantâneo e soluciona tudo. Mas, para chegar a ele, seria necessário recuar na história de fora e de dentro. Trop tard pour moi. Crever en italien, voire en occidental, c’est tout ce qui me reste. Mon petit café-crème le matin, si agréable...

[Julio Cortázar, O Jogo da Amarelinha, cap. 63]

sexta-feira, setembro 17, 2004

Veludo enlutado
Velado enluvado

Enluvas
Meu luto,

Veludosa luva.

Eu
Enlutualuva
Vermelha.

[Marpessa (sei lá o que é isso)]

Em geral, essa sensação de estar só no mundo aparece mesclada a um orgulhoso sentimento de superioridade: desprezo os homens, acho que são sujos, feios, incapazes, ávidos, grosseiros, mesquinhos; minha solidão não me assusta, é quase olímpica.

Mas naquele momento, como em outros semelhantes, encontrava-me só em conseqüência de meus piores atributos, de minhas baixas ações. Nesses casos sinto que o mundo é desprezível, mas compreendo que eu também faço parte dele; deixo-me afagar pela tentação do suicídio, me embriago, procuro as prostitutas. E sinto certa satisfação em provar minha própria baixeza e em verificar que não sou melhor do que os sujos monstros que me rodeiam.
(...)

A vida aparece à luz desse raciocínio como um longo pesadelo, do qual, no entanto, cada um pode libertar-se com a morte, que seria, assim, uma espécie de despertar. Mas despertar para quê? Essa irresolução de lançar-me ao nada absoluto e eterno foi o que me deteve em todos os meus projetos de suicídio. Apesar de tudo, o homem é tão apegado ao que existe que acaba preferindo suportar sua imperfeição e a dor que causa sua fealdade, a aniquilar a fantasmagoria com um ato de vontade própria (...).

[Ernesto Sábato]
E se eu calasse trairia, porque o baralho está aí, como a boneca em teu armário ou a marca de meu corpo em tua cama, e eu tornarei a pôr as cartas à minha maneira, uma e outra vez até me convencer de uma repetição inapelável ou te encontrar finalmente como te quisera encontrar na cidade ou na zona (teus olhos abertos naquela quarto da cidade, teus olhos enormemente abertos sem me olhar); e calar então seria infame, tu e eu sabemos demais de alguma coisa que não é nós e joga essas cartas em que somos espadas ou copas mas não as mãos que as misturam e as armam, jogo vertiginoso de que só chegamos a conhecer a sorte que se trama e destrama a cada lance, a figura que nos precede e nos segue, a sequência com que a mão nos propõe ao adversário, a batalha de acasos excludentes que decide as posições e as renúncias. Perdoa-me essa linguagem, a única possível.

[Julio Cortázar, 62 Modelo Para Armar]

quinta-feira, setembro 16, 2004

Pois logo a mim, tão cheia de garras e sonhos, coubera arrancar de seu coração a flecha farpada. De chofre explicava-se para que eu nascera com mão dura, e para que eu nascera sem nojo da dor. Para que te servem essas unhas longas? Para te arranhar de morte e para arrancar os teus espinhos mortais, responde o lobo do homem. Para que te serve essa cruel boca de fome? Para te morder e para soprar a fim de que eu não te doa demais, meu amor, já que tenho que te doer, eu sou o lobo inevitável pois a vida me foi dada. Para que te servem essas mãos que ardem e prendem? Para ficarmos de mãos dadas, pois preciso tanto, tanto, tanto - uivaram os lobos e olharam intimidados as próprias garras antes de se aconchegarem um no outro para amar e dormir.

[Clarice Lispector, trecho do conto Os desastres de Sofia, in Felicidade Clandestina]
Grifo escapa e provoca pânico em São Paulo

Da Redação – Na tarde de ontem, o Corpo de Bombeiros foi chamado para atender a uma ocorrência incomum: capturar um grifo que se acomodara no alto de um edifício, localizado na rua 21 de Setembro. O animal, metade águia e metade leão, fugira de seu dono, João Silva, que o levava preso a uma corrente. Segundo relatos de transeuntes, o grifo libertou-se e correu, afugentando diversas pessoas e derrubando algumas bancas de camelôs. Logo em seguida alçou vôo, emitindo um som alto e agudo.

Após várias tentativas, a equipe de dez bombeiros conseguiu lançar uma rede sobre o animal e imobilizá-lo. Em seguida, foram disparados dardos contendo tranqüilizante, o que fez o grifo, de mais de 2 metros de comprimento, adormecer profundamente. O animal foi levado ao Zoológico Especial de São Paulo, onde se encontram outras criaturas míticas.

Silva disse à Polícia que o grifo é manso, foi domesticado e alimenta-se exclusivamente de vegetais. Ele diz ter aprisionado o animal em janeiro de 2002, quando o encontrou pousado na plantação de abóboras de seu sítio, na cidade de Águas Compridas (interior de São Paulo). O animal foi mantido no sítio por 15 dias e depois trazido à capital, sendo mantido desde então no quintal da casa de Silva, na Vila dos Heliotrópios. A polícia afirmou que José Silva será indiciado por crime ambiental (manter criatura mítica em cativeiro sem autorização do IBAMA), e poderá cumprir pena de 1 a 3 anos de prisão.

Filhote – O grifo foi examinado pelos biólogos do Zoológico Especial e está em boas condições. Segundo a equipe, o animal é um filhote, com 6 meses de idade e 500 quilos. A metade águia é coberta por penas longas, de um vermelho vivo, e a metade leão é de pelagem castanha e curta. Os especialistas afirmam que o grifo provavelmente estava à procura de comida, e por isso aproximou-se de uma região habitada. “Eles vivem no alto das montanhas e somente descem se não encontram outro meio de garantir a sobrevivência”, explicou Joaquim dos Santos, biólogo-chefe do Zoológico. Segundo ele, tais ocorrências tornaram-se relativamente comuns nos últimos quinze anos, devido ao desequilíbrio ecológico nas regiões montanhosas. “Este grifo, com certeza, veio da Serra das Cordas”, acredita. A cidade de Águas Compridas localiza-se a 30 quilômetros do ponto mais alto da serra.

O Zoológico Especial abriga hoje mais de cem animais míticos, muitos dos quais descobertos em poder de contrabandistas. Dentre as diversas criaturas está um basilisco de 50 anos, mantido sob rigorosa vigilância. A instituição abriga também um casal de fênix, oito sereias, um filhote de dragão, seis unicórnios (dois deles sem os chifres) e uma hidra de doze cabeças.

Fascínio - Desde muito tempo os seres míticos excitam a curiosidade humana. Centenas de relatos fazem referências a todo tipo de criatura fantástica, incluindo hominídeos (gigantes, pigmeus) e entidades zoomórficas. Hoje, além dos espécimes que vivem em circos e zoológicos especiais em todo o mundo, alguns mais raros vêm sendo encontrados com freqüência. O caso mais notório é do yeti, primata gigante das montanhas do Nepal, já visto por muitas pessoas. Nessie, o monstro do Lago Ness, é outro exemplo famoso, assim como as harpias da Grécia, o minotauro cretense (que, de acordo com relatos recentes, habita um labirinto subterrâneo) e os cinocéfalos da América Central.

No entanto, essa proximidade com seres que até alguns anos eram tidos como imaginários tem gerado uma discussão que promete se estender por muito tempo. José de Souza, presidente do Instituto Anglo-Americano de Paraciências, teme a relação quase íntima que o homem vem estabelecendo com as criaturas míticas. “Vivemos entre monstros de bestiário, essa é a verdade. Os mitos saltam das lendas para a nossa realidade; logo, não haverá mais espaço para a espécie humana”, acredita. Já o cientista Pedro Soares, diretor do departamento de Zoologia Fantástica da USP, prevê vantagens na descoberta e observações in loco destes fenômenos. “As criaturas existem e, por isso, devem ser estudadas e protegidas, não negadas. Aprenderemos muito com isso”.

Dentre os escritores, as opiniões também divergem. K.M. (ele pede para não ser identificado) afirmou que a presença de grifos e de outros seres míticos entre nós acabará com o gênero de literatura fantástica, que com freqüência os “utiliza” como personagem. “Como chamaremos de fantástico o que não é mais fantástico? Se estas criaturas estão sendo aprisionadas e analisadas, deixam de ser incríveis e de alimentar o imaginário dos leitores”, acredita. E faz um apelo: “Deixemos os animais fantásticos em paz, pelo bem da literatura”.

Outro escritor, que pediu total anonimato, discorda: “A imaginação está dentro, e não fora. Os animais do cotidiano, por exemplo, continuam sendo bons temas, bons personagens. O importante é o que se faz com eles, sob qual prisma são vistos, como são apresentados e sob quais circunstâncias vivem dentro da história que se pretende contar”, declarou, acrescentando que o caso da captura do grifo poderá ser um excelente tema literário. “Alguém vai escrever sobre isso, pode apostar”, conclui.


[Marpessa]


[...]
e tanto sofrimento por estar, às vezes sem nem saber, à cata de prazeres. não sei como esperar que eles venham sozinhos. e é tão dramático: basta olhar numa boate à meia-luz os outros: a busca do prazer que não vem sozinho e de si mesmo. a busca do prazer me tem sido água ruim: colo a boca e sinto a bica enferrujada, escorrem dois pingos de água morna: é a água seca. não, antes o sofrimento legítimo que o prazer forçado.

[Clarice Lispector]

quarta-feira, setembro 15, 2004

Como se passa ao lado

As descobertas importantes se fazem em circunstâncias e nos lugares mais insólitos. A maçã de Newton, veja só se não é coisa para a gente ficar espantado. Ocorreu-me, em meio a uma reunião de negócios, pensar sem saber por que em gatos - que não tinham nada a ver com a ordem do dia - e descobrir repentinamente que os gatos são telefones. Bem assim, como sempre com as coisas geniais.

É natural, uma descoberta dessas suscita uma certa surpresa, posto que ninguém está habituado a que os telefones vão e venham e sobretudo que bebam leite e adorem peixes. Custa tempo compreender que se trata de telefones especiais no sentido de que até agora não tínhamos compreendido que os gatos eram telefones e, portanto, não tínhamos pensado em utilizá-los.

Dado que esta negligência remonta à mais alta antiguidade, pouco se pode esperar das comunicações que conseguimos estabelecer a partir da minha descoberta, pois é evidente a falta de um código que nos permita compreender as mensagens, sua procedência e a índole daqueles que no-las enviam. Não se trata, como já se terá percebido, de tirar do gancho um tubo inexistente para discar um número que nada tem a ver com os nossos algarismos, e muito menos compreender o que do outro lado possam estar nos dizendo por algum motivo igualmente confuso. Que o telefone funciona, todo gato o prova com uma honradez mal correspondida por parte dos assinantes bípedes; ninguém negará que seu telefone negro, branco, cinzento ou angorá chega a cada momento com um ar decidido, pára aos pés do assinante e produz uma mensagem que nossa literatura primária e patética translitera burramente em forma de miaus e outros fonemas parecidos. Verbos sedosos, felpudos adjetivos, frases simples como estas mas sempre escorregadias e glicerinadas formam um discurso que em alguns casos se relaciona com a fome, em cuja oportunidade o telefone não é nada mais que um gato, mas muitas vezes expressa-se com absoluta prescindência de sua pessoa, o que prova que um gato é um telefone.

Preguiçosos e pretensiosos, deixamos passar milênios sem responder às chamadas, sem nos interrogar de onde vinham, quem estava do outro lado dessa linha que um rabo trêmulo cansou de nos mostrar em qualquer casa do mundo. De que me serve e os serve essa minha descoberta? Todo gato é um telefone mas todo homem é um pobre homem. Sabe-se lá o que continuam nos dizendo, os caminhos que nos mostram; de minha parte só tenho sido capaz de discar em meu telefone comum o número da universidade para a qual trabalho, e anunciar quase envergonhadamente minha descoberta. Parece inútil mencionar o silêncio de tapioca congelada com que a receberam os sábios que respondem a este tipo de chamadas.


[Julio Cortázar]


terça-feira, setembro 14, 2004

Sleepyhead

O relógio toca.

Não quero levantar.

Toca de novo.

Penso Go to the Hell, horário matinal, quero ficar aqui. Lá fora tem muita gente, muito frio, estou no útero do edredom azul e é aqui mesmo que pretendo permanecer ATÉ que eu me canse ou precise atender a alguma necessidade física.

Só que – eis o problema – o relógio está alheio a tudo. Ele não se importa. É um mecanismo apenas, e se ele tocou, veja só você, é porque foi programado para isso. Naturalmente, por você mesma.

E por isso mesmo ele toca mais uma vez. E eu o desligo mais uma vez. A quem estou enganando, não é mesmo? Ele vai continuar tocando de dez em dez minutos, pelo menos enquanto eu não tomar a providência de desligá-lo definitivamente. Só que este relógio é a força que me faz arrastar o corpo, primeiro os pés, depois as pernas, enfim estou sentada sobre a cama, tonta e perdida, para ficar de pé, cambalear até o chuveiro e começar a viver. Eis o motivo; dependo dele. Sem ele não serei nada mais do que um corpo enterrado sob o edredom. Sem ele não conseguirei tornar-me alguém, começar o dia, dar alguns passos para diante, cumprir minhas obrigações, ganhar meu dinheiro.

Pois bem: está frio do lado de fora do edredom e meus olhos continuam pesadíssimos. Os músculos estão completamente adormecidos, apesar da mente já estar relativamente alerta.

Mais uma vez, o relógio.

Fico imaginando, do fundo do meu travesseiro, o dia idiota que terei. Falar, oh, Deus, falar com tanta gente e decidir tantas coisas para atender aos desejos dos outros, e cumprir tarefas mecânicas que me desanimam, ou tarefas cerebrais que me enlouquecem. Tarefas são tarefas, e existem para serem cumpridas da melhor maneira possível. E eu tenho, eu preciso, eu devo levantar desta cama quente e macia, tenho que sair daqui.

Mas tudo isso que sigo pensando só faz chumbar meu corpo ainda mais. Estou pregada no colchão.

Dispenso a tarefa de viver este dia. Não vale o esforço.

Quase adormeço. Mas o alarme soa novamente. Estou começando a me atrasar. Perco-me em desolação – agora terei de correr para chegar a tempo. Tempo? Eu jamais chego a tempo. Estou sempre e permanentemente atrasada porque não me agrada a idéia de sair da cama. Porque sempre acontece de eu me perder em considerações sobre a necessidade de enfrentar cada dia, naquela mesma hora – porque pelo menos não pode ser mais tarde? Além disso, o corpo não pensa. Ele permanece onde está, enquanto a mente sofre e debate e tenta e empurra e joga e nada consegue.

Luta inglória. Não adianta. A briga é outra. Pobre relógio. Tão útil, tão importante, e agora estou querendo quebrá-lo.


[Marpessa - experimento antigo que era para ser outra coisa e deu nisso aí]

segunda-feira, setembro 13, 2004

Encontraria a Maga? Tantas vezes bastara-me chegar, vindo pela Rue de Seine, ao arco que dá para o Quai de Conti, e mal a luz cinza e esverdeada que flutua sobre o rio me deixava entrever as formas, já sua delgada silhueta se inscrevia no Pont des Arts, por vezes andando de um lado para o outro da ponte, outras vezes imóvel, debruçada sobre o parapeito de ferro, olhando a água. E era muito natural eu atravessar a rua, subir as escadas da ponte, dar mais alguns passos e aproximar-me da Maga, que sorria sempre, sem surpresa, convencida, como eu, de que um encontro casual era o menos casual em nossas vidas e de que as pessoas que marcam encontros exatos são as mesmas que precisas de papel pautado para escrever ou que começam a apertar pela parte de baixo o tubo da pasta de dentes.

[Julio Cortázar, O Jogo da Amarelinha, primeiríssimo parágrafo que na minha opinião define todo o restante do livro]
dentro da poeira espessa que assentou sobre teu corpo enquanto dormias eu me movo, arquiteto essas armadilhas e me surpreendo nas tramas impostas, conluios que fazes contra mim nas grades do sono que não te aprisionam, não vês assim, mas que te protegem de mim, prestímano desse amor, deixas escorrer sobre mim um véu de poucas verdades, enquanto distancias a si mesma de cada gesto ou se deixa levar inquisidora a propósito de um feitiço carnal, cavalgando sonâmbula e maldita no dorso possante desse corpo ficcional que possui a maior e mais gratificante das promessas de não ser eu mesmo, minha saliva tu disseste te inunda a boca como coriza, não te beijo então, assinto, e se antes te identificavas acomodada num vinco perdido no mais secreto da minha mão, agora somente sinto na ponta dos dedos a sutileza dos teus poucos pêlos atiçados e eriçados, traidores maléficos na profundeza de mais um sono em que os venenos são outros, o sexo é grosso, a fricção te arde até as pálpebras e cada veia dilatada te promove novos vagidos de torpeza e rancor, esgares de prazer que se combinam diante da minha frieza espantada, eu espreitando corpo de pessoa alguma, eu sozinho numa distância exata para que me seja possível sentir todo o gosto a sede a saudade intoxicada por essa maldade, sob os meus olhos, entre nós acentuam abismos e encandeiam funduras, vomitando fogo e ódio da mesma boca que me negas reprovativa e desafiadora como a nítida transformação ao perceberes que estás num sonho perdida, enigmática boca granítica ao mais ínfimo sinal da minha aproximação, ou mesmo ainda dentro do sonho minha voz agora pedinte ao teu ouvido mascarando todo o fracasso chorando e te dizendo que amo, como se tu tivesses ainda a flor purpúrea entre as virilhas e o lírio adormecido adornando braços e faces, ordeno infame que nos demos uma chance, a minha voz ameaça, e vejo a tua queda nesse flanco aberto do próprio horror, eu adivinho o futuro, e vendo toda a pobreza do desgaste do tecido inicial transformando-se em estopa suja ensanguentada, ainda assim meu amor, sou incapaz de me desfazer desfeito da linguagem de quando te percebia a longo passo a te negares inicialmente a mim sem que um gesto meu fosse jamais reprovado, eu somente escrevia gritava e lançava, como lanço agora, palavras ao vento, dizendo sempre menos que senteciando acordos e largando feitiços e promessas, largando correntes arrastadas na cabeceira da tua cama, atando punhos e tornozelos, a se confirmarem válidas no trinco ecoante do travo de cadeados indestrutíveis, artífice de uma palavra não mais que magia, negra talvez, tímida prisioneira em andares de poesia, habituei-me ao canto pernóstico como quem se habitua à imagem negra e infiel da completa desestruturação, ruímos, destruímos, decaímos, no entanto beleza irretocável, discurso diariamente ao teu ouvido, te amo como quem quer preservar a beleza da flor no cimo da vida, mesmo se agora somente possuo o granuloso, e por ti nutro essa piedade, trancafiada, te finges liberta e me excluo, sonhas meu anjo, sonhas, não te deixo enfim morrer, para que não desacredites ser capaz de habitar num rutilante negror o amor que o meu canto por ele um dia te encantou.

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alguma coisa diferente assentou quando você não esteve mais
permanência
que funcione te pensar agora espero que te pensando simplesmente se faça possível alguma magia e diálogo entre nós dois
laços sejam feitos
sem que eu possa te comunicar tudo
não te dizendo
afinal palavras são meu pretexto
me livra um pouco ao menos dessa histeria em vaziez, sopesando ilusionista artífice da palavra inquietude e
carinho na asa da tua mão
mas e se você não me escuta? inalterada presença
enquanto você provavelmente dorme, eu converso com você e te peço ajuda
um amparo, escuta
não precisa resposta.

compreende eu estar fracassando sem saber me manter quieto motivado dentro do sopro escuro da noite povoada pela tua introversão muda, certamente, também num sonho guardado. assim como a falta agora reflete o avesso do teu corpo. como se te despindo te despedisse. ausência sentenciando as partes. desejo mata o corpo da gente, sabe? toda as noites tem sido isso? quando é noite me vejo diante do cinza escuro de um leito seco e de uma ponte que não liga margens. no fundo o trinar insistente e vivo de insetos correndo sorrateiros pelas beiradas do sono. madeira podre e ressequida. sozinho amplifico amar. suturo ausências. sou capaz de delinear contorno e espessura dessa oquidão.

você me falta.

[Victor, friend of mine, que me estarrece com seus escritos]


quarta-feira, setembro 08, 2004

A idiota

Amparada pela mãe, a idiota subiu no ônibus. Essa mãe gorda e simplória, morena de doer, dava o braço à idiota. Com dificuldades, subiram, e ao subirem a idiota soltou um gemido e riu, escancarando bem sua boca. Seus dentes eram bastante proeminentes, dando à sua figura um quê assustador. Era humana, a idiota, porém comportava-se como um bicho saído de uma caverna. Olhava para todos os lados e, mesmo sentando-se, não parava de movimentar-se. A mãe conversava em voz alta com passageiros que a conheciam, enquanto a filha tremia e babava a intervalos irregulares. Cheirava mal; um odor azedo, envenenado, de saliva antiga, desprendia-se de suas roupas feias e pobres. A mãe, de vez em quando e sem abandonar a conversação, enxugava a boca da filha com uma fralda amarelada e endurecida de sujeira. Também de quando em quando, a idiota sacudia todo o seu corpo magro em estranhos espasmos, e cada um destes espasmos vinha acompanhado de um jorro brilhante e espesso de baba, como o vômito dos bebês. Então por que sorri, a idiota? Por que sorri, a mãe? O ônibus prosseguiu, e também a vida prosseguiu, uns dentes escancarados agitando-se na janela empoeirada do coletivo.

[Marpessa]
Em um cinema dentro de mim

Então é óbvio que Paco está vivo (de que inútil terrível maneira terei que dizê-lo também para me aproximar, para ganhar um pouco de terreno) enquanto durmo; isso se chama sonhar.
[Julio Cortázar, Aí, mas onde, como, in Octaedro]


Eu faço filmes. Sou diretora, roteirista e atriz. Também dirijo fotografia, edito, cuido do elenco e dos figurinos. É bastante trabalho, mas não tenho do que me queixar. Todas as noites eu os realizo com a minha imaginação e meu talento. Fazer filmes me distrai, embala minha consciência para um apagar suave e lento. Prepara-me para os filmes do sono, aqueles nos quais eu não mando nada, só obedeço as ordens de um diretor invisível e invariavelmente maluco.

Não saberia viver sem fazer os meus filmes. Na maioria dos casos, eles são feitos sem roteiros rígidos, apenas invento uma premissa, um ambiente e os personagens. Não é difícil; a imprevisibilidade relativa que consigo nesse sistema é muito instigante, porque permite uma liberdade que satisfaz completamente os meus desejos. Só que os meus filmes nunca acabam, porque eu me demoro nos meandros, vou e volto, penso e repenso, faço cortes e intercalo adicionais aqui e ali - durante a trama! E por isso meus filmes não chegam a acabar, de verdade. Na noite seguinte estou eu e o meu filme, recriando-o mais uma vez, e sempre sei que não será a última, e nunca sei quando será a última vez em que mexerei no meu filme. Uma bela noite qualquer, eu o abandono e é como se o atirasse ao lixo, porque nem mesmo consigo me recordar de quando deixei-o de lado.

Havia um filme que eu gostava muito. A ação se passava toda em uma casa, que era uma mistura de casas que eu conhecia, como quando a gente lê um livro e imagina o ambiente como algo conhecido, simplesmente não sabemos o porquê da escolha, e muito menos conseguimos mudar o cenário, mesmo que se passem anos entre leitura e releitura. Pois deste filme sobre o qual quero falar, a casa tinha dois quartos e uma sala grande e comprida, muito semelhante a uma casa em que uma determinada tia minha morou por longo tempo. Tudo acontecia sempre à noite, e pela madrugada. Havia música, de vez em quando, mas jamais consegui me decidir quanto à trilha oficial. Uma invariável penumbra resolvia os meus problemas de iluminação – eu usava a luz da rua, que entrava pelas frestas das janelas.

Neste filme habitam dois personagens: eu e Paulo. Na história, dividimos a casa. Somos amigos. Cada um tem seu par romântico, que por vezes, para criar corretamente as situações dramáticas, costumavam aparecer. Na verdade vivemos um amor platônico, que ainda não desabrochou. Não nos cremos enamorados. As pistas são constantemente negadas, mas o espectador vê a tudo: olhares maiores do que o necessário, pausas incertas, silêncios densos e críticos. Eu, por ser mulher, preocupava-me com a tensão anterior a qualquer resolução, desejando (segredos de diretora) que a resolução não chegasse para melhor poder mergulhar no drama que desenhava à força de imaginação e ânsia de amor. De amor, porque na vida real eu o amava.

Os roteiros sofriam bruscas mudanças a cada noite, mas o cerne era a descoberta da paixão. Havia uma discussão, às vezes. E outras vezes o mesmo filme se passava em vários dias e noites, os fatos dos dias se acumulando para engendrar os da noite, das noites em que passávamos absortos em pensamentos, um assistindo ao outro em sua falsa felicidade, um vestindo-se para um encontro, e o outro sofrendo calado por isso. Ou uma noitada de bebida e choro, muitos cigarros acesos nos momentos mais tensos, uma carícia nos cabelos e lágrimas enxugadas com dedos macios. Também era possível provocar, eu seminua caminhando de um canto a outro da casa, porque afinal somos como irmãos, Paulo assistindo a tudo e fingindo não se importar. Ele saindo do banho, toalha enrolada na cintura, penteando os cabelos de costas para mim, eu o observando firme, o torso branco e magro, ele vendo-me observá-lo do espelho e não compreendendo, ou não querendo compreender, mas sentindo um inequívoco prazer em ser observado.

Qual fosse a situação, havia sempre uma crise prestes a explodir. E sua explosão se dava da maneira mais passional e comum: o amor no sofá azul-acinzentado. Só que poucas vezes assisti a este final, porque depois dele não haveria mais nada além do normal dos casais que se unem. Quando alcançava este ponto, corria a imaginar a manhã seguinte cheia de constrangimento, de culpa, bons-dias carregados como nuvens de tempestade. Criava a perspectiva de ter mais uma equação a resolver, aproveitando para enfiar os pares românticos traídos (ignorantes do fato) bem nesse ponto, o que provocaria mais complicações para nós. Em meu filme, o amor não acontece, está por um fio de acontecer, mas não acontece. É uma possibilidade certa, mas os desencontros que eu criava tornavam o caminho sempre mais longo do que seria natural entre duas pessoas que se descobrem dessa maneira, da maneira como eu contava no meu filme.

E então um dia eu soube, tardiamente soube, que ele estava morto. Dia quente, eu acho, e me contaram entre um gole e outro de cerveja, como se não fosse nada, você ficou sabendo, faz tempo, uns dois anos. Após o choque das estrelas, o colapso, a alma rangendo em febres de luto atrasado, a confirmação, só então pude pensar que fazia filmes com um ator que já havia morrido. Deveria considerar a inutilidade destes filmes e não fazê-los mais, só que o hábito, a dor auto-imposta, dor necessária e gostosa de sentir, tudo isso preservou a minha carreira e minha determinação de fazer roteiros com o ator morto. Continuei para senti-lo mais próximo, dava-lhe vida, animava-o de acordo com a minha base de dados a seu respeito, não muita coisa, alguns encontros, umas pouquíssimas visitas.

Fiz um filme maravilhoso baseado em nosso último encontro e alterei o final. Para ser mais Hollywood terminava muito bem, com beijo e promessas, quando na realidade fora apenas um encontro de amigos que há tempos não se viam, encontro a três, devo salientar. Alguma bebida, muita conversa, risos, contentes os três por estarem juntos ali, depois o adeus acenado, ele ficou acenando de longe com aquela expressão de adeus para sempre que nunca me abandonou, e eu sabia, só podia ser o último dos encontros porque ele também sabia, fixei os olhos naqueles olhos dele que ficaram tão estranhos, tanto notei isso que fiz um comentário, “que cara estranha a dele, você viu?”. Este o verdadeiro filme, só que muito europeu, e verdade seja dita, não gostamos de filmes europeus se intrometendo em nossas vidas assim, o tempo todo.


[Marpessa]
Uma veste provavelmente azul

Eu estava ali sem nenhum plano imediato quando vi os dois homenzinhos verdes correndo sobre o tapete. Um deles retirou do bolso um minúsculo lenço e passou-o na testa. Pensei então que o lenço era feito de finíssimos fios e que eles deviam ser hábeis tecelões. Ao mesmo tempo, lembrei também que necessitava de uma longa veste: uma muito longa veste provavelmente azul. Não foi difícil subjugá-los e obrigá-los a tecerem para mim. Trouxeram suas famílias e levaram milênios nesse trabalho. Catástrofes incríveis: emaranhavam-se nos fios, sufocavam no meio do pano, as agulhas os apunhalavam. Inúmeras gerações se sucederam. Nascendo, tecendo e morrendo. Enquanto isso, minha mão direita pousava ameaçadora sobre suas cabeças.

[Caio Fernando Abreu]