quinta-feira, abril 21, 2005

segunda-feira, abril 04, 2005

Rostos

Faz uns dias que isso começou. Eu nunca antes havia dado maior atenção aos desenhos dos lençóis, as estampas enfadonhas que enfeitam nossas roupas de cama. Penso que ninguém o faça, especialmente se ainda acabrunhado, sonolento, a não ser as crianças, estas por certo reparam em tais coisas sempre. De todo modo, ia acontecer, e foi bom que aconteceu. Não tornou nada muito mais leve por enquanto, mas quem sabe? Um dia pode chegar a resposta esperada e eu ficarei contente com isso, só com isso, só por dizer a todos que estive certa desde o começo, a quinta-feira dezesseis.

Semana passada. Acordei, mudei de posição na cama algumas vezes, olhei para a parede, depois para o teto, depois para o travesseiro enquanto pensava em nada, cercada por aqueles pensamentos matinais geralmente inócuos, borboletas amarelas tão comuns. No quarto a penumbra, o frio, eu ouvindo a chuva batendo na janela. A cama estava aconchegante, um ninho pacífico, isolado do mundo, com o meu cheiro, a curva do meu corpo no colchão, muito boa a sensação de estar na cama quente enquanto lá fora chovia tanto, muito boa a ausência de dor, de incômodos. Horário bendito, aquele.

Comecei a olhar com atenção um pedaço do lençol com o qual me cobria, uma parte manchada de azul e de branco, sendo o azul predominante, e o contraste formando desenhos irregulares, como se fosse tinta espirrada. Subitamente percebi que havia entre as manchas um rosto, um pequeno rosto de homem que expressava algo de desespero e quando me dei conta estava me perguntando o porquê daquele semblante, a boca aberta num grito impossível. Uma verdadeira fotografia, aquela composição de mancha e de branco. Foi assim que aconteceu. Era inevitável que eu descobrisse um rosto no lençol, tanto que não questionei o fato, uma dessas coisas que acontecem com a maior naturalidade mas que deveriam ser questionadas como tantas outras que atravessamos também em silêncio, sem formular uma única pergunta. E Deus sabe quantas perguntas existem para serem formuladas e quiçá respondidas – o mundo é bem grande, a vida também.

Não demorou muito para que eu notasse o que já deveria ter adivinhado. O rosto do rapaz desesperado não era o único: havia outros. Enxerguei pelo menos mais cinco rostos diferentes, todos como que fotografados no instante do grito. Identifiquei um homem presumivelmente negro, talvez usando um corte de cabelo black power. Havia também uma velha e três adolescentes, uma menina de cabelos longos, um menino franzino e um outro menino gordo. Todos trazendo a expressão de movimento, como se flagrados em uma passeata, uma comemoração, como se estivessem nas ruas de sua cidade celebrando ou protestando, em esgares violentos e suas vozes guardadas na quietude do lençol.

Por uma semana fiquei intrigada. A cada manhã procurava por eles e muitas vezes demorava a localizá-los dentre as outras muitas figuras que agora começavam a aparecer, aumentando a composição, espocando de dentro do lençol como bolhas, como qualquer coisa mágica que aparece diante dos nossos olhos sem aviso. Novos rostos, diariamente: senhores de cartola, homens desdentados, moças com lenços amarrados na cabeça, uma senhora de echarpe; estes e muitos outros, todos os outros, brotando feito capim sobre a minha cama... Intrigou-me, em especial, a capacidade que tinham de significar algo, o que me parecia especialmente difícil, já que não era possível a eles ou ao destino prever ou saber que eu, a espectadora daqueles desenhos instantâneos e informais, seria capaz de entendê-los. E de fato não fui capaz disso; estava ocupada em enxergar o mistério em sua totalidade, a mente turvada por outras coisas que, enfim, atrapalhavam o processo de análise dos rostos no meu lençol.

Mas lentamente a compreensão se deu. Ontem, ao acordar, pensei que havia afinal uma verdade escondida em cada manhã, uma verdade de cuja existência eu suspeitava mas só ontem, por acaso, pude compreender inteiramente. Aqueles rostos tinham algo a me dizer. Infelizmente eu teria que adivinhar, mas estava certa de que havia uma mensagem para mim, porque foi no meu lençol que apareceram e se multiplicaram, meninos, meninas, adultos, idosos, ganhando vida e textura, atos e gestos, um histórico de ações que a cada manhã mudava de forma, eles azuis trazendo nos rostos mudos um recado tácito e indiscutível, para os meus olhos sonolentos e nada mais.

Falei em compreensão, mas agora mesmo duvido um pouco; quanto mais penso menos sei, porque não consigo entender os motivos, as razões. Este é um caso em que as razões são imprescindíveis. De todo modo, acredito que em certo momento as imagens começarão finalmente a falar, a serem também sensíveis aos meus ouvidos (se é que ainda não o são; de qualquer forma, não fiz este teste para não me sentir louca) e então quem sabe poderão ouvir-me também. Embora eu sinta que, mesmo me ouvindo e mesmo podendo, não me responderiam. Há de ser angustiante até o fim.

Hoje os lençóis foram tirados e postos para lavar. Na minha cama, agora, tenho um lençol de flores cor-de-rosa, muito sem sentido e sem recados. Não foi fácil tirarem da cama o lençol dos rostos, devo confessar que tentei impedi-las, que fiz cenas, e a conseqüência imediata disso tudo foram as indefectíveis caras de piedade. Não entenderam o lençol, mas que posso esperar de umas enfermeiras que mal sabem falar o português correto? Não entendem que preciso saber mais, não entendem a minha grande necessidade de saber e nem mesmo estão sendo condescendentes comigo, com as febres e as dores, os gritos que eu sei que dou toda noite mas dos quais depois me esqueço graças às bênçãos alopáticas, algumas horas de sono induzido, as enfermeiras não estão se importando. Há de ser assim mesmo até o final, até o dia do não-dia, em que eu não mais existir?

Mal posso esperar para ter novamente aquele lençol em minha cama, trazendo enfim a mensagem pela qual aguardo desde que tudo isso começou, ou desde sempre, talvez seja mesmo desde sempre ou quem sabe desde antes da doença. Não tenho muito tempo agora e todo minuto em que não sinto o tumor me mastigando por dentro é precioso. O lençol e seus porquês, os porquês desejáveis, as perguntas muitas atropelando a realidade da cama e das enfermeiras, das lágrimas tolas dos velhos ao redor de mim, das escaras nas costas, o silêncio quebrado pelo gotejar do soro, quatro paredes, meus próprios gritos à noite, e a morfina que não é mais tão eficiente, não podem esconder isso por muito tempo, a morfina não é mais tão eficiente. Quero de volta minha antiga roupa de cama porque quem mais saberia me dizer, quem, além dos rostos no lençol me diria, por baixo de suas expressões fixas, o porquê de todo câncer, de todo grito e de toda dor?

[Marpessa - originalmente publicado na edição #2 do Aquele]