quarta-feira, fevereiro 16, 2005

...

Estranhando o silêncio ?
Meu amor, você errou comigo.
Resolveu que sabia tudo o que eu tinha para dizer.
Que eu seria como todo o resto; brancas nuvens no teu caminho.
Eu escrevi minhas feridas, eu contei tantas mentiras.
Justifiquei cada silêncio com frases e biombos.
Ter te amado tão longamente não faz de mim eterno amante engaiolado.
Não há nada que sustente por muito tempo um jogo de cartas marcadas.
Você nua ao amanhecer, ah, eu quis que fosse até o final.
Ansiei por você mas você não estava realmente comigo.
Então querida, estou indo também.
Meu amor, você agora está sozinha.
A festa acabou, os comensais foram embora.
Amor da minha vida, não há ninguém em casa.
Nada mais pelo que esperar.

[Gil Brandão, cronópio primeiro e único, inexplicável]

sábado, fevereiro 12, 2005

Morte

Vigiavam-se mutuamente no último vagão do trem expresso. Ele e ela, de tanto pegarem o mesmo trem e o mesmo vagão, acabaram por simpatizar um com o outro, estabelecendo quase por acaso aquela cumplicidade que envolve os participantes de um jogo diário e repetitivo. Por volta das seis e meia da manhã estavam já postados em seus lugares; naquela estação, uma das primeiras do longo trajeto, o movimento era suficientemente fraco àquela hora para permitir que os passageiros conseguissem lugares para se sentar. Ele e ela raras vezes viajavam de pé e nunca conseguiram sentar-se um ao lado do outro, mas era certo que nem sequer tivessem conscientemente tentado algo nesse sentido, preferindo manterem-se a uma distância segura (segura?) e respeitosa, apenas apoiando-se um ao outro na maçante viagem cotidiana para o mesmo lugar de sempre, tornando o trajeto menos enfadonho. As pessoas concentram-se em coisas diversas durante uma viagem: seus jornais ou revistas, um cochilo, alguém por companhia para conversar ou simplesmente a paisagem de costume, que por vezes traz algum novo encanto, uma novidade qualquer. Ele e ela, no entanto, permaneciam alheios às distrações possíveis e vigiavam-se mutuamente, cada qual em seu banco, no último vagão do trem expresso.

Engraçado que houvessem, desse modo e pelo hábito, estabelecido um canal de comunicação impecavelmente silencioso, que os resguardava de sobressaltos e os deixava confortáveis, imersos em suas solidões e livres para contemplar-se com o canto dos olhos, cheios de discrição. Ele e ela aparentavam ter a mesma idade, quarenta anos ou pouco menos. Eram ambos sóbrios no vestir, o que lhes dava o ar de funcionários públicos, e talvez realmente o fossem, mas com toda certeza ocupavam cargos modestos, porque o trem de subúrbio, como se sabe, nunca foi para os ricos. Este modo que inventaram de se comunicar era tão funcional e certeiro que conseguiam até saber do estado de espírito um do outro, bastando para isso um olhar mais demorado, um torcer de lábios, o franzir da testa, as mãos agitadas ou os pés balançando-se. Liam-se nas faces e nos modos do corpo, a cada nova manhã. Em uma delas, ela mostrara-se particularmente feliz – o sistema de comunicação que criaram, no entanto, não era tão refinado a ponto de desvendar motivos – e olhou-o mais firmemente do que de hábito. Ele correspondeu, sorrindo suavemente. E ela, antes de descer em sua estação (duas antes dele), esticou o dedo muito branco e fino e rabiscou rapidamente uma palavra de cinco letras no vidro imundo: seu nome.

Era um sábado e passava das dezenove horas. Não se encontravam aos sábados; aquilo fora acidental, mas ambos pensaram com seus próprios botões, surpresos: existem acidentes assim? Há meses vigiavam-se de segunda a sexta. Era certo que aos sábados sentissem falta da vigília, porque não tinham mesmo muito o que fazer de suas vidas aos finais de semana, ele descanso e livros, ela crochê e sobrinhos, talvez houvesse uma força tremenda naquela vigília diária que tivesse, desta vez, os impelido a andar de trem no sábado, uma vontade súbita de visitar um parente longe ou ir a um cinema diferente, e acabaram regressando à cidade na mesma hora. Ele sentiu o coração varando a camisa; ela o observava, dura e tensa, tirando o máximo proveito de sua visão periférica e sem ousar olhá-lo mais de frente. Coincidência? Não existem coincidências tão exatas, era a força da vigília, e de que adiantava questionar isso, se tarde demais? Ele estremeceu. Um arrepio esquisito o tomou de assalto e o sacudiu por dentro, algo indefinível. Desta vez desceriam na mesma estação. E depois de tantos meses, ela cogitou, subitamente fria, não seria possível impedir o desenrolar dos fatos, a seqüência que de repente se afigurava como natural e perfeitamente plausível, desejável acima de todas as forças em contrário, algo que romperia um suposto hímen que defende a natureza humana da natureza humana todo o tempo e que agora apresentava-se como uma película transparente, fina e porosa, pronta para ser rasgada com bastante energia. Tanta coisa pensa-se em um trem de subúrbio que acabamos chegando muito rápido ao nosso destino, às vezes sem desconfiar que o destino quer que assim seja. Ela se levantou e ficou próxima à porta. Ele parou a um passo atrás. Aguardavam a porta se abrir, no que pareceu o tempo do arrastar de um caracol na grama densa. Gotas de suor aqui e ali, invadindo cada dobra de pele. A porta se abriu. Desceram. Ela voltou-se para ele e encarou-o com firmeza, uns olhos azuis terrivelmente sérios. Tomou-o pela mão. Deixaram a estação rapidamente, sem palavras.

Após alguns minutos de caminhada, entraram por uma rua de paralelepípedos. Ela não tinha como saber o que ele estava pensando, mas de repente não havia tempo e quase corria, para evitar que o espaço a ser percorrido transformasse o impulso em debilidade, cogitação, desistência. Ele, por sua vez, enquanto os pés e pernas se moviam, a cabeça ia em chamas, confusa como uma labareda: que havia feito, que estavam fazendo? Pararam, enfim, diante de uma casa muito pequena. Não era possível divisá-la bem, a rua mal iluminada como tantas nos subúrbios, mas notava-se que era muito velha; nas paredes semi-ocultas pela penumbra, a tinta descascada revelava várias camadas de cores sobrepostas. Ao redor, o mato crescia desordenado. Via-se aqui e ali indícios de alguma manutenção: um ancinho, uma pá, alguns sacos grandes de lixo, mas ela (moraria sozinha?) aparentemente não conseguia realizar as tarefas.

Ela girou a chave, mexeu na maçaneta. Um odor peculiar desprendeu-se do interior da casa; ele tentou por um instante adivinhá-lo, antes que seu olfato se acostumasse à atmosfera da sala estreita e fria. Identificou o cheiro: uma mistura de mirra, forte e penetrante, com umidade e talvez um outro aroma, não completamente identificável, de algo que se fecha, como poderia explicar? Um cheiro de baú. Do teto, pendia uma lâmpada muito fraca, e o teto era tão baixo que ele teve a sensação de que poderia tocá-lo sem esticar os pés. Pela primeira vez desde a estação ele a olhara; ela parecia mais pálida, mais frágil, estranhamente aterrorizada, mas era ele quem deveria estar assustado, porque ela mandava , a casa era dela, cheirando a mirra, umidade e baú.

Atravessaram um corredor escuro. Ele tocou as paredes e teve uma sensação desagradável de ter posto a mão em algo macio como musgo. Arrepiou-se. Dobraram o corredor, as mãos dele iam suadas, aquele calor sob o frio, o frio daquela noite inverossímil. Entraram em um aposento que ele entendeu ser o quarto, só poderia ser, somente isso era possível naquele momento. Ela riscou um fósforo e seu rosto cresceu diante dele. Acendeu duas velas grossas que estavam à cabeceira de uma cama antiga, com dossel, ele que nunca vira uma cama com dossel, pela primeira vez observava um quarto ao estilo vitoriano, os móveis sólidos, escuros, a janela enorme, uma penteadeira, um espelho oval com moldura de madeira. Ela puxou a cortina, ocultando a janela e revelando o tecido verde-escuro grosso, de aspecto aveludado. Tudo muito diferente do restante da casa.

Ele não teve tempo para contemplar os detalhes do quarto alaranjado pelas chamas. Ela aproximou-se, a expressão novíssima, o brilho dourado nos olhos. Puxou-o para si. Houve uma queda: jogaram-se um sobre o outro sem dizer palavra, como sempre fora nas manhãs do trem que agora pareciam irreais e ridículas, tão ridículas as manhãs no trem, ambos se espiando como dois ladrões, como se devessem algo ao mundo, as pupilas de medo a vigiar e a tomar cuidado para não serem notados mesmo sabendo que era inútil tomar qualquer cuidado, seriam notados, ambos, os olhares, e desejavam isso com toda a fúria dos seus corações, sabiam disso agora, onde os segredos subitamente se revelaram entre cabelos e beijos úmidos, línguas se chocando e os olhos semicerrados, força nas mãos, força nos músculos das pernas a tornar cada vez mais ridícula a vigília hoje que a Verdade estava do lado deles, as coxas dela eram incrivelmente firmes e o prendiam, agora que tudo seria lido e relido de outra maneira, agora que não havia porvir nem dias ou manhãs de trem e uma câimbra deliciosa o atacava, o que não o impedia, era impossível parar neste momento, justo agora que descobrira no meio das costas dela uma peça de xadrez, uma rainha negra tatuada bem no meio das costas brancas e alongadas daquela cujo nome tinha cinco letras, ela esvaindo-se e chamando calada, arfante, seu corpo a gritar, a boca úmida a se abrir esperando por ele que não podia mais esperar, ela posicionava-se favoravelmente para que ele pudesse enfim satisfazê-la e afogar-se, matar-se ali, morrer com as mãos firmemente presas às ancas daquela mulher com quem jamais trocara um bom-dia, aquela mulher do trem que era agora a mulher Rainha Negra, a cornucópia de prazeres que tornava o passado perdido, esquecido, sem significado algum, longe, nunca mais tomaria o trem porque não poderia, impensável o trem enquanto molhava-se nela, enquanto era ela quem dava o ritmo porque sentava sobre ele, olhavam-se nos olhos com muita segurança, ela como que possuída por um demônio ou mais de um, escandalizando o quarto vitoriano, queimada pela luz das velas, ele não podia fazer mais nada além de apertá-la, amassar-lhe os seios, que mais faria? Ela mandava. Olhava-o e movia-se com mais velocidade, uma das mãos quase arrancando o dossel, ele cingindo-lhe a cintura e o desespero tomando conta dela, mulher Rainha Negra, o corpo sendo deliciosamente violentado, o hímen da natureza rompido, muros derrubados com estrondo, a arrebentação espumosa na praia, ele só pôde olhá-la sobre seus quadris e pensar consigo “linda”, a absoluta falta do que dizer ou mesmo pensar, não havia pensamentos, ele descobriu tremendo de gozo que nada, nada existia além da Rainha Negra e seu belo corpo sacudido por espasmos terríveis, boca aberta e olhos fechados, nada, e todo o resto era só filosofia. Inclusive o verbo, e o sono.

...

Desde aquela noite, muito tempo se passou. É certo que os anos corrompem a tudo, sem piedade; no entanto, guardo acesas as lembranças daquilo, tão acesas quanto estavam as duas velas, ardentes na escuridão. Não gosto de me recordar do momento em que acordei e tive que deixá-la, dormindo como um anjo de cera. Foi bonito o beijo que dei em sua Rainha Negra, mas também foi triste porque eu sabia que nada mais existia, o antes e o depois eram invenções tolas do intelecto, abstrações somente. Não se aplicavam a mim, nem a ela. Eu deixara de ser eu mesmo, e ela – eu jamais soube coisa alguma sobre ela além daquilo que me foi dado vislumbrar na noite em que me levou pela mão ao seu quarto vitoriano, na humilde casinha de subúrbio cheirando a mirra, umidade e baú.

Continuei a vê-la. A Terra voltou ao seu eixo, eu continuei a pegar o trem, e também ela continuou a pegar o trem na mesma estação. Na segunda-feira imediatamente após aquela noite nos olhamos constrangidos. Ela, no entanto, como que a deixar claro que as regras continuavam as mesmas, virou os olhos para a janela e seguiu por toda a viagem a observar-me valendo-se de seus artifícios, os olhos oblíquos tal qual uma Capitu, dissimuladíssimos. Entendi que deveria ser assim.

Já faz mais de vinte anos. Não nos casamos, não tivemos filhos. O peso do tempo é demasiado e noto seus estragos quando me olho no espelho todos os dias. Quanto a ela, continuou bela e fresca por alguns anos, mas de algum tempo para cá principiou a ceder, a cansar-se de manter-se assim sempre jovem. A flor começou a fenecer, como é natural, mas mesmo perdendo o viço ela ainda me fazia sonhar de vez em quando. É engraçado quando está sentada próxima a uma janela e rabisca, como que para me provocar, seu nome de cinco letras no vidro poeirento. Chega até a sorrir, devagarzinho, como se não quisesse sorrir demais e gastar, desse modo, o gesto. Essa mulher é um grande mistério, que não pretendo desvelar.

Da última vez que a vi, parecia exausta, estranhamente sobrecarregada por uma carga invisível. Fantasiei: ela estava carregando ausências, vazios e reticências por todo canto, por onde quer que fosse. Nessa ocasião, vi escorrer de seus olhos uma lágrima amarelada. Tive nojo, dela e de mim, e um pouco de medo por ter um dia dado a ela a alcunha de espelho; então tive a certeza de que não havia mesmo mais nada além dela e aquela partida de xadrez que disputamos com tanta emoção e que agora é só lembrança.

Enquanto eu pensava, o trem parou e eu a vi descer muito antes da estação de costume. Fixei meus olhos nela, tão sobriamente vestida, uma senhora discreta e pálida como tantas. Adivinhando – e ela por certo adivinhara - , voltou-se para mim, encarou-me e sorriu, a boca aberta, os dentes corretamente enfileirados, perfeitos, brancos como os de uma adolescente de quinze anos. Fiquei espantado porque eu sabia que aqueles dentes eram verdadeiros, ainda iguais ao que eram há vinte anos e por certo iguais ao que seriam dali a cento e vinte anos. Fechei os olhos, me protegendo daquilo, e então ela se foi. Para nunca mais. Agora, hoje que tudo me falta, o que mais me dói é sentir-me tão morto como quando dormi naquela noite após o amor – mas sem ela ao meu lado, ela e seu nome de cinco letras grafado no vidro sujo de um vagão de trem, enchendo-me de assombro diante da vida.

[Marpessa - texto publicado originalmente na primeira edição do Aquele]

quinta-feira, fevereiro 10, 2005

Antecâmara
(texto que é parte do meio de algo que ainda não tem começo nem fim)

E se aquela noite fosse claramente uma espécie de coágulo, um vórtex vermelho que sugasse tudo ao seu redor, inclusive o tempo e o espaço? Não haveria como saber enquanto permanecesse fora, a uma distância segura dos fatos. Ao mesmo tempo precisava provar que o coágulo existia e que era também de sua responsabilidade. Havia sua própria força em jogo, além daquelas outras, além da espantosa casualidade.

Seria, então, a sua noite do subliminar, a noite em que se afogaria sem temer a intensidade, mantendo firme a disposição racional de analisar tudo sob um ponto de vista não-emocional, posto que o emocional turva a visão do cientista, ainda que o que esteja sendo analisado seja o coágulo ou a consciência trêmula do inefável.

[Marpessa]