terça-feira, agosto 30, 2005

Para um roxo dia de sol de fevereiro

Este vazio de amor todos os dias: a cabeça pesada ao meio-dia, a boca amarga, um cheiro de sono e solidão nos cabelos, uma xícara de café bem forte espantando os arcanos da madrugada, e muitos cigarros, as roupas, o espelho, os colares, as pulseiras. Procuro e não acho. Mas saio para a rua todo de roxo, a barriga de fora.

O sol bate forte na cabeça. O sol bate forte e reflete na calçada e dissolve o corpo em gotas pegajosas escorrendo nojentas e brilhantes pelos braços e pelas pernas por baixo do roxo até cair sobre o asfalto formando pequenas poças que logo se evaporam subindo pelos raios do sol cor de cenoura de fevereiro para novamente descer do alto despertando o suor roxo adormecido no meu corpo.

E na esquina riem. Eu não ligo, mas riem e falam baixinho entre si, homens dispostos na calçada com as camisas abertas entre as verduras da tenda da esquina, os homens de pêlos aparecendo pelas aberturas da camisa cochicham entre si e riem. Mas eu piso firme e ergo a cabeça e dentro do meu roxo caminho só-rindo entre as verduras e os cochichos, e ninguém entende: mas silenciam e principiam a rir baixo, apenas para eles, e não têm coragem de dizer nada. Eu passo por seu silêncio irônico e perplexo, a minha bolsa oscila, é como se o sol coroasse minha cabeça e ninguém soubesse ao certo se rir ou calar, de espanto, porque nunca naquela rua passou alguém coroado por um sol roxo de fevereiro.

Depois são os corredores e as escadas e o balcão claro do bar e os grupos de pessoas que não distingo umas das outras, mas vou sorrindo, sou um projétil orientado até certo ponto, depois dele, e é agora o depois dele vou furando o desconhecido, violentando o mistério, vou penetrando no incompreensível, e sorrio para o inesperado, o corpo ereto projetado, e alguém me faz uma saudação oriental na porta de entrada e eu sorrio ainda mais largo: é alguém semelhante a um cão são bernardo, falta apenas o barrilzinho de chocolate, desses abençoados que riem o tempo todo e o tempo todo cantam e dizem coisas e soltam notas musicais por entre os pêlos espessos da barba e do cabelo grande.

E entro na sala e sinto que os olhares se debruçam sobre mim e cumprimento alguns e outros e não penso nada: gozo a glória deste momento e sei que brilho mesmo sem saber para onde vou. E tombo sobre a mesa e tento arranjar no rosto um ar compungido, qualquer coisa modesta e bucólica, à beira do perdão, um olhar no horizonte nas janelas do arquivo, para que me amem, para que se condoam, para que não se ofendam com meu sol de hoje.

Mas hoje. Hoje não. É impossível perdoar no meio destas máquinas histéricas e destas pessoas que tão pouco sabem de si destas calças desbotadas do feltro verde do jornal mural das vozes que passam misturando marchas de carnaval john lennon e carlos gardel é impossível sofrer entre os telefones que gritam e o suor que escorre e as laudas numeradas e as pilhas de jornais e livros e a porta que vezenquando abre libertando vanderléias comerciais e meninos de roupas coloridas e ar desvairado.

E hoje não. Que não me doa hoje o existir dos outros, que não me doa hoje pensar nessa coisa puída de todos os dias, que não me comovam os olhos alheios e a infinita pobreza dos gestos com que cada um tenta salvar o outro deste barco furado. Que eu mergulhe no roxo deste vazio de amor de hoje e sempre e suporte o sol das cinco horas posteriores, e posteriores, e posteriores ainda.

[Caio Fernando Abreu]

segunda-feira, agosto 22, 2005


Esboço de uma teoria que possa me explicar

Agora sei onde está o segredo: o segredo está na infância. Na verdade, eu sempre soube, mas não achava que fosse possível.

Como que para confirmar minha descoberta, o acaso colocou-me diante de uma das minhas notas para futuros textos:

Lembrança de infância: a idéia de que a casa dos fundos era a casa da tia -- a tentativa de construir o espaço de acordo com as vontades
-- na infância havia a vida verdadeira -- insights destas lembranças ou trechos deles no sonho.

Tal anotação reencontrada acabou por elucidar muitas coisas. A mais importante delas é a de que o meu desejo profundo de resgatar pedaços da infância é uma constante da qual não posso me livrar. Isso se fecha em um círculo: meus insights recorrentes pontuam o que escrevo; e o que escrevo é, sobretudo, o desejo manifesto de (re)viver.

Outra revelação que me trouxe essa anotação foi a clara certeza de que existem, na infância, momentos tão complexos permeados por tanta epifania, que me parece lógico transformar isso em literatura, como uma espécie de exegese da vida. Na infância habita o ponto onde tudo se une (o Aleph, ou coisa que o valha), no qual vão dar todos os caminhos, incluindo esse mesmo instante, essas palavras, esse Eu formado por tantas camadas sobrepostas.

Quanto mais penso na infância, mais essa impressão se expande. Posso relacionar dezenas de momentos onde “tudo pareceu ser como realmente é”. Rememoro meu olhar sobre as coisas e sinto muito profundamente cada viva impressão, e cada uma dessas vivas impressões como sendo uma pincelada no quadro.

Observar uma veneziana “ao contrário” e ver em cada pedaço de madeira uma coluna, cada vão um amplo espaço no qual dança um casal de noivos. Enroscar-me em uma teia de aranha. Aprisionar borboletas e logo soltá-las, porque muito feias, e também a piedade. Girar, girar muitas vezes e deitar-me no chão, ver o mundo cair devagar. Inventar sistemas lógico com números e formas, sem jamais deixar de seguir as “regras” criadas. Brincar com espelhos um diante do outro, angustiar-se ao infinito. Fingir morar em um túmulo. Criar cobras imaginárias. Perder-se na visão do mundo dentro das bolinhas de gude. Tentar surpreender os brinquedos conversando. Escrever enciclopédias – projetá-las, na verdade. Entreter-se por horas na visão de coisas muito, muito pequenas: formigas, bolhas da espuma do sabão, a trama dos tecidos, grãos de areia, pétalas. Olhar tudo através de frascos de perfume. Ver dentro de um copo d’água a grande caverna dentro de uma baleia.

Experimentos sem bloqueio. A liberdade desenfreada, a percepção clara: surrealismo.

Trata-se de desmascarar a realidade, ou, antes, apresentá-la sob filtros diferentes, mostrando que “tudo” pode existir, que “tudo” existe, e o que existe pode virar arte. As mulheres de Picasso existem tanto quanto as de Renoir. As criaturas de Bosch são tão reais quanto as dançarinas de cabaré de Toulouse-Lautrec. A questão é que há muitas realidades, emparelhadas, simultâneas, sobrepostas, paralelas, transversais...Oníricas, inconscientes, reais-concretas, reais-abstratas... São infinitas, as realidades, e talvez mesmo a palavra “realidade” seja insuficiente. Os quarks existem? As cordas existem? Pressupõe-se que sim, dados os experimentos quânticos, porém ninguém os vê. Ainda assim, eles “são”, e mais: fazem parte da ciência. Assim as múltiplas realidades. Mas isso tudo já foi vislumbrado por sábios antigos e por cientistas.

Nada, então: nem experimentos dadaístas, nem o Ulisses, nem a Commedia, nem relatos de viagem (por falar em Commedia!); nada disso situa-se “fora” do Real Absoluto. O chamado realismo fantástico é um derivado especial do Surrealismo, creio, mas tudo deveria ser considerado Realismo, todas as escolas artísticas e literárias: tudo é REAL.

A arte é real (na falta de melhor definição). Daí apreende-se que a arte não só “imita” ou representa a vida, como é a própria vida.Não é possível distinguir a vida da arte, e nem a arte da vida.

[Marpessa]

sábado, agosto 20, 2005

A propósito:

Tem texto meu e do Gil no Patife. Vão lá ver.
Ninfolepsia

Claro, já sabíamos o que viria. Posicionei-me contra a luz da janela, deixando as cortinas cobrirem pedaços do meu corpo. Ao crepúsculo, minha pele ganhou tons alaranjados. Eu não usava nada além do tecido transparente das cortinas.

Fiquei. Olhos me perseguiam, captando meus gestos mínimos, até mesmo o suave erguer do peito a cada inspiração. O rosto do homem abriu-se como se um sol estivesse explodindo. Ouvi-o arfar, gemer. Tive asco.

Notei então uma pequena aranha que construía sua casa na veneziana encardida. Alheia, inconsciente. Tremi. Ignorava-me, a aranha, ao passo que, para o homem na cama, eu era o mundo. Algo não parecia certo, afinal.

Por um instante senti que a aranha me observava, censora da minha leviandade, acusando-me no movimento tímido das quelíceras. Quanto mais eu me esforçava para não notá-la, mais perdia a noção dos meus movimentos. O homem mexia-se muito, sobre a cama. Gritei.

Nada havia a fazer, e por isso vesti-me apressada, sob o olhar e as palavras do homem, que não me lembro, não vale a pena pensar. Saí.

[Marpessa]

domingo, agosto 14, 2005

Sumidouro

Um homem e uma mulher caminhavam de mãos dadas pelo parque. Subitamente, nuvens encobriram o sol. Logo, encobriram também a luz. No escuro, homem e mulher abraçaram-se, temendo o pior.

Enquanto discutiam nervosamente sobre o que fazer e que direção seguir, ambos sentiram que havia alguém muito próximo, observando-os de certa altura e rindo-se deles. A mulher tremeu de pavor e o homem, corajoso, ergueu os olhos.

Espanto. Risos mais altos. Um par de olhos. Uma chama imensa surgiu, como um sol alaranjado incandescente do qual se desprendia uma fumaça branca. Não entenderam. Sentiram frio. E perceberam que algo mais acontecia ali.

Era como se a luz estivesse voltando. A escuridão começou a dissipar-se em um horizonte branco, infinito. Homem e mulher permaneceram imóveis; o parque estava sendo tragado pela luz branca. Logo eles também seriam. Os olhos agora estavam bem abertos, e o sol alaranjado ia aos poucos se desfazendo em fumaça.

Quando a luz branca os alcançou, o casal soube que jamais voltaria a caminhar de mãos dadas pelo parque. Não havia mais um parque, não havia mais homem e mulher e logo a consciência de homem e mulher também desapareceria.

Bastou um instante e um grito: homem e mulher nunca existiram, de fato.

[Marpessa]

quarta-feira, agosto 03, 2005

Lepidópteros

Ordem de insetos, cujos indivíduos perfeitos são vulgarmente conhecidos por borboletas. Assim está no dicionário. Décio pegou sua rede e saiu à caça. Certamente conseguiria alguns exemplares interessantes.

Era manhã, o jardim brilhava. Décio apanhou uma, duas, três; guardou-as em vidros transparentes, tampados, com perfurações para que os bichinhos respirassem. Quando cansou-se, o estudioso de lepidópteros, o apanhador de borboletas, juntou seus vidros e foi para casa.

Depois de uma tarde comprida e morna, Décio pensou que não havia o que fazer com as borboletas. Fixou uma, que lhe sorria desesperadamente. Asas vermelhas. Parecia esperar por uma decisão de seu algoz. Décio lhe sorriu de volta e se sentiu dentro do vidro.

Movido por estranhos sentimentos, decidiu libertá-las. Não havia porquê mantê-las. E elas se foram, carregando pedacinhos de tempo. Novamente inefáveis.


[Marpessa]
Turfa

Passeava pela rua vendo sua beleza escorregar pela superfície das vitrines. Nada mais agradável a uma mulher que ver-se refletida. No entanto, ninguém jamais vira o que Ana estava vendo, diante de uma loja de sapatos.

Dentro da loja, sombras. No vidro, Ana. Dentro da loja, sombras sustentadas por ossos. No vidro, Ana acinzentada. Dentro, sombras sustentadas por ossos que se moviam com dificuldade. Fora, Ana acinzentada, acompanhando com olhos túrgidos o pôr-do-sol à sua direita.

Um sonho espantoso? As caveiras tinham rostos esponjosos e escuros. Ana mirava-se sabendo que um espelho reproduz a realidade. Em silêncio absoluto, afastou-se dali para nunca mais mirar-se novamente.

[Marpessa]

terça-feira, agosto 02, 2005

Nosce te ipsum

Lady Catherine suicidou-se, situação inquestionável porque fora encontrada pendurada pelo pescoço, o corpo ainda quente. A bela dama deixara um bilhete enigmático, mistério para família e polícia. Os jornais exploraram o caso, especularam, armou-se um escândalo; o que ninguém soube, no entanto, é que no espelho de lady Catherine havia uma aranha.

Não nos caberá, aqui, questionar as falhas das leis naturais, as surpresas e o constrangimento que provocam tais leis quando falham. Um dia a moça olhou-se no espelho e avistou a aranha grudada nele, bem no lugar onde o aço refletia seu olho direito. Não era uma aranha grande, mas ocupava todo o espaço do olho direito de lady Catherine e lady Catherine não gostou de ver seu olho direito sendo ocupado por uma aranha que nem era tão grande assim.

Com uma folha de jornal enrolada, aproximou-se do espelho enquanto a aranha, apesar de imóvel, passeava sobre seu rosto refletido, dos olhos à boca, da boca ao queixo, do queixo à garganta. Trêmula, a aranha deslizava sem querer sobre o reflexo, e o reflexo estava agora encolerizado. Mas, em vez de bater o jornal na aranha, lady Catherine aproximou o rosto do espelho, ficando assim a uns quinze centímetros de distância do inseto que neste instante voltou a ocupar o olho direito de lady Catherine sem no entanto preenchê-lo completamente como antes, posicionando-se sobre a pupila.

Era possível enxergar o movimento das quelíceras. O corpinho rajado pulsava em silêncio, lady Catherine em silêncio sentiu pena da aranha e durante dois minutos nada aconteceu. Então, o olho direito de lady Catherine começou a mover-se pelo espelho, primeiro subindo, depois andando mais à direita, desenhando uma curva irregular para depois tornar a subir, sem pressa, é verdade, e até parando por alguns segundos antes de empreender algum movimento mais complexo.

Horrorizada, lady Catherine via com seu olho esquerdo o caminhar seco de seu olho direito, sem que pudesse tomar nenhuma providência a não ser matá-lo com o jornal que estava ainda em sua mão, matá-lo antes que fosse tarde, evitar a todo custo o desastre social e moral. Apavorou-se ainda mais quando viu seu olho quase abandonando a superfície do espelho para na certa alcançar a parede e depois o teto. Era necessário impedi-lo.

O bilhete final de lady Catherine era bastante mal escrito, posto que a dama havia cometido um assassinato e estava prestes a suicidar-se. Por tudo isso, é certo que não estivesse em condições de enxergar com clareza as linhas por onde corria a pena – lembrando que lhe restava apenas um olho, o esquerdo. Era como uma dança, as letras tremidas, irregulares, se acabando repentinamente, como se a pena houvesse escapado para fora da superfície branca, das linhas azuis. E se no bilhete lady Catherine falara em aranha, ninguém soube notá-lo, assim como ninguém pôde compreender por que razão havia escrito três vezes, em tão acanhado pedaço de papel, a palavra fome.

[Marpessa - publicado na edição #5 do Aquele]