sexta-feira, dezembro 30, 2005

Uma esperança

Aqui em casa pousou uma esperança. Não a clássica, que tantas vezes verifica-se ser ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre. Mas a outra, bem concreta e verde: o inseto.
Houve um grito abafado de um de meus filhos:
- Uma esperança! e na parede, bem em cima de sua cadeira! Emoção dele também que unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim, sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa parede.
Pequeno rebuliço: mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e verde não poderia ser.
- Ela quase não tem corpo, queixei-me.
- Ela só tem alma, explicou meu filho e, como filhos são uma surpresa para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças.
Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre dois quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.
- Ela é burrinha, comentou o menino.
- Sei disso, respondi um pouco trágica.
- Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.
- Sei, é assim mesmo.
- Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.
- Sei, continuei mais infeliz ainda.
Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando. Vigiando-a como se vigiava na Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não se apagasse.
- Ela se esqueceu de que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar devagar assim.
Andava mesmo devagar - estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo.
Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro uma aranha. Não uma aranha, mas me parecia "a" aranha. Andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria a esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse fracamente, confusa, sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:
- É que não se mata aranha, me disseram que traz sorte...
- Mas ela vai esmigalhar a esperança! respondeu o menino com ferocidade.
- Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros - falei sentindo a frase deslocada e ouvindo o certo cansaço que havia na minha voz. Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a empregada: eu lhe diria apenas: você faz o favor de facilitar o caminho da esperança.
O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, com o inseto e a nossa esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer. Não havia dúvida: a esperança pousara em casa, alma e corpo.
Mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde, e tem uma forma tão delicada que isso explica por que eu, que gosto de pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la.
Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que esta, pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: "e essa agora? que devo fazer?" Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu nada.

[Clarice Lispector, in Felicidade Clandestina]

sábado, dezembro 03, 2005

Drama

- Que bom que você voltou.

Ela estendeu a mão fria. Ele tocou de leve aqueles dedos; resultou em uma pressão frágil, fugitiva. Tanto tempo, e a dor que voltava, envelhecida. Ele não sabia porque voltara, agora que olhava para ela nos olhos e sentia o próprio rosto esquentar. Vergonha, como se ainda fosse antes (quando fugira, quando a deixara, quando a magoara muito e tão profundamente) mas antes não sentira vergonha de nada, perdendo, desse modo, a excelente chance de. E ali diante dela sete anos depois era o constrangimento poderoso a paralisar ações, a torná-los ridículos bonecos de cera, de pé um diante do outro no meio de uma sala aconchegante de um belo apartamento em uma bela cidade. O gelo e o silêncio em que se armava uma história em tijolinhos, há muito perdida, liquidada. Sete anos depois era o olhar parado, a poeira das coisas.


Em vão ela buscava razões para o silêncio. Não havia. Talvez fosse melhor – pensou, - talvez qualquer coisa fosse melhor, talvez a única coisa importante fosse o que agora era impossível, não abrir a porta ao passado, evitar a vertigem e os tijolinhos; dar um tiro na cara dele, cuspir o veneno em palavras, afinal, o que esperava? Não queria admitir que esperava ou mesmo que havia algo a esperar-esperar, esse verbo inútil, morto ao nascer.


Tanto perderam, ambos. O que restou era difícil explicar, uma asa trêmula separada do corpo agonizante, a avenida, carros, sorvetes e dias azuis, lembranças, janelas, a fuga na ausência, sons sem eco, a feiúra do rosto quando a máscara finalmente caiu, tão boba, sentindo-se burra, coisas assim tão comuns que acontecem a todo momento por aí, e nem mesmo sabia porque raios havia dito que achava bom que ele tivesse voltado, estupidez, frase murcha e flácida, aperto de mão vacilante, odiou-o por isso, teve nojo, odiou-se também, dar um tiro no meio daquela cara, tiro no espelho, odiando e odiando e odiando pensar, odiando não ter conseguir chorar quando era preciso, nunca – percebeu de repente -, nunca tinha sido tão necessário chorar como ali-agora, ou quem sabe? Morrer, esquecer. Esperar. O verbo terrível, inútil.


- Que bom que você voltou – repetiu.


Estreitou-o num abraço úmido e acolhedor.

[Marpessa, edição 10 do Aquele]
Aquele, edição novinha no ar.

:)