segunda-feira, novembro 29, 2004

Toque

Com uma sensibilidade incrível, brincava com coisas perigosas como alterar o centro de gravidade das coisas. Empilhava canetas, inclinava livros na borda da mesa e desenhava desenhos distorcidos com prismas de ponta-cabeça, entre outras possibilidades de composição. Uma das belezas construídas foi um exército de pequenas taças apoiadas pela base, uma mais inclinada que a outra, numa progressão invejável. Cada taça possuía seu uniforme, um diferente do outro naquela homogeneidade transparente e individual. Vários objetos foram sendo agregados um a um taça a taça, alinhados pela beirada do cristal e pela tensão criada entre o vidro e a realidade, formando então os uniformes mencionados agora pouco. Achava aquilo muito fácil: se todos os objetos (incluem-se aí as coisas e as pessoas) possuem um centro de gravidade, isto significa que o equilíbrio vai existir, e, com aquele movimento mágico que fazia, deslocava primeiro o baricentro, o incentro e ao chegar no centro gravitacional daquele objeto, coisa ou pessoa, movia-o para fora da janela e deixava o cardume de dentes-de-leão levar para muito longe aquele ponto antropogeométrico que ela considerava inútil e insosso.Um dia fez uma enorme escultura com os dentes-de-leão que começaram a trazer de volta os centros gravitacionais. E aí assinou o seu nome naquele ar, naquele vácuo de possibilidades.

Pedro, O Cara

sábado, novembro 27, 2004

Sonho parisiense

Esta manhã ainda me maravilha a imagem viva e distante da terrível paisagem jamais contemplada por olhos mortais.

O sonho está repleto de milagres! Por singular capricho, havia desterrado do espetáculo o vegetal irregular, e, pintor orgulhoso do meu gênio, saboreava na tela a embriagadora monotonia do metal, o mármore e a água.

Cheio de fontes e cascatas que caíam sobre o ouro fosco ou polido, havia um palácio infinito, babel de arcadas e escadarias. Cortinas de cristal, as pesadas cataratas se suspendiam deslumbrantes das muralhas metálicas.

Colunatas em lugar de árvores rodeavam os tanques adormecidos, onde gigantescas náiades se viam como mulheres.

Entre molhes rosados e verdes, por milhões de léguas, as águas azuis se expandiam até os confins do universo. Havia pedras insólitas, ondas mágicas; havia espelhos deslumbrados pelo que refletiam.

Do firmamento, rios taciturnos e descuidados vestiam o tesouro de suas urnas em abismos de diamantes.

Arquiteto dos meus sortilégios, eu fazia passar como queria, sob um túnel de pedrarias, um oceano domesticado. E tudo, até a cor negra, parecia polido, claro e irisado; e a água engastava sua glória no raio de cristal.

Nenhum astro até os confins do céu, nenhum resto de sol que iluminasse esses prodígios de fogo próprio.

E sobre essas maravilhas móveis (detalhe atroz: tudo para os olhos, nada para os ouvidos!) flutuava um silêncio de eternidade.


[Charles Baudelaire, citado por Jorge Luis Borges em Livro dos Sonhos]

quinta-feira, novembro 25, 2004

Uma receita e dez mandamentos para um domingo

Primeiro: olhar dentro de uma bolinha de gude (verde ou azul) e enxergar o macrocosmo, mantendo sempre a funda intuição holística de que tanto faz estar lá dentro ou cá fora.

Segundo: deixar parados todos os relógios da casa, para provocar desentendimentos entre o tempo, os mecanismos e o Tempo.

Terceiro: fingir que deseja coisas concretas, como um prato de comida ou uma música.

Quarto: andar pelas ruas para pensar “que bom, é domingo” ou “desgraçadamente, é domingo”.

Quinto: pensar com alívio em todas as tragédias que poderiam ter acontecido e que não aconteceram, tragédias que adoram acontecer aos domingos.

Sexto: se for inverno, abrir todas as janelas; se for verão, fechá-las.

Sétimo: quebrar alguma coisa, um objeto qualquer (o domingo é o melhor dia para isso, porque há a certeza de que a coisa quebrada se reconstituirá magicamente na segunda-feira).

Oitavo: lembrar-se de que o domingo é tão primeiro quanto último, o que nos transtornará tanto que, ao abrirmos os olhos, será quarta ou quinta.

Nono: tomar três banhos, porque é imperioso conversar consigo mesmo sob o chuveiro.

Décimo: negar, negar até o fim.

E uma receita: sirva quente, leve ao forno por 30 minutos, mexa bem, adicione por fim o creme de leite coloque primeiro a farinha separe três claras pense no que quer fazer mas faça ao contrário, entende?

[Marpessa]

As pessoas que moram nos gatos

Um gato nunca é apenas um gato. É preciso que as pessoas compreendam que cada um dos gatos deste mundo guarda em si um quê de personalidade, ainda que se questione isso posto que apenas “pessoas” podem ter “personalidade”. Eis o xis da questão: um gato é também uma pessoa.

O eminente pesquisador Otto K. tem uma teoria curiosa acerca do caráter humano dos gatos. Ele crê na metempsicose e acredita que os gatos são os verdadeiros depositários das almas humanas quando estas deixam os corpos de homens e de mulheres. As almas que precisam aprender alguma coisa sobre a profundidade da existência acabam reencarnando em forma de gato. Gostaria, neste ponto, de lembrar aos incrédulos que o professor Otto já teve artigos publicados na Nature (ainda que, desta vez, eu não acredite que será novamente agraciado com o respaldo desta respeitosa publicação).

Isso nos leva a compreender porque certos gatos são tão temperamentais, ou porque parecem detestar certas pessoas e amar outras, ou ainda porque são eles, e não os donos, que decidem onde e quando vão dormir a siesta. Crer na teoria do professor Otto nos torna pelo menos mais tranqüilos em relação aos hábitos dos nossos gatos, porém nos dá um novo problema, que é tentar adivinhar como não ferir os sentimentos da pessoa que se oculta no bichano. Não é possível, em nossa sociedade, levar os gatos a comer à mesa, por exemplo. Gatos são gatos, ainda que sejam também pessoas, mas são pessoas apenas por dentro enquanto que do lado de fora são simplesmente gatos, com as devidas diferenças que os tornam pouco aptos para levarem uma vida externa comum aos humanos.

Isso, infelizmente, condena ao encarceramento o humano que existe nos gatos. A não ser, claro, que um dia eles comecem a falar. Para o nosso próprio bem, é melhor que isso jamais aconteça.


[Marpessa]

terça-feira, novembro 23, 2004

Dança

"O Observatório Gemini anunciou esta semana que conseguiu captar os movimentos de um balé galáctico a 300 milhões de anos-luz da Terra. As imagens mostram as galáxias integrantes do grupo conhecido como Quinteto de Stephan sendo dilaceradas no contato gerado pelas interações gravitacionais que ocorrem há milhões de anos. De acordo com a Agência FAPESP, arcos de gases e poeira representam as interações e movimentos das galáxias. Essa espécie de dança deforma as estruturas dos componentes do quinteto, ao mesmo tempo em que produz um espetáculo que lembra uma explosão de fogos de artifício."


O silêncio eterno destes espaços infinitos me apavora. Isso é Pascal, notório filósofo francês.

Tanta opressão maravilhosa! Coisas infinitamente acontecendo e eu, pobre de mim, preocupada com o balé intragaláctico daqui do meu peito. Mas vejam: não há nada que não ocorra lá em cima que não se repita aqui embaixo, é a lei das eternas correspondências e, portanto, não devo me sentir culpada.

Ele abriu a porta com aquele ar de quem não está. Mal me olhou. Ocupou-se por três minutos em examinar os bolsos, a poeira da estante, as maçãs na fruteira e o Neruda sobre a mesa. Mas Neruda, qual o quê. Passou por mim enquanto eu o seguia com olhos infantis, acompanhando cada movimento, cada vazio que se desenhava por obra e graça da ausência dele, que não estava, realmente não estava. Levantei-me da cama desfeita e passei por ele no caminho da sala, mantendo o rosto firmemente voltado para baixo, não sei o que fui procurar mas certamente era algo que não existia na sala, ou no banheiro, ou na cozinha. Sentei-me no sofá e ele passou mais uma vez por mim e tornou a sair. Acendi um cigarro e dediquei toda minha atenção a tentar formar círculos perfeitos de fumaça. Porta batendo, ele entrando, atravessando a fumaça tênue e desaparecendo no corredor feito um cometa, enquanto o silêncio adormecia na minha garganta, mão enluvada sufocando-me, quente e tensa.

Enquanto isso, no altíssimo dos céus, tanta quietude. Trezentos milhões de anos-luz.

Apaguei o cigarro, levantei-me e por um momento não soube para que lado seguir. Decidi voltar para o quarto e, ao dobrar a esquina do corredor, cruzei com ele mais uma vez. Estranhíssimo que nos empenhássemos em dançar sem a menor consciência, dança esta que nos deformava em nossas estruturas, transformando algo em outra coisa. Mesmo ele estando ausente, não podia deixar de rodeá-lo feito lua, de tentar tocá-lo em seu íntimo para acabar com aquilo que se afigurava como um fantasma de estrela a nos separar de modo categórico. Eu agora era uma lua pensante que tentava engendrar um movimento que fosse definitivo para cessar aquela dança informal que prenunciava hecatombes silenciosas dentro de mim e porque não? Dentro dele também.

Tornei a sentar-me na beirada da cama.

Ele entra no quarto. Está tão lindo, tão forte. Também, por um momento, pareceu não saber o que fazer ou para onde seguir, mesmo que eu adivinhasse que ele soubesse perfeitamente que só havia um caminho, um único passo possível na seqüência. Pousou os olhos em todos os cantos do quarto, até que não houvesse mais nenhum canto além de mim na beirada da cama, eu a última das coisas e a primeira das coisas, a causa de todas as coisas, ele bem sentia. E por saber tanto sobre ele, estiquei lentamente minha mão direita e quase o toquei. Quase.

Meu gesto ficou desmaiado no ar. O espaço. Meus dedos tremeram um pouco. Anos-luz. Ele me segurou pelo pulso e nesse instante o silêncio evadiu-se manso, porque ele me ergueu (eu me ergui), puxou-me contra ele (fui ao encontro dele, tão forte), cingiu-me com um braço (enrodilhei-me como um gato) e me fez satélite definitivo, eu tão gravitando ao redor dele, tão denso este corpo e por isso tão atraente. Sou um satélite e ele me atira à cama (atiro-me de costas), jogando-se em seguida sobre mim (eu o puxo pelos ombros) e buscando-me, as mãos, a sofreguidão, tudo é calor e choque e nenhuma palavra.

Olho pela janela entreaberta e avisto o céu azul marinho e meia dúzia de estrelinhas faiscantes, certamente mortas, com toda certeza chocaram-se durante um estranhíssimo balé, provavelmente surdo e cego e oh.

(O silêncio eterno destes espaços infinitos me apavora. Isso é Pascal, notório filósofo francês.)

[Marpessa - texto da 29ª edição do Blogautores]


quinta-feira, novembro 18, 2004

Andrea, de novo

Desta vez, poesia.

terça-feira, novembro 16, 2004

Uma ou duas regras para o bem viver

Não se esqueça do relógio, que será fundamental para que não haja enganos tolos a pôr em risco todo um processo longamente mastigado, sofrido com antecedência. Escolha o dia e saiba que a hora deve ser duas e quinze, nem um minuto a mais ou a menos. Confira a previsão meteorológica: dias muito frios ou muito quentes arrefecem os ânimos, não prestam para o bem viver que estamos aqui a buscar, incansáveis e retos como quadrados. Também defina o local, dando preferência para hotéis antiquados, com cortinas grossas de veludo verde.

Depois destas primeiras providências, que são as mais importantes, se faz necessário escolher a música apropriada. Uma tarefa deliciosamente difícil; tantas as opções de qualidade! Sugiro que não se ultrapasse os limites da música clássica, a não ser que se considere capaz de encarar às duas e quinze, este momento de extrema relevância que está engendrando, um caótico e negro jazz. Aconselho que somente pessoas de muita coragem arrisquem-se pelos lados do jazz, porque este tipo de música tende a tornar o ouvinte disperso demais, além do que é preciso manter o foco.

Feita a escolha da música, vem a etapa das vestimentas. A roupa certa deverá ser folgada, permitindo o movimento, mas não perca de vista a elegância; tecidos nobres são fundamentais, assim como o corte correto e as cores em total acordo. Tons escuros e tons claros podem ser tranqüilamente combinados, mas tenha bom gosto e por favor, evite a todo custo o exagero. Roupas de baixo também devem ser meticulosamente selecionadas: confortáveis e vistosas.

Quando chegar o dia, desligue os telefones e não assista televisão. Evite conversar com quem quer que seja e vá ao local escolhido, o quarto de hotel antiquado com cortinas grossas de veludo verde. Você terá em mãos uma maleta e um aparelho de som portátil. Terá tomado um bom banho, feito a barba se homem, feito as unhas se mulher. Você então estará no caminho certo, pronto para o bem viver instantâneo que obterá a partir destas providências tão simples. Até duas e quinze você desfrutará de agradáveis momentos em solidão. Deixo para você decidir quais as quinquilharias que levará em sua prática valise de couro; trata-se de algo muito pessoal e assunto no qual ninguém pode dar palpite, mas penso que talvez seja oportuno carregar consigo um álbum de fotografias e, se você for um artista, seus instrumentos de trabalho para que possa, durante este exercício do bem viver, praticar um pouco, fixando o instante para todo o sempre.

O relógio, que não pára, avisa você que já são duas e treze. É tempo de se preparar, porque agora não terá outra escolha. Uma vez que já escolheu o método, não será difícil saber o que fazer. Isto, tal qual o conteúdo da valise, é exclusivamente de responsabilidade sua.

Duas e quinze, tarde amena e ventos brandos, um céu azul esticando-se por sobre a cidade, que você aprecia por detrás das cortinas verdes. É hora. Mas pulemos esta parte; você bem viveu por algumas horas e a música, bem como um triste aroma de musk, ainda ricocheteia pelas paredes do quarto.

[Marpessa]
mais fragmentos encontrados num HD. provavelmente eu não estava num dia muito bom quando escrevi isso.

A lua brilha sem saber que estamos olhando para ela. Fica lá, redonda, cheia e alaranjada, como se verão fosse. É inverno, nove horas de uma noite qualquer. Pouco importa: todas são iguais. Pode-se ouvir os cães que não cessam de latir e ganir, pois em todas as cidades existem os cães que latem e ganem uns aos outros todo o tempo. É difícil descobrir um canto silencioso no mundo, com todos estes cães.

Os humanos, por sua vez, seguem o fluxo anormal de suas existências. Nada sabem, nada saberão. Alguém disse que muitos só vêm ao mundo para servir de esterco, e isso deve ser verdade. Esterco e reprodução, guardando certa semelhança com o ciclo de vida dos vermes que saem da barriga dos cães. Com isso, fecha-se um anel que fervilha, passando por cima da terra bem devagar.

É triste, essa lua. Triste porque solitária; triste porque iluminando o que não desejamos ver. Logo abaixo dela, tudo está em aparente paz. Dentro de cada casa, uma aparente harmonia germinando no seio de famílias aparentes. E cada um, cada indivíduo, gemendo para si mesmo em eterno desconsolo, nem sempre perceptível. Gemendo e lamentando aquela dor que acomete a todos os que vivem, mas a maioria não se dá conta e tenta reparti-la em um bilhão de pequenas dores, menores, mais suportáveis...

(Um sapo, quando jogado na água fervente, saltará de imediato, para fugir. Quando colocado na água fria que vai se esquentando aos poucos, morrerá porque a água vai ferver sem que ele se dê conta. Acostumou-se; acostumemo-nos, pois, para não nos queimarmos.)

[Marpessa]

sábado, novembro 13, 2004

fragmento encontrado num HD. não me lembro de ter escrito este texto. espero que seja realmente meu, e deve ser, porque alguma coisa nele me soa muito familiar.

Foi dentro de um sonho que vi você pela primeira vez. Seus olhos eram claros – não sei se verdes – e seus cabelos estavam curtos. O rosto que vi não foi o rosto que adivinhei, antes de finalmente contemplá-lo; era uma outra coisa, outros traços que guardavam apenas uma dolorosa semelhança com aquele rosto que adivinhei e depois perdi no fundo do meu sonho. E isso é o mais estranho: não sei de você nada além do que quis mostrar-me ontem à noite.

Em meu sonho, você me procurava, todos diziam “ele a procura”, e quando nos esbarrávamos em alguma esquina, em algum café, em um bar qualquer, nos compreendíamos. Eu ansiava por estes vagos encontros, e estou certa de que você também ansiava por eles. Mas a nós era impossível entender o porquê. Éramos conhecidos e estranhos, díspares e iguais.

Sua respiração, seu beijo, essas coisas que são sempre maiores e mais profundas do que parecem, essas coisas que são enigmas, lagos imensos, solidão ampla e inexaurível, essas coisas se escondem para surgirem onde menos imaginamos. Era apenas um sonho, afinal. E você estava nele, e eu estava nele, e sua respiração e seu beijo me fizeram lembrar de coisas tão antigas quanto impossíveis, pois um milagre estava nascendo ali entre os nossos lábios unidos. Subiu-me o sangue e com ele a antevéspera de minha existência, o tempo em que nada havia, nem eu mesmo havia, um tempo, umas flores amarelas.

Acredita-me? Você sabe de tudo. Estava me procurando porque sabia, sabia do beijo e do milagre, conhecia cada dobra dos meus pensamentos e veio abrindo caminho por entre as fendas do tempo para cair justamente dentro do meu sonho. Uma primeira vez e você, tão furtivo quanto angélico, encontrou-me – como se tivéssemos mesmo marcado um encontro nos confins de um sonho qualquer.

A segunda vez que o vi, você apareceu-me como um invasor que arromba uma casa no meio da tarde, uma tarde de chuva, para misturar-se aos outros invasores, ocultar-se em meio a eles e por fim derrotá-los de modo irremediável. Seus cabelos estavam crescidos, castanhos, e estávamos tão juntos quanto duas pessoas podem estar. Olhos azuis? Desta vez me pareceram azuis. Foi rápido demais; logo você sumiu sem dizer adeus, um fantasma cuja imagem fixou-se acidentalmente graças a uma fotografia Kirlian.

[Marpessa]
(...)

A tarefa de amolecer diariamente o tijolo, a tarefa de abrir caminho na massa pegajosa que se proclama mundo, esbarrar cada manhã com o paralelepípedo de nome repugnante, com a satisfação canina de que tudo esteja em seu lugar, a mesma mulher ao lado, os mesmos sapatos e o mesmo sabor da mesma pasta de dentes, a mesma tristeza das casa em frente, do sujo tabuleiro de janelas de tempo com seu letreiro HÔTEL DE BELGIQUE.

Enfiar a cabeça como um touro apático contra a massa transparente em cujo centro bebemos café com leite e abrimos o jornal para saber o que aconteceu em qualquer dos cantos do tijolo de cristal. Resistir a que o ato delicado de girar a maçaneta, esse ato pelo qual tudo poderia se transformar, possa cumprir-se com a fria eficácia de um reflexo cotidiano. Até logo, querida. Passe bem.

Apertar uma colherinha entre os dedos e sentir seu latejar metálico, sua advertência suspeita. Como custa negar uma colherinha, negar uma porta, negar tudo o que o hábito lambe até dar-lhe uma suavidade satisfatória. Quanto mais simples é aceitar a fácil solicitação da colher, usá-la para mexer o café.

E não é mau que as coisas nos encontrem outra vez todo dia e sejam as mesmas. Que a nosso lado esteja a mesma mulher, o mesmo relógio e que o romance aberto em cima da mesa comece a andar outra vez na bicicleta de nossos óculos, porque haveria de ser mau? Mas como um touro triste é preciso abaixar a cabeça, do centro do tijolo de cristal empurrar para fora, em direção ao outro tão perto de nós, inacessível como o toureiro tão perto do touro. Castigar os olhos fitando isso que anda no céu e aceita astuciosamente seu nome de nuvem, sua resposta catalogada na memória. Não pense que o telefone vai lhe dar os números que procura. Por que haveria de dá-los? Virá somente o que você tem preparado e resolvido, o triste reflexo de sua esperança, esse macaco que se coça em cima da mesa e treme de frio. Quebre a cabeça desse macaco, corra do centro em direção à parede e abra caminho. Oh, como cantam no andar de cima! Há um andar em cima nesta casa, com outras pessoas. Há um andar em cima onde moram pessoas que não percebem seu andar de baixo, e estamos todos dentro do tijolo de cristal.
E se, de repente, uma traça pára pertinho de um lápis e palpita como um fogo cinzento, olhe-a, eu a estou olhando, estou apalpando seu coração pequenino, e ouço-a: essa traça ressoa na pasta de cristal congelado, nem tudo está perdido. Quando abrir a porta e assomar à escada, saberei que lá embaixo começa a rua; não a norma já aceita, não as casas já conhecidas, não o hotel em frente; a rua, a floresta viva onde cada instante pode jogar-se em cima de mim como uma magnólia, onde os rostos vão nascer quando eu os olhar, quando avançar mais um pouco, quando me arrebentar todo com os cotovelos e as pestanas e as unhas contra a pasta do tijolo de cristal, e arriscar minha vida enquanto avanço passo a passo para ir comprar o jornal na esquina.

[Julio Cortázar, Histórias de Cronópios e de Famas]

quarta-feira, novembro 10, 2004

conto inacabado, sem título e sem objetivo claro, o que é um erro terrível
(o começo dele é assim mesmo, com letra minúscula)

mas persisto no erro de remontar, com todas as letras, aquele instante. Nada do que tenho dito ou pensado nos últimos dias foge do espectro gelado destas memórias, que hoje me envolvem de tal forma que não entendi como ainda não pus termo à minha existência. Eu deveria escrever tudo isso, para servir de exemplo para mim mesmo que hoje assisto em meu cinema mental a sucessão de erros e de enganos nos quais incorri. Tolo, um dia acreditei. Entre folhas secas e o sol avermelhado a vi pela primeira vez, e qualquer um teria me dado razão se naquele momento eu dissesse que estava apaixonado por um fantasma. Ainda agora o gosto deste café ruim me traz à boca e ao peito o amargor da lembrança, a madeleine de Proust a azedar meu espírito com um vigor que antigamente eu, passando incólume pelos domínios do amor, jamais poderia ter imaginado. Por detrás dos meus óculos vi a mulher fantasma a colher rosas vermelhas em um jardim de sonho, pisando as folhas secas como se não as quisesse machucar, tamanha sua delicadeza. Lembro-me de que fiquei tocado, a observá-la deste mesmo balcão, ela do outro lado da rua. E que por isso o gosto do café que tomo agora me remete de pronto à imagem dela colhendo rosas. Tal viagem do espírito ao passado é incômoda, como se todo o meu ser tivesse sido desmontado em pedaços ínfimos para depois serem colados em algum outro lugar, aquele lugar onde antes não havia nada e antes ainda houve alguma coisa de importante para o viajante. Nesta dimensão incorpórea onde sobrevivem as lembranças há um quadro e ela é o motivo central, tão distante das minhas mãos quanto um Van Gogh no Louvre. Busco em silêncio dar à cena estática algum movimento e evoco para mim o perfume da tarde, o balançar de um galho da roseira e o poente riscando no céu um outro quadro enquanto eu apreciava aquele quadro com roseira e mulher, os olhos dela se voltando subitamente para mim e demorando longamente na tarefa discreta de me observar. Assim o começo.

Acabo de pedir mais um café. Não sei, mas sinto ser um erro terrível insistir. Meu momento é repleto de vazio e todas as cores fugiram para um lugar secreto, ao qual não tenho acesso e por certo jamais terei. As portas que levam aos segredos do mundo estão cerradas. Sinto-me encarcerado na rigidez de um sistema matemático que não admite improvisos, um pesadelo euclidiano que coíbe meus gestos, por menores que sejam. Tudo o que tenho é o café e minhas lembranças. Minha solidão é um cubo solto no espaço, um fractal em preto e branco mergulhado em total e irremediável silêncio. Ao meu lado, outras vidas povoam o espaço pontuando-o com suas presenças também encarceradas, cada qual em sua posição.

Naquela tarde em que a conheci tudo se apagou ao redor. Minha vida flutuou ao redor daquela outra vida, um astro percorrendo o firmamento e eu, uma lua a girar ao seu redor. Os primeiros instantes foram tensos, cheios de cuidados, mas as rosas e que belas e que ventania. O sorriso da Gioconda não foi mais misterioso. Entendi estar diante de uma forma peculiar de mulher, uma criatura atípica, que mantinha de tudo e de todos (exceto de suas adoradas rosas) um distanciamento tácito, mais por temperamento do que por decisão. Ela era assim. Vê-la era como enxergar o princípio e o fim de todas as coisas, mas estar em sua presença me tornava também fantasmagórico. Eu sentia como se fosse desaparecer e quando enfim ela me permitiu entrar em seu jardim e depois tocar suas mãos e em seguida beijá-la no rosto, eu desejava agarrar-me a ela feito um náufrago.

Pensando em como agora estou só e em quão dolorosa é a solidão de um homem que já teve em seus braços um anjo, percebo que não há diferença entre o que sou agora e o que fui naquele momento epifânico. Como tudo acabou, vejo que o caminho levou-me de volta ao começo de mada aprendi, nada guardei a não ser pedaços de uma vida que hoje parece não ter sido


[Marpessa]

terça-feira, novembro 09, 2004

Regras para falar ao telefone

Esqueçamos tudo o que sabemos a respeito dos mecanismos elétricos e mecânicos que rodeiam e classificam o aparelho telefônico. Esqueçamos, também, o fato de um telefone ser um aparelho tão comum quanto um fogão ou uma batedeira de bolos. O telefone, amigos, é na verdade mágico e como todas as coisas mágicas deve ser tratado com reverente respeito. Um mistério do engenho humano que nos traz de modo impressionante um sem-número de emoções, traídas pelas inflexões vocais ou expostas como ulcerações de pele. Por tal qualidade singular, o telefone merece toda nossa consideração: temos que saber como lidar com ele.

Em primeiro lugar, quando o telefone toca, é necessário evitar a todo custo a tentação – o desespero – de atendê-lo tão rápido quanto possível. Deixe tocar. Essa angústia prévia que mistura o incômodo causado pelos toques e o desconhecimento de quem está chamando do outro lado da linha é uma espécie de bênção às avessas. Se esta angústia estiver polvilhada de incredulidade diante de um chamado que não tinha motivos para acontecer, tanto melhor. Tantalizante.

Ao atender, não diga “alô”. Ouça, por um ou dois segundos, os ruídos do outro lado e tente adivinhar de onde vêm, como são provocados. Associe ruídos a pessoas e, como em um provocante jogo de adivinhas, tente descobrir que voz virá do outro lado. Naturalmente tanta expectativa pode acabar em franca decepção, porque mesmo quando não estamos esperando chamados, estamos esperando que. Mas valerá a pena porque, se existe a possibilidade da decepção, pelo menos houve expectativa e por algum tempo você desejou algo que – admita! - tinha alguma chance de acontecer, ainda que fosse em seu mundo e sonhos e dias vazios de significado.

Quando por fim você descobrir quem está falando, ou querendo falar, então haverá com que se ocupar por alguns minutos. Mas não deixe de pensar durante a conversa que esse é um instante fabuloso, o ápice da evolução, porque ao longe há uma voz e você pode ouvi-la, normalmente sem chiados, com total clareza. É um deslumbre, falar ao telefone. Então, enquanto estiver a falar e a ouvir, pense no mistério, porque só o mistério interessa para alguém que fala e ouve ao telefone. Um som passa através de vários fios e postes, chegando enfim ao destino em tempo real ou quase, e isso é estranho porque além de som pode-se ouvir risos e lágrimas e piadas e ironia, saber como está se sentindo a pessoa do outro lado e ela também sabendo como você está se sentindo, como tem sido seu dia ou sua noite, a despeito de qualquer dificuldade de ordem técnica que os fios ou o aparelho possa estar sofrendo naquele instante.

Importante é que você jamais volte a dizer que o telefone é um instrumento frio que distancia as pessoas, porque isso não é verdade e com um pouco de treino você vai saber. Então, passará a amar o telefone e a desejá-lo, mesmo quando seu toque é irritante ou quando você tem que correr, tropeçar, sair do banho ou da cama para atender ao chamado que sempre esperou.

Um dia ou uma noite será a voz que esteve aguardando por longo tempo, aquela voz que considerou sempre impossível como um fantasma. Pode ser assim, mas o telefone tem caprichos: também é possível que a ligação caia e do outro lado haja somente aquele sinal contínuo, absurdo e fatal.

[Marpessa]

O amor acaba

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

[Paulo Mendes Campos]

segunda-feira, novembro 08, 2004

Fábula impossível

Compenetrada, Luisa postou-se diante do espelho da penteadeira. Apanhou a boneca ruiva e começou a penteá-la devagar, tomando cuidado para não embaraçar ainda mais os cabelos de náilon. Depois Luisa apanhou um vidro de perfume, abriu-o e delicadamente molhou a ponta dos dedos, esfregando-o no pescoço da boneca. Então sorriu. Estava ficando bom.

Depois Luisa levantou-se e abriu a porta do guarda-roupa. Tirou de dentro uma roupinha e com ela vestiu a boneca ruiva, penteada e perfumada. Apanhou um batom e com muito cuidado traçou nos lábios da boneca uma linha fina e rosada, evitando borrar. Sob os olhos da boneca, Luisa aplicou um pouco de sombra preta, criando desta forma um par de olheiras. Com um lápis, Luisa delineou o contorno dos olhos. E os olhos da boneca eram verdes como os dela.

Olhando-se no espelho Luisa olhava também o que havia atrás dela. Uma série de coisas enfileiradas, acasos e fatos atirados à realidade como em um sonho de significado obscuro. No espelho Luisa era Luisa e mais alguma outra pessoa que não Luisa, uma pessoa escondida sob camadas impiedosas de tempo. E quanto mais o tempo passava, mais Luisa sentia um sabor especialmente amargo na boca.

Luisa levantou-se e fechou a janela. As dobradiças rangeram, porque Luisa as fechou devagar, deixando do lado de fora o que se costuma chamar de sol. Era tarde, quatro horas e janeiro de novo. Mais uma vez, sol e janeiro e quatro horas. O relógio tiquetaqueava, incansável. Um filete de suor escorreu pelo pescoço de Luisa, indo morrer a meio caminho entre o pescoço e o colo. Um calor viscoso e amplo o bastante para abarcar Luisa, espelho e quatro horas mais dois minutos.

Sentou-se novamente e apanhou a boneca. Tinha ficado bonita mas um pouco adulta demais. Luisa pensou se a boneca não era uma prostituta disfarçada, e se as prostitutas eram mais felizes quando se travestiam de bonecas, porque decerto faziam isso às vezes para espantar o medo, arremedando aquilo que viam atrás das costas quando postavam-se diante de espelhos largos de penteadeira.

Os olhos de Luisa, tão verdes e bonitos. Tão característicos dos felinos. Quando criança Luisa tivera gatos de todos os tipos e cores. Isso ia longe, lá atrás, uma lembrança que morava junto com outras tão antigas quanto. Os olhos de Luisa estavam embaçados.

Um copo quebrou-se. Luisa teve um sobressalto e lembrou-se, então, de que não estava sozinha. Correu até a cozinha e viu Marcela, as mãozinhas ensangüentadas, miando um lamento agudo pela dor e pelo susto que levara. Luisa acudiu a filha, lavou-lhe as mãos, acalmou-a. Notou um corte profundo entre os dedos da mão esquerda de Marcela que miava “mamãe, tá doendo”.

O coração de Luisa disparou e o ar começou a faltar. Cada vez mais longe, a reclamação da menina e a visão das gotas de sangue no chão. Luisa segurava flacidamente a mão boa da filha e a puxava para si, apertando contra o peito aqueles dedinhos perfeitos e pequenos. Ajoelhou-se diante de Marcela, beijou-lhe o rosto e pegou-a no colo com grande esforço. Levou a menina até o quarto, colocando-a sentada na banqueta da penteadeira.

Marcela viu a boneca. Luisa sentou-se no chão, abriu a gaveta, apanhou gaze e esparadrapo. Com a mão boa, Marcela pegou a boneca e distraiu-se imediatamente, deixando para Luisa a tarefa materna de se preocupar com o ferimento e a tira de esparadrapo dificílima de cortar. Com a respiração sufocada, Luisa fez um curativo na mão da filha. Marcela interrompera os choramingos e conversava, naquela linguagem mágica das crianças, com a boneca ruiva. Não doía mais.

Vencendo furiosamente o suor e a ausência de ar, Luisa beijou Marcela e pegou de sua mão a boneca. Abriu o forro e de dentro retirou um pedaço de papel. Devolveu-a à filha. Arrastou-se até o banheiro e fez todos os esforços possíveis para vomitar. O pedaço de papel amarfanhado, letras borradas, mas ainda legível.

Não havia como ter para si a boneca. Marcela a tomara. E crianças são crianças. Os minutos escorriam do relógio e a boca de Luisa cada vez mais amarga. A boneca rasgada, o banheiro frio de azulejos brancos e o telefone tocando na sala... Marcela não alcançava o telefone, gritava do quarto “mamãe, telefone!”.

Não vomitou. Uma ardência seca e rascante subiu do esôfago, queimando dolorosamente a garganta. Luisa não pôde chorar. O telefone furioso e Marcela batendo na porta do banheiro, chamando, ficando enfim assustada de verdade porque a mãe não lhe respondia.

Marcela e o telefone longe. Luisa abriu a porta, não sem antes passar os olhos pelo espelho e enxergar um rosto pálido e crispado de dor. Destrancou a porta e Marcela ali, diante dela, o telefone. Arrastou-se até a sala e apanhou o telefone. Porém não disse nada, e a pessoa do outro lado também não disse nada e assim o mundo calou-se a não ser por Marcela que, desatenta a tudo, voltava a brincar com a boneca ruiva.

Não era possível que demorasse tanto, mas ao mesmo tempo era um alívio que fosse assim porque Marcela. Luisa, esforçando-se, apanhou novamente o telefone e discou um número. O homem atende, voz distante, tudo distante e escapando dos limites da realidade.

- Alô?
- Venha para casa. Agora. – A voz desmaiada de Luisa.
- O que há? – o homem quis saber.
- Venha.

Luisa desligou. Além do suor cada vez mais abundante que empapava suas roupas e do amargo insuportável na garganta, Luisa agora sentia uma espécie de alívio. Agachou-se ao lado de Marcela e a beijou carinhosamente. Teve a sensação de que não conseguiria de levantar, mas era preciso, Marcela, a boneca pintada que agora estava manchada das mãozinhas de Marcela que a apertara e esfregara. A boneca sem serventia, mas Marcela tinha com quem conversar e o bilhete amassado nas mãos de Luisa, uma cama, era preciso uma cama imediatamente.

Ao atirar-se no colchão, Luisa sentiu algo tão bom que parecia mentira. Uma delícia de cama, fresca, limpa, o teto girando e o suor frio que não parava de escorrer e ia molhando os lençóis brancos, ele viria salvar Marcela e afastar os vizinhos, leria o bilhete posto sobre a cômoda ao lado do abajur e então saberia, que delícia não precisar explicar, porque explicações são tremendamente cansativas. Mas Luisa pensou: a boneca. Ele não entenderia a boneca porque jamais entendera a boneca e não seria agora, a seqüência dos fatos se alterara inevitavelmente com o esquecimento da presença de Marcela, só podia mesmo estar louca porque Marcela, como esquecer Marcela tão linda e meiga, tão maravilhosa e pequena, quase um bebê a requerer cuidados mil. A boneca estava nas mãos erradas, não Marcela e sim ele a apertar a boneca contra o peito na angústia surda cheia de culpa, os soluços que só os homens conseguem dar em momentos assim, de angústia surda.

Luisa reúne forças e grita. Marcela entra no quarto. Luisa pede a boneca “deixa ver, filha”, com um fiapo de voz e Marcela diz “mamãe está gripada”, virando-lhe as costas e indo à cata de outra distração porque a boneca não era mais novidade, meia hora depois. Com a boneca nas mãos, Luisa abre as pernas e os braços, numa posição bastante confortável. Sorri, e agora apenas espera que o veneno cumpra seu papel.

[Marpessa]

sexta-feira, novembro 05, 2004

Le troisième livre des fantaisies de Gaspard de La Nuit
Livro Terceiro das fantasias de Gaspar da Noite

La nuit et sés prestiges
A noite e suas ilusões

I
A cela gótica

Nox et solitudo plenae sunt diabolo. [De noite, minha cela se enche de diabos]
Os padres da Igreja


- Oh, a terra – murmurava eu de noite – é um cálice perfumado cujo pistilo e estames são a lua e as estrelas!

E com os olhos pesados de sono, fechei a janela que incrustou a negra luz do calvário na auréola amarela dos vidros.

Se ao menos à meia noite, hora brasonada de dragões e diabos, não fosse o gnomo o único a embriagar-se com o óleo da minha lâmpada!

Se não fosse a ama-de-leite a única a acalentar, com seu monótono canto, na couraça de meu pai, também recém-nascido morto!

Se não fosse o esqueleto do lansquenê emparedado no madeirame o único a chamar com a testa, com o cotovelo e com o joelho!

Porém é Scarbó, que me morde o pescoço e que, para cauterizar minha ferida sangrenta, enfia nela seu dedo de ferro enrubescido nas brasas da lareira!


II
Scarbó


Deus meu, concede-me na hora da morte as súplicas de um monge, uma mortalha de pano, um ataúde de pinho e um lugar seco.
As ladainhas do Senhor Marechal

- Quer morras absolvido ou condenado – murmurava Scarbó esta noite em meu ouvido - , terás por mortalha uma teia de aranha, e já me encarreguei de amortalhar a aranha contigo.

Com os olhos vermelhos de tanto chorar, respondi: - Dá-me ao menos por mortalha uma folha de álamo, que me traga o hálito do lago.

- Não – respondeu sardônico o anão. – Serás pasto do escaravelho que todas as tardes sai a caçar mosquitos deslumbrados pelo sol poente.

- Preferes, pois – repliquei sem deixar de chorar, - preferes que uma tarântula com tromba de elefante me sorva?

- Bem, consola-te – acrescentou. – Terás por mortalha as tiras cravejadas de ouro de uma pele de serpente, nas quais te envolverei como uma múmia.

“E da tenebrosa cripta de São Benigno, onde te deixarei de pé contra a parede, poderás ouvir à vontade como choram as crianças que estão no limbo.”


III
O louco


Um carolus, ou se preferires, um cordeiro de ouro.
Manuscritos da biblioteca do rei

A lua penteava seus cabelos com um pente de ébano, que prateava com uma chuva de vaga-lumes as colinas, os prados e as florestas.

Scarbó, gnomo que possuía abundantes tesouros, espreitava do meu telhado, enquanto rangia o cata-vento, ducados e florins que saltavam cadenciadamente, indo as moedas falsas semear o chão da rua.

Como ria o louco que, durante as noites, vaga pela cidade, com um olho posto na lua e o outro – ai! – saltado.

“Maldita seja a lua!”, grunhiu. “Recolherei as moedas do Diabo e comprarei uma picota para esquentar-me ao sol”.

Porém era a lua, ainda a lua, a que se escondia. E Scarbó, na cova, continuava cunhando ducados e florins a golpes de balancim.

Enquanto isso, com os chifrinhos em frente, uma lesma procurava caminho em meus vitrais luminosos.


IV
O anão


- Tu a cavalo?
- Porque não? Mais de uma vez galopei em um galgo do
laird
de Linlithgow.
Balada escocesa


Do meu assento, na sombra das cortinas, eu tinha capturado a borboleta furtiva surgida em um raio de luz ou de uma gota de orvalho.

O inseto palpitante, por desprender suas asas cativas em meus dedos, pagava-me um resgate de perfumes.

Subitamente, o errante animalzinho se pôs a voar. Em meu colo ficou uma larva monstruosa e disforme com um rosto humano.

- Onde está tua alma? Que estou eu cavalgando?
- Minha alma, pequena montaria fustigada pelas fadigas do dia, repousa agora na liteira dourada dos sonhos.

E fugia, aterrorizada, minha alma, através da lívida teia de aranha do crepúsculo por cima nos negros horizontes grinaldados de negros campanários góticos.

Porém o anão, pendurado nela em sua fuga relinchante, se enrolava como um fuso nos flocos de sua crina branca.


V
O luar


Despertai, vós que dormis, e rogai por aqueles que morreram.
Grito do que clama na noite

Oh! Quão doce é, à noite, quando as horas tremem no campanário, olhar a lua com seu nariz igual a um carolus de ouro!

Dois leprosos se queixavam debaixo d aminha janela, um cão uivava na pracinha e o grilo da minha chaminé vaticinava em voz baixa, mas não tardou em fazer-se em meus ouvidos um silêncio profundo. Os leprosos voltaram a suas pocilgas, chgando no momento em que Jacquemart batia em sua mulher.

O cão havia saído a correr entre as alabardas da noite embolorada pela chuva e inteiriçada pelo ouriço.

E o grilo pegou no sono tão logo a última fagulha se apagou entre as cinzas da chaminé.

E pareceu-me – tão incoerente é a febre! – que a lua, fazendo-me caretas, punha a língua para fora como um enforcado.


VI
A roda sob o campanário

Era um maciço casarão, quase quadrado, rodeado de ruínas, e cuja torre principal, que ainda conservava o relógio, dominava todo o bairro.
Fenimore Cooper

Doze mágicos dançavam em roda sob o sino principal de Saint-Jean. Um após outro invocou a tempestade, e do fundo do meu leito contei com terror doze vozes que atravessam as trevas.

Imediatamente, a lua correu a esconder-se detrás das nuvens, e uma chuva misturada com relâmpagos e rajadas de vento fustigou minha janela, enquanto os cata-ventos grasnavam como gralhas na floresta, agüentando a chuvarada.

Saltou a prima do meu alaúde, pendurado no tabique; o pintassilgo sacudiu as asas, em sua gaiola; algum espírito curioso voltou uma página do Roman de la rose que dormia na minha escrivaninha.

De repente estourou o raio no alto de Saint-Jean. Os feiticeiros, mortalmente feridos, caíram desmaiados, e de longe vi seus livros de magias arderem como uma tocha no negro campanário.

O espantoso resplendor tingia com as chamas vermelhas do purgatório e do inferno os muro da igreja gótica e prolongava sobre as casas vizinhas a sombra da estatura gigantesca de Saint-Jean.

Os cata-ventos se enferrujaram; a lua atravessou as nuvens cinza-pérola; a chuva apenas gotejava do beiral do telhado, e a brisa, abrindo minha janela mal fechada, lançou sobre meu travesseiro as flores de um jardim sacudido pela tormenta.


VII
Um sonho


Isso e muito mais sonhei, mas não entendo uma única palavra desse sonho.
Rabelais, Pantagruel, livro III

Era noite. A princípio havia – eu conto como vi – uma abadia com as paredes riscadas pela lua, uma floresta atravessada por caminhos tortuosos, e o Marimont, repleto de capas e chapéus.
Logo em seguida – eu conto como vi - , um fúnebre dobrar de finados em um campanário, respondido por fúnebres soluços vindos de uma cela, lamentos queixosos e risos ferozes que faziam estremecer as folhas nas ramagens, murmúrios de preces dos penitentes negros que acompanhavam o criminoso ao seu suplício.

Finalmente – assim acabou o sonho, assim o conto – um monge expirava na cinza dos agonizantes, uma jovem se debatia pendurada nos ramos de um azinheiro. E eu, a quem o verdugo desgrenhado amarrava nos raios da roda.

Dom Augustín, o prior defunto, em hábito de franciscano, terá as honras de uma câmara ardente, e Marguerite, assassinada por seu amante, será amortalhada com seu vestido branco de inocência entre quatro círios de cera.

Comigo, porém, a barra do verdugo se quebrou na primeira pancada, como se fosse de vidro, as tochas do penitente se apagaram sob torrentes de chuva, a multidão se dispersou como os arroios transbordados e as corredeiras – e eu já perseguia outros sonhos ao despertar.


VIII
Meu bisavô


Naquele quarto tudo permanecia no mesmo estado, a não ser a tapeçaria, que estava completamente dilacerada, e as aranhas, que teciam suas teias no pó.
Walter Scott, Woodstock

As veneráveis personagens da tapeçaria gótica agitada pelo vento saudaram umas às outras, e meu bisavô entrou na peça – meu bisavô, que logo fará oitenta anos que morreu.

Aí! Aí mesmo, frente a este genuflexório, foi onde se ajoelhou meu bisavô, roçando levemente com sua barba o missal amarelo, aberto onde marca o indicador.

Durante toda a noite esteve balbuciando suas orações sem descruzar um só momento os braços sob a esclavina de seda violeta, sem sequer olhar obliquamente uma única vez em minha direção – eu, que sou sua posteridade, deitado na cama, sua poeirenta cama de dossel.

E me dei conta, com espanto, de que seus olhos estavam vazios quando aind apareciam ler; que seus lábios estavam imóveis, quando eu ainda o ouvia rezar; que seus dedos esavam descarnados, quando ainda cintilavam de pedrarias!

E evitei perguntar-me se velava ou se dormia; se era a lividez da lua ou de Lúcifer; se era meia-noite ou o amanhecer.


IX
Ondina

...E acreditava escutar
Uma vaga harmonia que meu sonho encantava,
Um sussurro próximo, semelhante, no ar,
Ao canto entrecortado de uma voz triste e terna.
Ch. Brugnot, Os dois gênios

- Escuta! Escuta! Sou eu, Ondina, quem toca levemente com gotas de água os sonoros losangos de tua janela iluminada por melancólicos raios de luar; e vê aí, vestida de tafetá, a dama do castelo que do balcão contempla a formosa noite estrelada e o belo lago adormecido.

“Cada onda é uma ondina que nada na corrente, cada corrente é um caminho que serpenteia até o meu palácio, e meu palácio é feito de matérias fluidas, no fundo do lago, no triângulo do fogo, da terra e do ar.”

“Escuta! Escuta! Meu pai, coaxando, fustiga a água com um ramo de amieiro verde; e minhas irmãs acariciam com seus braços de espuma as frescas ilhotas de erva, de nenúfar, de gladíolo, ou zombam do salgueiro decrépito e barbado que pesca com uma vara.”

Terminada a canção, suplicou-me pôr seu anel em meu dedo para ser esposo de uma ondina, e visitar com ela seu palácio e ser o rei dos lagos.

Como eu respondesse que amava uma mortal, zangada e despeitada verteu algumas lágrimas, soltou uma gargalhada e desvanesceu-se entre aguaceiros que escorriam claros em meus vidros azuis.


X
A salamandra


Lançou no fogo da chaminé um feixe de visco abençoado que ardeu crepitando.
Ch. Nodier, Trilby

- Grilo, meu amigo, estás morto para permanecer surdo ao meu silvo e cego ao esplendor do incêndio?

O grilo, porém, por muito afetuosas que fossem as palavras da salamandra, nada disse, seja porque dormia um mágico sono, seja porque teve o capricho de aborrecer-se.

- Oh! Canta-me tua canção como fazes todas as noites! Do teu esconderijo de cinza e fuligem atrás da placa de ferro coberta com três heráldicas flores-de-lis...

Tampouco respondeu o grilo. E a salamandra, desconsolada, ora esperava ouvir a voz, ora zumbia com a chama de cambiantes cores rosa, azul, amarelo, branco, violeta.

- Morreu, meu amigo! Morreu, e eu também quero morrer! – As lenhosas ramagens se haviam consumido, a chama arrastou-se sobre as brasas, disse adeus à corrente da chaminé, e a salamandra morreu de inanição.

[Aloysius Bertrand, Gaspard de La Nuit - citado por Jorge Luis Borges em Livro dos Sonhos]


quinta-feira, novembro 04, 2004

Cronópia

Minha amiga Andrea tem um blog. Além de contar piadas péssimas (acho que isso é característica fundamental dos cronópios), faz um blog e não me avisa. Mas enfim, o amor é cego e eu ainda a amo muitíssimo e a amarei para sempre.