terça-feira, novembro 16, 2004

Uma ou duas regras para o bem viver

Não se esqueça do relógio, que será fundamental para que não haja enganos tolos a pôr em risco todo um processo longamente mastigado, sofrido com antecedência. Escolha o dia e saiba que a hora deve ser duas e quinze, nem um minuto a mais ou a menos. Confira a previsão meteorológica: dias muito frios ou muito quentes arrefecem os ânimos, não prestam para o bem viver que estamos aqui a buscar, incansáveis e retos como quadrados. Também defina o local, dando preferência para hotéis antiquados, com cortinas grossas de veludo verde.

Depois destas primeiras providências, que são as mais importantes, se faz necessário escolher a música apropriada. Uma tarefa deliciosamente difícil; tantas as opções de qualidade! Sugiro que não se ultrapasse os limites da música clássica, a não ser que se considere capaz de encarar às duas e quinze, este momento de extrema relevância que está engendrando, um caótico e negro jazz. Aconselho que somente pessoas de muita coragem arrisquem-se pelos lados do jazz, porque este tipo de música tende a tornar o ouvinte disperso demais, além do que é preciso manter o foco.

Feita a escolha da música, vem a etapa das vestimentas. A roupa certa deverá ser folgada, permitindo o movimento, mas não perca de vista a elegância; tecidos nobres são fundamentais, assim como o corte correto e as cores em total acordo. Tons escuros e tons claros podem ser tranqüilamente combinados, mas tenha bom gosto e por favor, evite a todo custo o exagero. Roupas de baixo também devem ser meticulosamente selecionadas: confortáveis e vistosas.

Quando chegar o dia, desligue os telefones e não assista televisão. Evite conversar com quem quer que seja e vá ao local escolhido, o quarto de hotel antiquado com cortinas grossas de veludo verde. Você terá em mãos uma maleta e um aparelho de som portátil. Terá tomado um bom banho, feito a barba se homem, feito as unhas se mulher. Você então estará no caminho certo, pronto para o bem viver instantâneo que obterá a partir destas providências tão simples. Até duas e quinze você desfrutará de agradáveis momentos em solidão. Deixo para você decidir quais as quinquilharias que levará em sua prática valise de couro; trata-se de algo muito pessoal e assunto no qual ninguém pode dar palpite, mas penso que talvez seja oportuno carregar consigo um álbum de fotografias e, se você for um artista, seus instrumentos de trabalho para que possa, durante este exercício do bem viver, praticar um pouco, fixando o instante para todo o sempre.

O relógio, que não pára, avisa você que já são duas e treze. É tempo de se preparar, porque agora não terá outra escolha. Uma vez que já escolheu o método, não será difícil saber o que fazer. Isto, tal qual o conteúdo da valise, é exclusivamente de responsabilidade sua.

Duas e quinze, tarde amena e ventos brandos, um céu azul esticando-se por sobre a cidade, que você aprecia por detrás das cortinas verdes. É hora. Mas pulemos esta parte; você bem viveu por algumas horas e a música, bem como um triste aroma de musk, ainda ricocheteia pelas paredes do quarto.

[Marpessa]

9 comentários:

Nora Borges disse...

Belo texto, Marpessa. Belíssima composição de cenário, texturas e sons...Parabéns!

Anônimo disse...

FFF - www.ficcionista.blogger.com.br - Talvez eu não precise dos relógios. As horas me sufocam, me exaurem, me espremem. Talvez eu queira simplesmente entrar através do espelho... adorei a sinestesia do texto!!!! Abs sangrentos!!!

Neysi disse...

Ah! O momento perfeito...para o quê?
No conteúdo secreto da valise a vida, a morte e a liberdade. E o peso particular de nossas escolhas.
Adorei o texto!
Parabéns!

Andréa Muroni disse...

Virginianos. Sempre tentando engendrar momentos perfeitos.

Anônimo disse...

Simplesmente viver a preparação para algo seu - aquelas horas, cada uma delas, unidade convencional da ilusão de controle. Reservar, para si mesma, o tempo de si mesma - degustar essas horas - e quem sabe essa antecedência nem seja tão sofrida assim...

Uma ode às preliminares. E um brinde às tuas coloridas texturas.

Cada vez mais Marpessa, o menino azul.

Claudio Costa disse...

O tic-tac solene do carrilhão que mora dentro de mim acompanhou seu texto, pontuando minha respiração. Bom demais.

Anônimo disse...

Que texto. É escrita de se ouvir o som, sentir o cheiro e enxergar, meio que por trás do monitor, duas cortinas verdes se tocando, quem sabe se pelo vento.
Que ambiente! Puta qui pariu, não sabia que você escrivinhasse desse jeito. Parabéns à senhora...

Gabriel do Farofa
Atualizado: paocomfarofa.blog.uol.com.br

Anônimo disse...

E as suas palavras continuam ricocheteando
pelas paredes da minha alma...

http://moacircaetano.blog.uol.com.br

Anônimo disse...

Dentro da válise somente a pistola e a bala. No Medo não existe lirismo e nem poesia. É tempo chegado. Viveu o Horror por algumas horas e a música, bem como um ligeiro turíbulo meneado, exala o infausto aroma da Morte.