quinta-feira, março 17, 2005

[é a hora da estrela]
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Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que, por admiração, se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.
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Dá-me a tua mão: vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.
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Flores envenenadas na jarra. Roxas azuis, encarnadas, atapetam o ar. Que riqueza de hospital. Nunca vi mais belas e mais perigosas. É assim então o teu segredo. Teu segredo é tão parecido contigo que nada me revela além do que já sei. E sei tão pouco como se o teu enigma fosse eu. Assim como tu és o meu.
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Meu Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença. Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude. Faça com que eu seja a Tua amante humilde, entrelaçada a Ti em êxtase. Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo e receber como resposta o amor materno que nutre e embala. Faça com que eu tenha a coragem de Te amar, sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo. Faça com que a solidão não me destrua. Faça com que minha solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. Receba em teus braços meu pecado de pensar.

[Clarice Lispector]

terça-feira, março 08, 2005

[...]

Durante sete anos andei, dia e noite, só com uma coisa na mente: ela. Se houvesse um cristão tão fiel a seu Deus quanto eu a ela, nós todos seríamos Jesus Cristo. Dia e noite pensava nela, mesmo quando a estava enganando. E agora às vezes, bem no meio das coisas, quando sinto que estou absolutamente livre disto tudo, de repente, ao virar uma esquina talvez, surge uma pequena praça, algumas árvores e um banco, um lugar deserto onde ficamos em pé e discutimos, onde nos deixamos mutuamente loucos com ferozes cenas de ciúmes. Sempre algum lugar deserto, como a Place de l’Estrapade, por exemplo, ou aquelas ruas sujas e lúgubres perto da Mesquita ou ao longo daquele túmulo aberto que é a Avenue de Breteuil, a qual às dez horas da manhã é tão silenciosa, tão morta que faz a gente pensar em homicídio e suicídio, qualquer coisa que possa criar um vestígio de drama humano. Quando percebo que ela partiu, talvez para sempre, um grande vazio se abre e sinto que estou caindo, caindo, caindo no espaço profundo e negro. E isto é pior do que lágrimas, mais profundo que o pesar, a dor ou a tristeza; é o abismo em que lançaram Satã. Não há meio de subir de volta, não há raio de luz, nem som de voz humana ou toque de mão humana.

Quantas mil vezes, caminhando pelas ruas à noite, perguntei a mim mesmo se não voltaria jamais o dia em que ela estivesse ao meu lado: todos aqueles olhares ansiosos que lancei aos edifícios e estátuas... Olhava para eles tão esfomeadamente, tão desesperadamente, que agora meus pensamentos devem ter-se tornado parte dos próprios edifícios e estátuas, que devem estar saturados pela minha angústia. Eu não podia também deixar de refletir que quando caminhávamos lado a lado por essas ruas lúgubres e sujas, agora tão penetradas por meu sonho e minha saudade, ela não observara nada, não sentira nada: eram como quaisquer outras ruas para ela, um pouco mais sórdidas talvez, mais nada. Ela não se lembraria de que em certa esquina parei para amarrar os cordões dos seus sapatos, observei o lugar em que seu pé havia pousado, e que aquilo ali ficaria eternamente, mesmo após as catedrais terem sido demolidas e toda a civilização latina ter sido arrasada para sempre.

Descendo a Rue Lhomond certa noite, num acesso de extraordinária angústia e desolação. algumas coisas se me revelaram com pungente clareza. Não sei se foi por eu ter tantas vezes caminhado por essa rua em amargura e desespero, ou a lembrança de uma frase que ela disse uma noite, quando estávamos na Place Lucien Herr. “Por que não me mostra aquela Paris”, disse ela, “sobre a qual você escreveu?”. Uma coisa eu sei, que à lembrança daquelas palavras percebi de repente a impossibilidade de revelar-lhe a Paris que eu chegara a conhecer, a Paris cujos arrondissements são indefinidos, uma Paris que nunca existiu a não ser em virtude de minha solidão, de minha fome por ela. Uma Paris tão vasta! Demoraria uma vida inteira para explorá-la de novo. Esta Paris, cuja chave só eu possuo, não se presta bem a uma excursão, mesmo com a melhor das intenções; é uma Paris que tem de ser vivida, que tem de ser experimentada cada dia em mil formas diferentes de tortura, uma Paris que cresce dentro da gente como um câncer, e cresce e cresce até nos devorar.


[Henry Miller, trecho de Trópico de Câncer]

quarta-feira, março 02, 2005

Casa dos espelhos


Não me espantei quando me vi estendida sobre um colchão branco, no chão de uma sala que não conhecia, ao lado de alguém que nunca vira antes. Cartas e vivas, ali estávamos; era um estar-sendo solto e franco, ânsia de vida, a falta de arestas do círculo. Estendida sobre o colchão, abri o livro e mostrei a ele alguma passagem significativa, da qual agora não me recordo, mas o que realmente importa é que estávamos deitados lado a lado, eu de barriga para baixo, meus pés balançando enquanto Lou Reed cantava.

Eu havia tirado as botas e pairava sobre nós um calor confortável como uma luz, um instante de poeira fina que assentava em absoluto silêncio sobre os móveis, naquela hora vespertina acolhedora e cheia de certezas. Não havia espaços vazios. Era bom estar ali, traçando um caminho de artista que, com sua mão segura, segue o que lhe dita a inspiração. Eu a musa, ele o observador, o quadro nascendo manso, sem outras possibilidades: antes, era um momento impossível, destes que germinam fechados. Nós, criaturas pictográficas, não pensávamos em fuga porque não havia essa alternativa.

(Havia também o espelho, ou aquilo a que chamamos em silêncio de espelho. E quando digo que chamamos, não quer dizer que nomeamos algo como “espelho”; chamamos porque sabíamos, acima de tudo, que era necessário haver um espelho para que a realidade fosse explicada. O espelho, então, constituía parte integrante desse todo que desenhávamos com cuidado e ao mesmo tempo descuidadamente, como seguindo um roteiro interior que conhecíamos, estranho isso, de muito e muito tempo, sabendo ser improvável e paranormal que soubéssemos mas ainda assim. Poderia também ser cidade, chave, mariposa ou caleidoscópio, e tudo estaria perfeitamente explicado da mesma forma. Mas era espelho.)

Estranha sincronia aquela que me fez apoiar-me sobre o braço esquerdo enquanto era cingida pelo braço esquerdo dele. Estranha porque pela primeira vez senti que não havia contra-razões, que tudo era razão e plausível, até mesmo aquele braço longo cingindo-me pela cintura com uma naturalidade que poderia ser considerada ousadia, não fosse a ausência de contra-razões. Como não havia espaços vazios, percebi subitamente que o nosso estar ali era um conjunto de nãos enviesados, de ausências e faltas que sob outras circunstâncias, quem sabe, produziriam um mal-estar nítido e fatal. Em cada negativa, no entanto, ocultava-se uma dezena de afirmações, como a sombra de uma árvore que esconde uma trilha de formigas.

Nesta altura eu havia descoberto os olhos dele, e a única coisa a fazer quando se está diante de uns olhos que são o exato oposto dos seus é olhá-los e fixá-los, espantar-se com mais aquele paralelismo espelhado misterioso que não vem em caixas ou latas ou embrulhos de supermercado. Aquela construção inversamente proporcional, tão correta em quantidade, nas doses perfeitas dos matizes, aquilo assustador e no entanto possível porque estava ali, firme, incontestável. Aquilo que por existir quase altera a configuração dos meus olhos, que quiseram subitamente avermelhar-se e acabariam transformando-se em algo diferente do que viam. Os tons castanhos enfeitados de verde, os tons verdes enfeitados de castanho. Associações fáceis, avelãs no inverno, esquecidas em um canto de floresta, recobertas de musgo; ou a grama tostando no verão inclemente de um jardim sem chuvas.

(A constatação da existência do espelho se fez de forma silenciosa, como não poderia deixar de ser. Eu, se tivesse maior ciência das coisas e se conhecesse melhor os homens, diria que a idéia do espelho nascera ao mesmo tempo para mim e para ele, porque não posso duvidar da sincronia. Quando a natureza acerta não há o que discutir, e por isso pensei que talvez o surgimento do espelho entre nossas relações tivesse acontecido não apenas porque necessário, mas também de forma simultânea. Não havia porque duvidar, aqueles olhos ao contrário diziam tudo o que era preciso dizer sobre a indefectível existência do espelho. De todo modo, simultânea ou não, a idéia de espelho ultrapassava ali as raízes do tempo para deitar-se como um gato velho e invisível sobre nós.)

Um quarto de hora depois (cabe aqui uma explicação: não queria saber das horas, mas me parece desejável agora dar uma dimensão exata em minutos, e um quarto de hora, todos sabem, são quinze e apenas quinze), pois um quarto de hora depois (depois do quê?, quererão saber, ao que respondo “depois é modo de dizer”), e dentro desse espaço de um quarto de hora, alteramos nossas posições sobre o colchão diversas vezes. Isso para explicar o motivo de, um quarto de hora depois, eu estar sentada e ele quase isso; não sei dizer se nos tocávamos (parece-me certo que sim, mas daquele jeito fantasmagórico que delineia todas as certezas ainda não concretizadas); nos olhávamos e não me recordo do que dizíamos naquele instante, como os que sofrem acidentes ou traumas e ao acordarem rodeados de parentes num hospital não sabem dizer o que aconteceu, e só disso consigo me lembrar: uns olhos crescendo junto ao meu rosto e um sorriso irretocável que se estendeu sobre mim como um pássaro (e aqui não cabe explicação alguma).

Sob a luz que nos cobria inteiramente, peguei-me pensando. O que ocorria, então, era uma mescla interessante entre a mente e o corpo, o pensamento e os sentidos. Eu racionalizava o que parecia ser apenas vital como o ar, o sol, a luz. Em linhas simultâneas, traçava histórias esquizofrênicas, e até mesmo pensei estar ficando louca quando me vi sobrepondo meu corpo sobre o dele, abstraindo-me da carne para entrar no território do mágico, do inefável. Estive a um passo de lhe dizer uma centena de coisas, mas no mesmo instante entendia que nada havia para ser dito. Eu mesma tratei de me censurar: não pense, não pense. Éramos então sombras estranhas porque pálidas, porque nítidas, envolvidas na estranha tarefa de dar continuidade e legitimidade ao espelho.

(Nos movíamos perfeitamente sincronizados e isso só pode ser atribuído à existência do espelho, este elemento perturbador a nos guiar os gestos e também as palavras. Brincávamos de “ser igual” sem nem mesmo termos manifestado o desejo de brincar assim, mas era desse modo que as coisas sucediam sobre o colchão branco. Se não fosse o espelho seríamos desajeitados e cegos como bebês, mas ali demonstrávamos em cada instante e em cada suspiro os melhores reflexos. Este balé perdurou por algumas horas, e disso só sei porque o céu foi escurecendo e subitamente era noite alta.)

Não havia muitas brechas. O pensamento começava a se insinuar, envolvido em racionalidade, rápido como um tiro, mas no entanto eu tratava de sufocá-lo e, como estávamos sob os auspícios do espelho, penso que com ele também ocorria essa fuga desesperada do pensar. Eu assistia ao seu sorriso-pássaro e me enlevava com as palavras impensadas, frágeis, flutuantes, deixando-me à deriva nas lembranças. Como era possível? Carne, pássaro, olhos, livro, metrô, telefone, eu me respondia, e ele me respondia com um silêncios simples e densos. Telefone: descobertas e paralelismos a nos guiar por esse fio de fatos, essa estranhíssima condição montada e disposta de tal forma que nos fora vedada a porta de saída. Desmanchava-me em encantamentos, como boa mulher que sou, procurando uma posição metafísica confortável naquela estrada que era um fiapo a se estender sobre um abismo.

(Uma das características mais estranhas dos espelhos é o fato de que, quando dispostos um diante do outro, eles passam a se refletir até o limite de suas entranhas. Não é fácil para o observador delimitar com exatidão onde morre o horizonte de um espelho, mas uma coisa fica sempre evidente: há um horizonte mais palpável do que o final de um arco-íris, isso sim um espetáculo interminável nas suas extremidades que não existem. Um espelho diante do outro se perde ao longe, que também é dentro, e por ser dentro deve ter um fim, que diabos. Essa perda é fria e pressupõe ausência.)

Mesmo afastando os pensamentos com muita energia, sabíamos que chegaria a hora em que tudo se desmancharia em poeira e lembrança. Do lado de fora das janelas e dos dias de folga havia uma vida bem complicada e cheia das inevitáveis distorções. Não tínhamos uma ilha para fugir, e por isso a sombra a nos espiar, uma velha de rosto duro e grandes óculos de aro marrom. Talvez por isso tenhamos, no dia seguinte e depois de tanta coisa que fizemos na tentativa de prolongar o instante fatal, montado uma cena tão bela quanto tristonha. Envoltos pela penumbra do final da tarde, o quarto azulado e eu sentada no colo dele, imóvel, aprisionada num abraço daqueles que não terminam e durante os quais tudo o que se deseja é murchar até atingir o tamanho de uma formiga, para caber num bolso de casaco. Nossas dores eram somadas e não desapareciam: afundavam-se como flechas de veneno e lágrimas.

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[Marpessa - conto não concluído]