Pois logo a mim, tão cheia de garras e sonhos, coubera arrancar de seu coração a flecha farpada. De chofre explicava-se para que eu nascera com mão dura, e para que eu nascera sem nojo da dor. Para que te servem essas unhas longas? Para te arranhar de morte e para arrancar os teus espinhos mortais, responde o lobo do homem. Para que te serve essa cruel boca de fome? Para te morder e para soprar a fim de que eu não te doa demais, meu amor, já que tenho que te doer, eu sou o lobo inevitável pois a vida me foi dada. Para que te servem essas mãos que ardem e prendem? Para ficarmos de mãos dadas, pois preciso tanto, tanto, tanto - uivaram os lobos e olharam intimidados as próprias garras antes de se aconchegarem um no outro para amar e dormir.
[Clarice Lispector, trecho do conto Os desastres de Sofia, in Felicidade Clandestina]
CASA, s.f. edifício destinado a habitação. et coetera. ESPELHO, s.m. superfície brilhante e polida que reflete os raios luminosos ou a imagem dos objetos. et coetera.
quinta-feira, setembro 16, 2004
Grifo escapa e provoca pânico em São Paulo
Da Redação – Na tarde de ontem, o Corpo de Bombeiros foi chamado para atender a uma ocorrência incomum: capturar um grifo que se acomodara no alto de um edifício, localizado na rua 21 de Setembro. O animal, metade águia e metade leão, fugira de seu dono, João Silva, que o levava preso a uma corrente. Segundo relatos de transeuntes, o grifo libertou-se e correu, afugentando diversas pessoas e derrubando algumas bancas de camelôs. Logo em seguida alçou vôo, emitindo um som alto e agudo.
Após várias tentativas, a equipe de dez bombeiros conseguiu lançar uma rede sobre o animal e imobilizá-lo. Em seguida, foram disparados dardos contendo tranqüilizante, o que fez o grifo, de mais de 2 metros de comprimento, adormecer profundamente. O animal foi levado ao Zoológico Especial de São Paulo, onde se encontram outras criaturas míticas.
Silva disse à Polícia que o grifo é manso, foi domesticado e alimenta-se exclusivamente de vegetais. Ele diz ter aprisionado o animal em janeiro de 2002, quando o encontrou pousado na plantação de abóboras de seu sítio, na cidade de Águas Compridas (interior de São Paulo). O animal foi mantido no sítio por 15 dias e depois trazido à capital, sendo mantido desde então no quintal da casa de Silva, na Vila dos Heliotrópios. A polícia afirmou que José Silva será indiciado por crime ambiental (manter criatura mítica em cativeiro sem autorização do IBAMA), e poderá cumprir pena de 1 a 3 anos de prisão.
Filhote – O grifo foi examinado pelos biólogos do Zoológico Especial e está em boas condições. Segundo a equipe, o animal é um filhote, com 6 meses de idade e 500 quilos. A metade águia é coberta por penas longas, de um vermelho vivo, e a metade leão é de pelagem castanha e curta. Os especialistas afirmam que o grifo provavelmente estava à procura de comida, e por isso aproximou-se de uma região habitada. “Eles vivem no alto das montanhas e somente descem se não encontram outro meio de garantir a sobrevivência”, explicou Joaquim dos Santos, biólogo-chefe do Zoológico. Segundo ele, tais ocorrências tornaram-se relativamente comuns nos últimos quinze anos, devido ao desequilíbrio ecológico nas regiões montanhosas. “Este grifo, com certeza, veio da Serra das Cordas”, acredita. A cidade de Águas Compridas localiza-se a 30 quilômetros do ponto mais alto da serra.
O Zoológico Especial abriga hoje mais de cem animais míticos, muitos dos quais descobertos em poder de contrabandistas. Dentre as diversas criaturas está um basilisco de 50 anos, mantido sob rigorosa vigilância. A instituição abriga também um casal de fênix, oito sereias, um filhote de dragão, seis unicórnios (dois deles sem os chifres) e uma hidra de doze cabeças.
Fascínio - Desde muito tempo os seres míticos excitam a curiosidade humana. Centenas de relatos fazem referências a todo tipo de criatura fantástica, incluindo hominídeos (gigantes, pigmeus) e entidades zoomórficas. Hoje, além dos espécimes que vivem em circos e zoológicos especiais em todo o mundo, alguns mais raros vêm sendo encontrados com freqüência. O caso mais notório é do yeti, primata gigante das montanhas do Nepal, já visto por muitas pessoas. Nessie, o monstro do Lago Ness, é outro exemplo famoso, assim como as harpias da Grécia, o minotauro cretense (que, de acordo com relatos recentes, habita um labirinto subterrâneo) e os cinocéfalos da América Central.
No entanto, essa proximidade com seres que até alguns anos eram tidos como imaginários tem gerado uma discussão que promete se estender por muito tempo. José de Souza, presidente do Instituto Anglo-Americano de Paraciências, teme a relação quase íntima que o homem vem estabelecendo com as criaturas míticas. “Vivemos entre monstros de bestiário, essa é a verdade. Os mitos saltam das lendas para a nossa realidade; logo, não haverá mais espaço para a espécie humana”, acredita. Já o cientista Pedro Soares, diretor do departamento de Zoologia Fantástica da USP, prevê vantagens na descoberta e observações in loco destes fenômenos. “As criaturas existem e, por isso, devem ser estudadas e protegidas, não negadas. Aprenderemos muito com isso”.
Dentre os escritores, as opiniões também divergem. K.M. (ele pede para não ser identificado) afirmou que a presença de grifos e de outros seres míticos entre nós acabará com o gênero de literatura fantástica, que com freqüência os “utiliza” como personagem. “Como chamaremos de fantástico o que não é mais fantástico? Se estas criaturas estão sendo aprisionadas e analisadas, deixam de ser incríveis e de alimentar o imaginário dos leitores”, acredita. E faz um apelo: “Deixemos os animais fantásticos em paz, pelo bem da literatura”.
Outro escritor, que pediu total anonimato, discorda: “A imaginação está dentro, e não fora. Os animais do cotidiano, por exemplo, continuam sendo bons temas, bons personagens. O importante é o que se faz com eles, sob qual prisma são vistos, como são apresentados e sob quais circunstâncias vivem dentro da história que se pretende contar”, declarou, acrescentando que o caso da captura do grifo poderá ser um excelente tema literário. “Alguém vai escrever sobre isso, pode apostar”, conclui.
[Marpessa]
Da Redação – Na tarde de ontem, o Corpo de Bombeiros foi chamado para atender a uma ocorrência incomum: capturar um grifo que se acomodara no alto de um edifício, localizado na rua 21 de Setembro. O animal, metade águia e metade leão, fugira de seu dono, João Silva, que o levava preso a uma corrente. Segundo relatos de transeuntes, o grifo libertou-se e correu, afugentando diversas pessoas e derrubando algumas bancas de camelôs. Logo em seguida alçou vôo, emitindo um som alto e agudo.
Após várias tentativas, a equipe de dez bombeiros conseguiu lançar uma rede sobre o animal e imobilizá-lo. Em seguida, foram disparados dardos contendo tranqüilizante, o que fez o grifo, de mais de 2 metros de comprimento, adormecer profundamente. O animal foi levado ao Zoológico Especial de São Paulo, onde se encontram outras criaturas míticas.
Silva disse à Polícia que o grifo é manso, foi domesticado e alimenta-se exclusivamente de vegetais. Ele diz ter aprisionado o animal em janeiro de 2002, quando o encontrou pousado na plantação de abóboras de seu sítio, na cidade de Águas Compridas (interior de São Paulo). O animal foi mantido no sítio por 15 dias e depois trazido à capital, sendo mantido desde então no quintal da casa de Silva, na Vila dos Heliotrópios. A polícia afirmou que José Silva será indiciado por crime ambiental (manter criatura mítica em cativeiro sem autorização do IBAMA), e poderá cumprir pena de 1 a 3 anos de prisão.
Filhote – O grifo foi examinado pelos biólogos do Zoológico Especial e está em boas condições. Segundo a equipe, o animal é um filhote, com 6 meses de idade e 500 quilos. A metade águia é coberta por penas longas, de um vermelho vivo, e a metade leão é de pelagem castanha e curta. Os especialistas afirmam que o grifo provavelmente estava à procura de comida, e por isso aproximou-se de uma região habitada. “Eles vivem no alto das montanhas e somente descem se não encontram outro meio de garantir a sobrevivência”, explicou Joaquim dos Santos, biólogo-chefe do Zoológico. Segundo ele, tais ocorrências tornaram-se relativamente comuns nos últimos quinze anos, devido ao desequilíbrio ecológico nas regiões montanhosas. “Este grifo, com certeza, veio da Serra das Cordas”, acredita. A cidade de Águas Compridas localiza-se a 30 quilômetros do ponto mais alto da serra.
O Zoológico Especial abriga hoje mais de cem animais míticos, muitos dos quais descobertos em poder de contrabandistas. Dentre as diversas criaturas está um basilisco de 50 anos, mantido sob rigorosa vigilância. A instituição abriga também um casal de fênix, oito sereias, um filhote de dragão, seis unicórnios (dois deles sem os chifres) e uma hidra de doze cabeças.
Fascínio - Desde muito tempo os seres míticos excitam a curiosidade humana. Centenas de relatos fazem referências a todo tipo de criatura fantástica, incluindo hominídeos (gigantes, pigmeus) e entidades zoomórficas. Hoje, além dos espécimes que vivem em circos e zoológicos especiais em todo o mundo, alguns mais raros vêm sendo encontrados com freqüência. O caso mais notório é do yeti, primata gigante das montanhas do Nepal, já visto por muitas pessoas. Nessie, o monstro do Lago Ness, é outro exemplo famoso, assim como as harpias da Grécia, o minotauro cretense (que, de acordo com relatos recentes, habita um labirinto subterrâneo) e os cinocéfalos da América Central.
No entanto, essa proximidade com seres que até alguns anos eram tidos como imaginários tem gerado uma discussão que promete se estender por muito tempo. José de Souza, presidente do Instituto Anglo-Americano de Paraciências, teme a relação quase íntima que o homem vem estabelecendo com as criaturas míticas. “Vivemos entre monstros de bestiário, essa é a verdade. Os mitos saltam das lendas para a nossa realidade; logo, não haverá mais espaço para a espécie humana”, acredita. Já o cientista Pedro Soares, diretor do departamento de Zoologia Fantástica da USP, prevê vantagens na descoberta e observações in loco destes fenômenos. “As criaturas existem e, por isso, devem ser estudadas e protegidas, não negadas. Aprenderemos muito com isso”.
Dentre os escritores, as opiniões também divergem. K.M. (ele pede para não ser identificado) afirmou que a presença de grifos e de outros seres míticos entre nós acabará com o gênero de literatura fantástica, que com freqüência os “utiliza” como personagem. “Como chamaremos de fantástico o que não é mais fantástico? Se estas criaturas estão sendo aprisionadas e analisadas, deixam de ser incríveis e de alimentar o imaginário dos leitores”, acredita. E faz um apelo: “Deixemos os animais fantásticos em paz, pelo bem da literatura”.
Outro escritor, que pediu total anonimato, discorda: “A imaginação está dentro, e não fora. Os animais do cotidiano, por exemplo, continuam sendo bons temas, bons personagens. O importante é o que se faz com eles, sob qual prisma são vistos, como são apresentados e sob quais circunstâncias vivem dentro da história que se pretende contar”, declarou, acrescentando que o caso da captura do grifo poderá ser um excelente tema literário. “Alguém vai escrever sobre isso, pode apostar”, conclui.
[Marpessa]
[...]
e tanto sofrimento por estar, às vezes sem nem saber, à cata de prazeres. não sei como esperar que eles venham sozinhos. e é tão dramático: basta olhar numa boate à meia-luz os outros: a busca do prazer que não vem sozinho e de si mesmo. a busca do prazer me tem sido água ruim: colo a boca e sinto a bica enferrujada, escorrem dois pingos de água morna: é a água seca. não, antes o sofrimento legítimo que o prazer forçado.
[Clarice Lispector]
e tanto sofrimento por estar, às vezes sem nem saber, à cata de prazeres. não sei como esperar que eles venham sozinhos. e é tão dramático: basta olhar numa boate à meia-luz os outros: a busca do prazer que não vem sozinho e de si mesmo. a busca do prazer me tem sido água ruim: colo a boca e sinto a bica enferrujada, escorrem dois pingos de água morna: é a água seca. não, antes o sofrimento legítimo que o prazer forçado.
[Clarice Lispector]
quarta-feira, setembro 15, 2004
Como se passa ao lado
As descobertas importantes se fazem em circunstâncias e nos lugares mais insólitos. A maçã de Newton, veja só se não é coisa para a gente ficar espantado. Ocorreu-me, em meio a uma reunião de negócios, pensar sem saber por que em gatos - que não tinham nada a ver com a ordem do dia - e descobrir repentinamente que os gatos são telefones. Bem assim, como sempre com as coisas geniais.
É natural, uma descoberta dessas suscita uma certa surpresa, posto que ninguém está habituado a que os telefones vão e venham e sobretudo que bebam leite e adorem peixes. Custa tempo compreender que se trata de telefones especiais no sentido de que até agora não tínhamos compreendido que os gatos eram telefones e, portanto, não tínhamos pensado em utilizá-los.
Dado que esta negligência remonta à mais alta antiguidade, pouco se pode esperar das comunicações que conseguimos estabelecer a partir da minha descoberta, pois é evidente a falta de um código que nos permita compreender as mensagens, sua procedência e a índole daqueles que no-las enviam. Não se trata, como já se terá percebido, de tirar do gancho um tubo inexistente para discar um número que nada tem a ver com os nossos algarismos, e muito menos compreender o que do outro lado possam estar nos dizendo por algum motivo igualmente confuso. Que o telefone funciona, todo gato o prova com uma honradez mal correspondida por parte dos assinantes bípedes; ninguém negará que seu telefone negro, branco, cinzento ou angorá chega a cada momento com um ar decidido, pára aos pés do assinante e produz uma mensagem que nossa literatura primária e patética translitera burramente em forma de miaus e outros fonemas parecidos. Verbos sedosos, felpudos adjetivos, frases simples como estas mas sempre escorregadias e glicerinadas formam um discurso que em alguns casos se relaciona com a fome, em cuja oportunidade o telefone não é nada mais que um gato, mas muitas vezes expressa-se com absoluta prescindência de sua pessoa, o que prova que um gato é um telefone.
Preguiçosos e pretensiosos, deixamos passar milênios sem responder às chamadas, sem nos interrogar de onde vinham, quem estava do outro lado dessa linha que um rabo trêmulo cansou de nos mostrar em qualquer casa do mundo. De que me serve e os serve essa minha descoberta? Todo gato é um telefone mas todo homem é um pobre homem. Sabe-se lá o que continuam nos dizendo, os caminhos que nos mostram; de minha parte só tenho sido capaz de discar em meu telefone comum o número da universidade para a qual trabalho, e anunciar quase envergonhadamente minha descoberta. Parece inútil mencionar o silêncio de tapioca congelada com que a receberam os sábios que respondem a este tipo de chamadas.
[Julio Cortázar]
As descobertas importantes se fazem em circunstâncias e nos lugares mais insólitos. A maçã de Newton, veja só se não é coisa para a gente ficar espantado. Ocorreu-me, em meio a uma reunião de negócios, pensar sem saber por que em gatos - que não tinham nada a ver com a ordem do dia - e descobrir repentinamente que os gatos são telefones. Bem assim, como sempre com as coisas geniais.
É natural, uma descoberta dessas suscita uma certa surpresa, posto que ninguém está habituado a que os telefones vão e venham e sobretudo que bebam leite e adorem peixes. Custa tempo compreender que se trata de telefones especiais no sentido de que até agora não tínhamos compreendido que os gatos eram telefones e, portanto, não tínhamos pensado em utilizá-los.
Dado que esta negligência remonta à mais alta antiguidade, pouco se pode esperar das comunicações que conseguimos estabelecer a partir da minha descoberta, pois é evidente a falta de um código que nos permita compreender as mensagens, sua procedência e a índole daqueles que no-las enviam. Não se trata, como já se terá percebido, de tirar do gancho um tubo inexistente para discar um número que nada tem a ver com os nossos algarismos, e muito menos compreender o que do outro lado possam estar nos dizendo por algum motivo igualmente confuso. Que o telefone funciona, todo gato o prova com uma honradez mal correspondida por parte dos assinantes bípedes; ninguém negará que seu telefone negro, branco, cinzento ou angorá chega a cada momento com um ar decidido, pára aos pés do assinante e produz uma mensagem que nossa literatura primária e patética translitera burramente em forma de miaus e outros fonemas parecidos. Verbos sedosos, felpudos adjetivos, frases simples como estas mas sempre escorregadias e glicerinadas formam um discurso que em alguns casos se relaciona com a fome, em cuja oportunidade o telefone não é nada mais que um gato, mas muitas vezes expressa-se com absoluta prescindência de sua pessoa, o que prova que um gato é um telefone.
Preguiçosos e pretensiosos, deixamos passar milênios sem responder às chamadas, sem nos interrogar de onde vinham, quem estava do outro lado dessa linha que um rabo trêmulo cansou de nos mostrar em qualquer casa do mundo. De que me serve e os serve essa minha descoberta? Todo gato é um telefone mas todo homem é um pobre homem. Sabe-se lá o que continuam nos dizendo, os caminhos que nos mostram; de minha parte só tenho sido capaz de discar em meu telefone comum o número da universidade para a qual trabalho, e anunciar quase envergonhadamente minha descoberta. Parece inútil mencionar o silêncio de tapioca congelada com que a receberam os sábios que respondem a este tipo de chamadas.
[Julio Cortázar]
terça-feira, setembro 14, 2004
Sleepyhead
O relógio toca.
Não quero levantar.
Toca de novo.
Penso Go to the Hell, horário matinal, quero ficar aqui. Lá fora tem muita gente, muito frio, estou no útero do edredom azul e é aqui mesmo que pretendo permanecer ATÉ que eu me canse ou precise atender a alguma necessidade física.
Só que – eis o problema – o relógio está alheio a tudo. Ele não se importa. É um mecanismo apenas, e se ele tocou, veja só você, é porque foi programado para isso. Naturalmente, por você mesma.
E por isso mesmo ele toca mais uma vez. E eu o desligo mais uma vez. A quem estou enganando, não é mesmo? Ele vai continuar tocando de dez em dez minutos, pelo menos enquanto eu não tomar a providência de desligá-lo definitivamente. Só que este relógio é a força que me faz arrastar o corpo, primeiro os pés, depois as pernas, enfim estou sentada sobre a cama, tonta e perdida, para ficar de pé, cambalear até o chuveiro e começar a viver. Eis o motivo; dependo dele. Sem ele não serei nada mais do que um corpo enterrado sob o edredom. Sem ele não conseguirei tornar-me alguém, começar o dia, dar alguns passos para diante, cumprir minhas obrigações, ganhar meu dinheiro.
Pois bem: está frio do lado de fora do edredom e meus olhos continuam pesadíssimos. Os músculos estão completamente adormecidos, apesar da mente já estar relativamente alerta.
Mais uma vez, o relógio.
Fico imaginando, do fundo do meu travesseiro, o dia idiota que terei. Falar, oh, Deus, falar com tanta gente e decidir tantas coisas para atender aos desejos dos outros, e cumprir tarefas mecânicas que me desanimam, ou tarefas cerebrais que me enlouquecem. Tarefas são tarefas, e existem para serem cumpridas da melhor maneira possível. E eu tenho, eu preciso, eu devo levantar desta cama quente e macia, tenho que sair daqui.
Mas tudo isso que sigo pensando só faz chumbar meu corpo ainda mais. Estou pregada no colchão.
Dispenso a tarefa de viver este dia. Não vale o esforço.
Quase adormeço. Mas o alarme soa novamente. Estou começando a me atrasar. Perco-me em desolação – agora terei de correr para chegar a tempo. Tempo? Eu jamais chego a tempo. Estou sempre e permanentemente atrasada porque não me agrada a idéia de sair da cama. Porque sempre acontece de eu me perder em considerações sobre a necessidade de enfrentar cada dia, naquela mesma hora – porque pelo menos não pode ser mais tarde? Além disso, o corpo não pensa. Ele permanece onde está, enquanto a mente sofre e debate e tenta e empurra e joga e nada consegue.
Luta inglória. Não adianta. A briga é outra. Pobre relógio. Tão útil, tão importante, e agora estou querendo quebrá-lo.
[Marpessa - experimento antigo que era para ser outra coisa e deu nisso aí]
O relógio toca.
Não quero levantar.
Toca de novo.
Penso Go to the Hell, horário matinal, quero ficar aqui. Lá fora tem muita gente, muito frio, estou no útero do edredom azul e é aqui mesmo que pretendo permanecer ATÉ que eu me canse ou precise atender a alguma necessidade física.
Só que – eis o problema – o relógio está alheio a tudo. Ele não se importa. É um mecanismo apenas, e se ele tocou, veja só você, é porque foi programado para isso. Naturalmente, por você mesma.
E por isso mesmo ele toca mais uma vez. E eu o desligo mais uma vez. A quem estou enganando, não é mesmo? Ele vai continuar tocando de dez em dez minutos, pelo menos enquanto eu não tomar a providência de desligá-lo definitivamente. Só que este relógio é a força que me faz arrastar o corpo, primeiro os pés, depois as pernas, enfim estou sentada sobre a cama, tonta e perdida, para ficar de pé, cambalear até o chuveiro e começar a viver. Eis o motivo; dependo dele. Sem ele não serei nada mais do que um corpo enterrado sob o edredom. Sem ele não conseguirei tornar-me alguém, começar o dia, dar alguns passos para diante, cumprir minhas obrigações, ganhar meu dinheiro.
Pois bem: está frio do lado de fora do edredom e meus olhos continuam pesadíssimos. Os músculos estão completamente adormecidos, apesar da mente já estar relativamente alerta.
Mais uma vez, o relógio.
Fico imaginando, do fundo do meu travesseiro, o dia idiota que terei. Falar, oh, Deus, falar com tanta gente e decidir tantas coisas para atender aos desejos dos outros, e cumprir tarefas mecânicas que me desanimam, ou tarefas cerebrais que me enlouquecem. Tarefas são tarefas, e existem para serem cumpridas da melhor maneira possível. E eu tenho, eu preciso, eu devo levantar desta cama quente e macia, tenho que sair daqui.
Mas tudo isso que sigo pensando só faz chumbar meu corpo ainda mais. Estou pregada no colchão.
Dispenso a tarefa de viver este dia. Não vale o esforço.
Quase adormeço. Mas o alarme soa novamente. Estou começando a me atrasar. Perco-me em desolação – agora terei de correr para chegar a tempo. Tempo? Eu jamais chego a tempo. Estou sempre e permanentemente atrasada porque não me agrada a idéia de sair da cama. Porque sempre acontece de eu me perder em considerações sobre a necessidade de enfrentar cada dia, naquela mesma hora – porque pelo menos não pode ser mais tarde? Além disso, o corpo não pensa. Ele permanece onde está, enquanto a mente sofre e debate e tenta e empurra e joga e nada consegue.
Luta inglória. Não adianta. A briga é outra. Pobre relógio. Tão útil, tão importante, e agora estou querendo quebrá-lo.
[Marpessa - experimento antigo que era para ser outra coisa e deu nisso aí]
segunda-feira, setembro 13, 2004
Encontraria a Maga? Tantas vezes bastara-me chegar, vindo pela Rue de Seine, ao arco que dá para o Quai de Conti, e mal a luz cinza e esverdeada que flutua sobre o rio me deixava entrever as formas, já sua delgada silhueta se inscrevia no Pont des Arts, por vezes andando de um lado para o outro da ponte, outras vezes imóvel, debruçada sobre o parapeito de ferro, olhando a água. E era muito natural eu atravessar a rua, subir as escadas da ponte, dar mais alguns passos e aproximar-me da Maga, que sorria sempre, sem surpresa, convencida, como eu, de que um encontro casual era o menos casual em nossas vidas e de que as pessoas que marcam encontros exatos são as mesmas que precisas de papel pautado para escrever ou que começam a apertar pela parte de baixo o tubo da pasta de dentes.
[Julio Cortázar, O Jogo da Amarelinha, primeiríssimo parágrafo que na minha opinião define todo o restante do livro]
[Julio Cortázar, O Jogo da Amarelinha, primeiríssimo parágrafo que na minha opinião define todo o restante do livro]
dentro da poeira espessa que assentou sobre teu corpo enquanto dormias eu me movo, arquiteto essas armadilhas e me surpreendo nas tramas impostas, conluios que fazes contra mim nas grades do sono que não te aprisionam, não vês assim, mas que te protegem de mim, prestímano desse amor, deixas escorrer sobre mim um véu de poucas verdades, enquanto distancias a si mesma de cada gesto ou se deixa levar inquisidora a propósito de um feitiço carnal, cavalgando sonâmbula e maldita no dorso possante desse corpo ficcional que possui a maior e mais gratificante das promessas de não ser eu mesmo, minha saliva tu disseste te inunda a boca como coriza, não te beijo então, assinto, e se antes te identificavas acomodada num vinco perdido no mais secreto da minha mão, agora somente sinto na ponta dos dedos a sutileza dos teus poucos pêlos atiçados e eriçados, traidores maléficos na profundeza de mais um sono em que os venenos são outros, o sexo é grosso, a fricção te arde até as pálpebras e cada veia dilatada te promove novos vagidos de torpeza e rancor, esgares de prazer que se combinam diante da minha frieza espantada, eu espreitando corpo de pessoa alguma, eu sozinho numa distância exata para que me seja possível sentir todo o gosto a sede a saudade intoxicada por essa maldade, sob os meus olhos, entre nós acentuam abismos e encandeiam funduras, vomitando fogo e ódio da mesma boca que me negas reprovativa e desafiadora como a nítida transformação ao perceberes que estás num sonho perdida, enigmática boca granítica ao mais ínfimo sinal da minha aproximação, ou mesmo ainda dentro do sonho minha voz agora pedinte ao teu ouvido mascarando todo o fracasso chorando e te dizendo que amo, como se tu tivesses ainda a flor purpúrea entre as virilhas e o lírio adormecido adornando braços e faces, ordeno infame que nos demos uma chance, a minha voz ameaça, e vejo a tua queda nesse flanco aberto do próprio horror, eu adivinho o futuro, e vendo toda a pobreza do desgaste do tecido inicial transformando-se em estopa suja ensanguentada, ainda assim meu amor, sou incapaz de me desfazer desfeito da linguagem de quando te percebia a longo passo a te negares inicialmente a mim sem que um gesto meu fosse jamais reprovado, eu somente escrevia gritava e lançava, como lanço agora, palavras ao vento, dizendo sempre menos que senteciando acordos e largando feitiços e promessas, largando correntes arrastadas na cabeceira da tua cama, atando punhos e tornozelos, a se confirmarem válidas no trinco ecoante do travo de cadeados indestrutíveis, artífice de uma palavra não mais que magia, negra talvez, tímida prisioneira em andares de poesia, habituei-me ao canto pernóstico como quem se habitua à imagem negra e infiel da completa desestruturação, ruímos, destruímos, decaímos, no entanto beleza irretocável, discurso diariamente ao teu ouvido, te amo como quem quer preservar a beleza da flor no cimo da vida, mesmo se agora somente possuo o granuloso, e por ti nutro essa piedade, trancafiada, te finges liberta e me excluo, sonhas meu anjo, sonhas, não te deixo enfim morrer, para que não desacredites ser capaz de habitar num rutilante negror o amor que o meu canto por ele um dia te encantou.
---
alguma coisa diferente assentou quando você não esteve mais
permanência
que funcione te pensar agora espero que te pensando simplesmente se faça possível alguma magia e diálogo entre nós dois
laços sejam feitos
sem que eu possa te comunicar tudo
não te dizendo
afinal palavras são meu pretexto
me livra um pouco ao menos dessa histeria em vaziez, sopesando ilusionista artífice da palavra inquietude e
carinho na asa da tua mão
mas e se você não me escuta? inalterada presença
enquanto você provavelmente dorme, eu converso com você e te peço ajuda
um amparo, escuta
não precisa resposta.
compreende eu estar fracassando sem saber me manter quieto motivado dentro do sopro escuro da noite povoada pela tua introversão muda, certamente, também num sonho guardado. assim como a falta agora reflete o avesso do teu corpo. como se te despindo te despedisse. ausência sentenciando as partes. desejo mata o corpo da gente, sabe? toda as noites tem sido isso? quando é noite me vejo diante do cinza escuro de um leito seco e de uma ponte que não liga margens. no fundo o trinar insistente e vivo de insetos correndo sorrateiros pelas beiradas do sono. madeira podre e ressequida. sozinho amplifico amar. suturo ausências. sou capaz de delinear contorno e espessura dessa oquidão.
você me falta.
[Victor, friend of mine, que me estarrece com seus escritos]
---
alguma coisa diferente assentou quando você não esteve mais
permanência
que funcione te pensar agora espero que te pensando simplesmente se faça possível alguma magia e diálogo entre nós dois
laços sejam feitos
sem que eu possa te comunicar tudo
não te dizendo
afinal palavras são meu pretexto
me livra um pouco ao menos dessa histeria em vaziez, sopesando ilusionista artífice da palavra inquietude e
carinho na asa da tua mão
mas e se você não me escuta? inalterada presença
enquanto você provavelmente dorme, eu converso com você e te peço ajuda
um amparo, escuta
não precisa resposta.
compreende eu estar fracassando sem saber me manter quieto motivado dentro do sopro escuro da noite povoada pela tua introversão muda, certamente, também num sonho guardado. assim como a falta agora reflete o avesso do teu corpo. como se te despindo te despedisse. ausência sentenciando as partes. desejo mata o corpo da gente, sabe? toda as noites tem sido isso? quando é noite me vejo diante do cinza escuro de um leito seco e de uma ponte que não liga margens. no fundo o trinar insistente e vivo de insetos correndo sorrateiros pelas beiradas do sono. madeira podre e ressequida. sozinho amplifico amar. suturo ausências. sou capaz de delinear contorno e espessura dessa oquidão.
você me falta.
[Victor, friend of mine, que me estarrece com seus escritos]
quarta-feira, setembro 08, 2004
A idiota
Amparada pela mãe, a idiota subiu no ônibus. Essa mãe gorda e simplória, morena de doer, dava o braço à idiota. Com dificuldades, subiram, e ao subirem a idiota soltou um gemido e riu, escancarando bem sua boca. Seus dentes eram bastante proeminentes, dando à sua figura um quê assustador. Era humana, a idiota, porém comportava-se como um bicho saído de uma caverna. Olhava para todos os lados e, mesmo sentando-se, não parava de movimentar-se. A mãe conversava em voz alta com passageiros que a conheciam, enquanto a filha tremia e babava a intervalos irregulares. Cheirava mal; um odor azedo, envenenado, de saliva antiga, desprendia-se de suas roupas feias e pobres. A mãe, de vez em quando e sem abandonar a conversação, enxugava a boca da filha com uma fralda amarelada e endurecida de sujeira. Também de quando em quando, a idiota sacudia todo o seu corpo magro em estranhos espasmos, e cada um destes espasmos vinha acompanhado de um jorro brilhante e espesso de baba, como o vômito dos bebês. Então por que sorri, a idiota? Por que sorri, a mãe? O ônibus prosseguiu, e também a vida prosseguiu, uns dentes escancarados agitando-se na janela empoeirada do coletivo.
[Marpessa]
Amparada pela mãe, a idiota subiu no ônibus. Essa mãe gorda e simplória, morena de doer, dava o braço à idiota. Com dificuldades, subiram, e ao subirem a idiota soltou um gemido e riu, escancarando bem sua boca. Seus dentes eram bastante proeminentes, dando à sua figura um quê assustador. Era humana, a idiota, porém comportava-se como um bicho saído de uma caverna. Olhava para todos os lados e, mesmo sentando-se, não parava de movimentar-se. A mãe conversava em voz alta com passageiros que a conheciam, enquanto a filha tremia e babava a intervalos irregulares. Cheirava mal; um odor azedo, envenenado, de saliva antiga, desprendia-se de suas roupas feias e pobres. A mãe, de vez em quando e sem abandonar a conversação, enxugava a boca da filha com uma fralda amarelada e endurecida de sujeira. Também de quando em quando, a idiota sacudia todo o seu corpo magro em estranhos espasmos, e cada um destes espasmos vinha acompanhado de um jorro brilhante e espesso de baba, como o vômito dos bebês. Então por que sorri, a idiota? Por que sorri, a mãe? O ônibus prosseguiu, e também a vida prosseguiu, uns dentes escancarados agitando-se na janela empoeirada do coletivo.
[Marpessa]
Em um cinema dentro de mim
Então é óbvio que Paco está vivo (de que inútil terrível maneira terei que dizê-lo também para me aproximar, para ganhar um pouco de terreno) enquanto durmo; isso se chama sonhar.
[Julio Cortázar, Aí, mas onde, como, in Octaedro]
Eu faço filmes. Sou diretora, roteirista e atriz. Também dirijo fotografia, edito, cuido do elenco e dos figurinos. É bastante trabalho, mas não tenho do que me queixar. Todas as noites eu os realizo com a minha imaginação e meu talento. Fazer filmes me distrai, embala minha consciência para um apagar suave e lento. Prepara-me para os filmes do sono, aqueles nos quais eu não mando nada, só obedeço as ordens de um diretor invisível e invariavelmente maluco.
Não saberia viver sem fazer os meus filmes. Na maioria dos casos, eles são feitos sem roteiros rígidos, apenas invento uma premissa, um ambiente e os personagens. Não é difícil; a imprevisibilidade relativa que consigo nesse sistema é muito instigante, porque permite uma liberdade que satisfaz completamente os meus desejos. Só que os meus filmes nunca acabam, porque eu me demoro nos meandros, vou e volto, penso e repenso, faço cortes e intercalo adicionais aqui e ali - durante a trama! E por isso meus filmes não chegam a acabar, de verdade. Na noite seguinte estou eu e o meu filme, recriando-o mais uma vez, e sempre sei que não será a última, e nunca sei quando será a última vez em que mexerei no meu filme. Uma bela noite qualquer, eu o abandono e é como se o atirasse ao lixo, porque nem mesmo consigo me recordar de quando deixei-o de lado.
Havia um filme que eu gostava muito. A ação se passava toda em uma casa, que era uma mistura de casas que eu conhecia, como quando a gente lê um livro e imagina o ambiente como algo conhecido, simplesmente não sabemos o porquê da escolha, e muito menos conseguimos mudar o cenário, mesmo que se passem anos entre leitura e releitura. Pois deste filme sobre o qual quero falar, a casa tinha dois quartos e uma sala grande e comprida, muito semelhante a uma casa em que uma determinada tia minha morou por longo tempo. Tudo acontecia sempre à noite, e pela madrugada. Havia música, de vez em quando, mas jamais consegui me decidir quanto à trilha oficial. Uma invariável penumbra resolvia os meus problemas de iluminação – eu usava a luz da rua, que entrava pelas frestas das janelas.
Neste filme habitam dois personagens: eu e Paulo. Na história, dividimos a casa. Somos amigos. Cada um tem seu par romântico, que por vezes, para criar corretamente as situações dramáticas, costumavam aparecer. Na verdade vivemos um amor platônico, que ainda não desabrochou. Não nos cremos enamorados. As pistas são constantemente negadas, mas o espectador vê a tudo: olhares maiores do que o necessário, pausas incertas, silêncios densos e críticos. Eu, por ser mulher, preocupava-me com a tensão anterior a qualquer resolução, desejando (segredos de diretora) que a resolução não chegasse para melhor poder mergulhar no drama que desenhava à força de imaginação e ânsia de amor. De amor, porque na vida real eu o amava.
Os roteiros sofriam bruscas mudanças a cada noite, mas o cerne era a descoberta da paixão. Havia uma discussão, às vezes. E outras vezes o mesmo filme se passava em vários dias e noites, os fatos dos dias se acumulando para engendrar os da noite, das noites em que passávamos absortos em pensamentos, um assistindo ao outro em sua falsa felicidade, um vestindo-se para um encontro, e o outro sofrendo calado por isso. Ou uma noitada de bebida e choro, muitos cigarros acesos nos momentos mais tensos, uma carícia nos cabelos e lágrimas enxugadas com dedos macios. Também era possível provocar, eu seminua caminhando de um canto a outro da casa, porque afinal somos como irmãos, Paulo assistindo a tudo e fingindo não se importar. Ele saindo do banho, toalha enrolada na cintura, penteando os cabelos de costas para mim, eu o observando firme, o torso branco e magro, ele vendo-me observá-lo do espelho e não compreendendo, ou não querendo compreender, mas sentindo um inequívoco prazer em ser observado.
Qual fosse a situação, havia sempre uma crise prestes a explodir. E sua explosão se dava da maneira mais passional e comum: o amor no sofá azul-acinzentado. Só que poucas vezes assisti a este final, porque depois dele não haveria mais nada além do normal dos casais que se unem. Quando alcançava este ponto, corria a imaginar a manhã seguinte cheia de constrangimento, de culpa, bons-dias carregados como nuvens de tempestade. Criava a perspectiva de ter mais uma equação a resolver, aproveitando para enfiar os pares românticos traídos (ignorantes do fato) bem nesse ponto, o que provocaria mais complicações para nós. Em meu filme, o amor não acontece, está por um fio de acontecer, mas não acontece. É uma possibilidade certa, mas os desencontros que eu criava tornavam o caminho sempre mais longo do que seria natural entre duas pessoas que se descobrem dessa maneira, da maneira como eu contava no meu filme.
E então um dia eu soube, tardiamente soube, que ele estava morto. Dia quente, eu acho, e me contaram entre um gole e outro de cerveja, como se não fosse nada, você ficou sabendo, faz tempo, uns dois anos. Após o choque das estrelas, o colapso, a alma rangendo em febres de luto atrasado, a confirmação, só então pude pensar que fazia filmes com um ator que já havia morrido. Deveria considerar a inutilidade destes filmes e não fazê-los mais, só que o hábito, a dor auto-imposta, dor necessária e gostosa de sentir, tudo isso preservou a minha carreira e minha determinação de fazer roteiros com o ator morto. Continuei para senti-lo mais próximo, dava-lhe vida, animava-o de acordo com a minha base de dados a seu respeito, não muita coisa, alguns encontros, umas pouquíssimas visitas.
Fiz um filme maravilhoso baseado em nosso último encontro e alterei o final. Para ser mais Hollywood terminava muito bem, com beijo e promessas, quando na realidade fora apenas um encontro de amigos que há tempos não se viam, encontro a três, devo salientar. Alguma bebida, muita conversa, risos, contentes os três por estarem juntos ali, depois o adeus acenado, ele ficou acenando de longe com aquela expressão de adeus para sempre que nunca me abandonou, e eu sabia, só podia ser o último dos encontros porque ele também sabia, fixei os olhos naqueles olhos dele que ficaram tão estranhos, tanto notei isso que fiz um comentário, “que cara estranha a dele, você viu?”. Este o verdadeiro filme, só que muito europeu, e verdade seja dita, não gostamos de filmes europeus se intrometendo em nossas vidas assim, o tempo todo.
[Marpessa]
Então é óbvio que Paco está vivo (de que inútil terrível maneira terei que dizê-lo também para me aproximar, para ganhar um pouco de terreno) enquanto durmo; isso se chama sonhar.
[Julio Cortázar, Aí, mas onde, como, in Octaedro]
Eu faço filmes. Sou diretora, roteirista e atriz. Também dirijo fotografia, edito, cuido do elenco e dos figurinos. É bastante trabalho, mas não tenho do que me queixar. Todas as noites eu os realizo com a minha imaginação e meu talento. Fazer filmes me distrai, embala minha consciência para um apagar suave e lento. Prepara-me para os filmes do sono, aqueles nos quais eu não mando nada, só obedeço as ordens de um diretor invisível e invariavelmente maluco.
Não saberia viver sem fazer os meus filmes. Na maioria dos casos, eles são feitos sem roteiros rígidos, apenas invento uma premissa, um ambiente e os personagens. Não é difícil; a imprevisibilidade relativa que consigo nesse sistema é muito instigante, porque permite uma liberdade que satisfaz completamente os meus desejos. Só que os meus filmes nunca acabam, porque eu me demoro nos meandros, vou e volto, penso e repenso, faço cortes e intercalo adicionais aqui e ali - durante a trama! E por isso meus filmes não chegam a acabar, de verdade. Na noite seguinte estou eu e o meu filme, recriando-o mais uma vez, e sempre sei que não será a última, e nunca sei quando será a última vez em que mexerei no meu filme. Uma bela noite qualquer, eu o abandono e é como se o atirasse ao lixo, porque nem mesmo consigo me recordar de quando deixei-o de lado.
Havia um filme que eu gostava muito. A ação se passava toda em uma casa, que era uma mistura de casas que eu conhecia, como quando a gente lê um livro e imagina o ambiente como algo conhecido, simplesmente não sabemos o porquê da escolha, e muito menos conseguimos mudar o cenário, mesmo que se passem anos entre leitura e releitura. Pois deste filme sobre o qual quero falar, a casa tinha dois quartos e uma sala grande e comprida, muito semelhante a uma casa em que uma determinada tia minha morou por longo tempo. Tudo acontecia sempre à noite, e pela madrugada. Havia música, de vez em quando, mas jamais consegui me decidir quanto à trilha oficial. Uma invariável penumbra resolvia os meus problemas de iluminação – eu usava a luz da rua, que entrava pelas frestas das janelas.
Neste filme habitam dois personagens: eu e Paulo. Na história, dividimos a casa. Somos amigos. Cada um tem seu par romântico, que por vezes, para criar corretamente as situações dramáticas, costumavam aparecer. Na verdade vivemos um amor platônico, que ainda não desabrochou. Não nos cremos enamorados. As pistas são constantemente negadas, mas o espectador vê a tudo: olhares maiores do que o necessário, pausas incertas, silêncios densos e críticos. Eu, por ser mulher, preocupava-me com a tensão anterior a qualquer resolução, desejando (segredos de diretora) que a resolução não chegasse para melhor poder mergulhar no drama que desenhava à força de imaginação e ânsia de amor. De amor, porque na vida real eu o amava.
Os roteiros sofriam bruscas mudanças a cada noite, mas o cerne era a descoberta da paixão. Havia uma discussão, às vezes. E outras vezes o mesmo filme se passava em vários dias e noites, os fatos dos dias se acumulando para engendrar os da noite, das noites em que passávamos absortos em pensamentos, um assistindo ao outro em sua falsa felicidade, um vestindo-se para um encontro, e o outro sofrendo calado por isso. Ou uma noitada de bebida e choro, muitos cigarros acesos nos momentos mais tensos, uma carícia nos cabelos e lágrimas enxugadas com dedos macios. Também era possível provocar, eu seminua caminhando de um canto a outro da casa, porque afinal somos como irmãos, Paulo assistindo a tudo e fingindo não se importar. Ele saindo do banho, toalha enrolada na cintura, penteando os cabelos de costas para mim, eu o observando firme, o torso branco e magro, ele vendo-me observá-lo do espelho e não compreendendo, ou não querendo compreender, mas sentindo um inequívoco prazer em ser observado.
Qual fosse a situação, havia sempre uma crise prestes a explodir. E sua explosão se dava da maneira mais passional e comum: o amor no sofá azul-acinzentado. Só que poucas vezes assisti a este final, porque depois dele não haveria mais nada além do normal dos casais que se unem. Quando alcançava este ponto, corria a imaginar a manhã seguinte cheia de constrangimento, de culpa, bons-dias carregados como nuvens de tempestade. Criava a perspectiva de ter mais uma equação a resolver, aproveitando para enfiar os pares românticos traídos (ignorantes do fato) bem nesse ponto, o que provocaria mais complicações para nós. Em meu filme, o amor não acontece, está por um fio de acontecer, mas não acontece. É uma possibilidade certa, mas os desencontros que eu criava tornavam o caminho sempre mais longo do que seria natural entre duas pessoas que se descobrem dessa maneira, da maneira como eu contava no meu filme.
E então um dia eu soube, tardiamente soube, que ele estava morto. Dia quente, eu acho, e me contaram entre um gole e outro de cerveja, como se não fosse nada, você ficou sabendo, faz tempo, uns dois anos. Após o choque das estrelas, o colapso, a alma rangendo em febres de luto atrasado, a confirmação, só então pude pensar que fazia filmes com um ator que já havia morrido. Deveria considerar a inutilidade destes filmes e não fazê-los mais, só que o hábito, a dor auto-imposta, dor necessária e gostosa de sentir, tudo isso preservou a minha carreira e minha determinação de fazer roteiros com o ator morto. Continuei para senti-lo mais próximo, dava-lhe vida, animava-o de acordo com a minha base de dados a seu respeito, não muita coisa, alguns encontros, umas pouquíssimas visitas.
Fiz um filme maravilhoso baseado em nosso último encontro e alterei o final. Para ser mais Hollywood terminava muito bem, com beijo e promessas, quando na realidade fora apenas um encontro de amigos que há tempos não se viam, encontro a três, devo salientar. Alguma bebida, muita conversa, risos, contentes os três por estarem juntos ali, depois o adeus acenado, ele ficou acenando de longe com aquela expressão de adeus para sempre que nunca me abandonou, e eu sabia, só podia ser o último dos encontros porque ele também sabia, fixei os olhos naqueles olhos dele que ficaram tão estranhos, tanto notei isso que fiz um comentário, “que cara estranha a dele, você viu?”. Este o verdadeiro filme, só que muito europeu, e verdade seja dita, não gostamos de filmes europeus se intrometendo em nossas vidas assim, o tempo todo.
[Marpessa]
Uma veste provavelmente azul
Eu estava ali sem nenhum plano imediato quando vi os dois homenzinhos verdes correndo sobre o tapete. Um deles retirou do bolso um minúsculo lenço e passou-o na testa. Pensei então que o lenço era feito de finíssimos fios e que eles deviam ser hábeis tecelões. Ao mesmo tempo, lembrei também que necessitava de uma longa veste: uma muito longa veste provavelmente azul. Não foi difícil subjugá-los e obrigá-los a tecerem para mim. Trouxeram suas famílias e levaram milênios nesse trabalho. Catástrofes incríveis: emaranhavam-se nos fios, sufocavam no meio do pano, as agulhas os apunhalavam. Inúmeras gerações se sucederam. Nascendo, tecendo e morrendo. Enquanto isso, minha mão direita pousava ameaçadora sobre suas cabeças.
[Caio Fernando Abreu]
Eu estava ali sem nenhum plano imediato quando vi os dois homenzinhos verdes correndo sobre o tapete. Um deles retirou do bolso um minúsculo lenço e passou-o na testa. Pensei então que o lenço era feito de finíssimos fios e que eles deviam ser hábeis tecelões. Ao mesmo tempo, lembrei também que necessitava de uma longa veste: uma muito longa veste provavelmente azul. Não foi difícil subjugá-los e obrigá-los a tecerem para mim. Trouxeram suas famílias e levaram milênios nesse trabalho. Catástrofes incríveis: emaranhavam-se nos fios, sufocavam no meio do pano, as agulhas os apunhalavam. Inúmeras gerações se sucederam. Nascendo, tecendo e morrendo. Enquanto isso, minha mão direita pousava ameaçadora sobre suas cabeças.
[Caio Fernando Abreu]
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