sexta-feira, novembro 05, 2004

Le troisième livre des fantaisies de Gaspard de La Nuit
Livro Terceiro das fantasias de Gaspar da Noite

La nuit et sés prestiges
A noite e suas ilusões

I
A cela gótica

Nox et solitudo plenae sunt diabolo. [De noite, minha cela se enche de diabos]
Os padres da Igreja


- Oh, a terra – murmurava eu de noite – é um cálice perfumado cujo pistilo e estames são a lua e as estrelas!

E com os olhos pesados de sono, fechei a janela que incrustou a negra luz do calvário na auréola amarela dos vidros.

Se ao menos à meia noite, hora brasonada de dragões e diabos, não fosse o gnomo o único a embriagar-se com o óleo da minha lâmpada!

Se não fosse a ama-de-leite a única a acalentar, com seu monótono canto, na couraça de meu pai, também recém-nascido morto!

Se não fosse o esqueleto do lansquenê emparedado no madeirame o único a chamar com a testa, com o cotovelo e com o joelho!

Porém é Scarbó, que me morde o pescoço e que, para cauterizar minha ferida sangrenta, enfia nela seu dedo de ferro enrubescido nas brasas da lareira!


II
Scarbó


Deus meu, concede-me na hora da morte as súplicas de um monge, uma mortalha de pano, um ataúde de pinho e um lugar seco.
As ladainhas do Senhor Marechal

- Quer morras absolvido ou condenado – murmurava Scarbó esta noite em meu ouvido - , terás por mortalha uma teia de aranha, e já me encarreguei de amortalhar a aranha contigo.

Com os olhos vermelhos de tanto chorar, respondi: - Dá-me ao menos por mortalha uma folha de álamo, que me traga o hálito do lago.

- Não – respondeu sardônico o anão. – Serás pasto do escaravelho que todas as tardes sai a caçar mosquitos deslumbrados pelo sol poente.

- Preferes, pois – repliquei sem deixar de chorar, - preferes que uma tarântula com tromba de elefante me sorva?

- Bem, consola-te – acrescentou. – Terás por mortalha as tiras cravejadas de ouro de uma pele de serpente, nas quais te envolverei como uma múmia.

“E da tenebrosa cripta de São Benigno, onde te deixarei de pé contra a parede, poderás ouvir à vontade como choram as crianças que estão no limbo.”


III
O louco


Um carolus, ou se preferires, um cordeiro de ouro.
Manuscritos da biblioteca do rei

A lua penteava seus cabelos com um pente de ébano, que prateava com uma chuva de vaga-lumes as colinas, os prados e as florestas.

Scarbó, gnomo que possuía abundantes tesouros, espreitava do meu telhado, enquanto rangia o cata-vento, ducados e florins que saltavam cadenciadamente, indo as moedas falsas semear o chão da rua.

Como ria o louco que, durante as noites, vaga pela cidade, com um olho posto na lua e o outro – ai! – saltado.

“Maldita seja a lua!”, grunhiu. “Recolherei as moedas do Diabo e comprarei uma picota para esquentar-me ao sol”.

Porém era a lua, ainda a lua, a que se escondia. E Scarbó, na cova, continuava cunhando ducados e florins a golpes de balancim.

Enquanto isso, com os chifrinhos em frente, uma lesma procurava caminho em meus vitrais luminosos.


IV
O anão


- Tu a cavalo?
- Porque não? Mais de uma vez galopei em um galgo do
laird
de Linlithgow.
Balada escocesa


Do meu assento, na sombra das cortinas, eu tinha capturado a borboleta furtiva surgida em um raio de luz ou de uma gota de orvalho.

O inseto palpitante, por desprender suas asas cativas em meus dedos, pagava-me um resgate de perfumes.

Subitamente, o errante animalzinho se pôs a voar. Em meu colo ficou uma larva monstruosa e disforme com um rosto humano.

- Onde está tua alma? Que estou eu cavalgando?
- Minha alma, pequena montaria fustigada pelas fadigas do dia, repousa agora na liteira dourada dos sonhos.

E fugia, aterrorizada, minha alma, através da lívida teia de aranha do crepúsculo por cima nos negros horizontes grinaldados de negros campanários góticos.

Porém o anão, pendurado nela em sua fuga relinchante, se enrolava como um fuso nos flocos de sua crina branca.


V
O luar


Despertai, vós que dormis, e rogai por aqueles que morreram.
Grito do que clama na noite

Oh! Quão doce é, à noite, quando as horas tremem no campanário, olhar a lua com seu nariz igual a um carolus de ouro!

Dois leprosos se queixavam debaixo d aminha janela, um cão uivava na pracinha e o grilo da minha chaminé vaticinava em voz baixa, mas não tardou em fazer-se em meus ouvidos um silêncio profundo. Os leprosos voltaram a suas pocilgas, chgando no momento em que Jacquemart batia em sua mulher.

O cão havia saído a correr entre as alabardas da noite embolorada pela chuva e inteiriçada pelo ouriço.

E o grilo pegou no sono tão logo a última fagulha se apagou entre as cinzas da chaminé.

E pareceu-me – tão incoerente é a febre! – que a lua, fazendo-me caretas, punha a língua para fora como um enforcado.


VI
A roda sob o campanário

Era um maciço casarão, quase quadrado, rodeado de ruínas, e cuja torre principal, que ainda conservava o relógio, dominava todo o bairro.
Fenimore Cooper

Doze mágicos dançavam em roda sob o sino principal de Saint-Jean. Um após outro invocou a tempestade, e do fundo do meu leito contei com terror doze vozes que atravessam as trevas.

Imediatamente, a lua correu a esconder-se detrás das nuvens, e uma chuva misturada com relâmpagos e rajadas de vento fustigou minha janela, enquanto os cata-ventos grasnavam como gralhas na floresta, agüentando a chuvarada.

Saltou a prima do meu alaúde, pendurado no tabique; o pintassilgo sacudiu as asas, em sua gaiola; algum espírito curioso voltou uma página do Roman de la rose que dormia na minha escrivaninha.

De repente estourou o raio no alto de Saint-Jean. Os feiticeiros, mortalmente feridos, caíram desmaiados, e de longe vi seus livros de magias arderem como uma tocha no negro campanário.

O espantoso resplendor tingia com as chamas vermelhas do purgatório e do inferno os muro da igreja gótica e prolongava sobre as casas vizinhas a sombra da estatura gigantesca de Saint-Jean.

Os cata-ventos se enferrujaram; a lua atravessou as nuvens cinza-pérola; a chuva apenas gotejava do beiral do telhado, e a brisa, abrindo minha janela mal fechada, lançou sobre meu travesseiro as flores de um jardim sacudido pela tormenta.


VII
Um sonho


Isso e muito mais sonhei, mas não entendo uma única palavra desse sonho.
Rabelais, Pantagruel, livro III

Era noite. A princípio havia – eu conto como vi – uma abadia com as paredes riscadas pela lua, uma floresta atravessada por caminhos tortuosos, e o Marimont, repleto de capas e chapéus.
Logo em seguida – eu conto como vi - , um fúnebre dobrar de finados em um campanário, respondido por fúnebres soluços vindos de uma cela, lamentos queixosos e risos ferozes que faziam estremecer as folhas nas ramagens, murmúrios de preces dos penitentes negros que acompanhavam o criminoso ao seu suplício.

Finalmente – assim acabou o sonho, assim o conto – um monge expirava na cinza dos agonizantes, uma jovem se debatia pendurada nos ramos de um azinheiro. E eu, a quem o verdugo desgrenhado amarrava nos raios da roda.

Dom Augustín, o prior defunto, em hábito de franciscano, terá as honras de uma câmara ardente, e Marguerite, assassinada por seu amante, será amortalhada com seu vestido branco de inocência entre quatro círios de cera.

Comigo, porém, a barra do verdugo se quebrou na primeira pancada, como se fosse de vidro, as tochas do penitente se apagaram sob torrentes de chuva, a multidão se dispersou como os arroios transbordados e as corredeiras – e eu já perseguia outros sonhos ao despertar.


VIII
Meu bisavô


Naquele quarto tudo permanecia no mesmo estado, a não ser a tapeçaria, que estava completamente dilacerada, e as aranhas, que teciam suas teias no pó.
Walter Scott, Woodstock

As veneráveis personagens da tapeçaria gótica agitada pelo vento saudaram umas às outras, e meu bisavô entrou na peça – meu bisavô, que logo fará oitenta anos que morreu.

Aí! Aí mesmo, frente a este genuflexório, foi onde se ajoelhou meu bisavô, roçando levemente com sua barba o missal amarelo, aberto onde marca o indicador.

Durante toda a noite esteve balbuciando suas orações sem descruzar um só momento os braços sob a esclavina de seda violeta, sem sequer olhar obliquamente uma única vez em minha direção – eu, que sou sua posteridade, deitado na cama, sua poeirenta cama de dossel.

E me dei conta, com espanto, de que seus olhos estavam vazios quando aind apareciam ler; que seus lábios estavam imóveis, quando eu ainda o ouvia rezar; que seus dedos esavam descarnados, quando ainda cintilavam de pedrarias!

E evitei perguntar-me se velava ou se dormia; se era a lividez da lua ou de Lúcifer; se era meia-noite ou o amanhecer.


IX
Ondina

...E acreditava escutar
Uma vaga harmonia que meu sonho encantava,
Um sussurro próximo, semelhante, no ar,
Ao canto entrecortado de uma voz triste e terna.
Ch. Brugnot, Os dois gênios

- Escuta! Escuta! Sou eu, Ondina, quem toca levemente com gotas de água os sonoros losangos de tua janela iluminada por melancólicos raios de luar; e vê aí, vestida de tafetá, a dama do castelo que do balcão contempla a formosa noite estrelada e o belo lago adormecido.

“Cada onda é uma ondina que nada na corrente, cada corrente é um caminho que serpenteia até o meu palácio, e meu palácio é feito de matérias fluidas, no fundo do lago, no triângulo do fogo, da terra e do ar.”

“Escuta! Escuta! Meu pai, coaxando, fustiga a água com um ramo de amieiro verde; e minhas irmãs acariciam com seus braços de espuma as frescas ilhotas de erva, de nenúfar, de gladíolo, ou zombam do salgueiro decrépito e barbado que pesca com uma vara.”

Terminada a canção, suplicou-me pôr seu anel em meu dedo para ser esposo de uma ondina, e visitar com ela seu palácio e ser o rei dos lagos.

Como eu respondesse que amava uma mortal, zangada e despeitada verteu algumas lágrimas, soltou uma gargalhada e desvanesceu-se entre aguaceiros que escorriam claros em meus vidros azuis.


X
A salamandra


Lançou no fogo da chaminé um feixe de visco abençoado que ardeu crepitando.
Ch. Nodier, Trilby

- Grilo, meu amigo, estás morto para permanecer surdo ao meu silvo e cego ao esplendor do incêndio?

O grilo, porém, por muito afetuosas que fossem as palavras da salamandra, nada disse, seja porque dormia um mágico sono, seja porque teve o capricho de aborrecer-se.

- Oh! Canta-me tua canção como fazes todas as noites! Do teu esconderijo de cinza e fuligem atrás da placa de ferro coberta com três heráldicas flores-de-lis...

Tampouco respondeu o grilo. E a salamandra, desconsolada, ora esperava ouvir a voz, ora zumbia com a chama de cambiantes cores rosa, azul, amarelo, branco, violeta.

- Morreu, meu amigo! Morreu, e eu também quero morrer! – As lenhosas ramagens se haviam consumido, a chama arrastou-se sobre as brasas, disse adeus à corrente da chaminé, e a salamandra morreu de inanição.

[Aloysius Bertrand, Gaspard de La Nuit - citado por Jorge Luis Borges em Livro dos Sonhos]


Um comentário:

Nora Borges disse...

Pois sim...estou absolutamente encantada com seu blog, seus retalhos de letras e autores...
Quando percebi do que se tratava o espelho, fui começar lá de longe, lá do fundo da página... e li você, Hilst,Clarice, Cortázar... e fui querendo copiar coisas... mastigar lentamente as maravilhas que você cata pela sua biblioteca.
Vou voltar aqui e vou fazer de novo o caminho... que ainda falta muito pra chegar no seu dia de hoje.
Parabéns pela inciciativa, pelo bom gosto, pelo canto escuro cheio de estrelas.
Um grande abraço