domingo, março 04, 2007

Hotel

Em todo quarto de hotel há um demônio a nos apavorar com a hipótese sinistra de jamais tornarmos a ver novamente o mundo ao qual pertencemos, ou dizemos pertencer. Por toda parte sinto-me só, mas em nenhum lugar estou tão solitária quanto em um quarto de hotel. Qualquer cidade, qualquer país do mundo – e já estive em muitos deles – tem seus hotéis, sob variadas estrelas, nos quais o hóspede pode enfim descansar de uma viagem longa e exaustiva – as viagens são sempre longas e exaustivas – após tomar um banho comprido, organizar sua bagagem, espalhar-se pelo quarto que não pertence a ninguém, nem mesmo ao dono do hotel, que normalmente não conhece aqueles quartos de onde tira seu lucro. O poento caminheiro finalmente pode deitar-se em uma cama que já abrigou tantos outros corpos itinerantes; pode enfim debruçar-se à janela e observar uma paisagem desconhecida e, mesmo que seja um belo país, quase sempre menos atrativa do que aquelas paisagens que povoam as lembranças queridas, a ruazinha de terra, o caminho da escola, a casinha humilde do primeiro amor, bordéis, praças, bares, as solidões iniciais que se perdem dentro de nós para serem por fim reencontradas sob a luz de uma lâmpada desconhecida em um quarto desconhecido. Hotel.

A mim, nada parece justo. A vida me faz mal, muito mal. Ainda hoje pela manhã, ao despertar, rememorei em detalhes a noite da véspera e chorei com amargura singular: conhaques, dois maços de cigarro, uns silêncios que não deixavam nada para a imaginação. Doeu; o quanto, só eu sei. Mais do que a perda da esperança, afligiu-me a sensação de derrota, porque não fomos criados para sermos derrotados logo de cara. Roger adivinhava os meus motivos, e talvez por isso tenha preferido manter-se inescrutável, girando o cigarro entre os dedos magros, soprando a fumaça para longe, sempre à direita do próprio rosto, lançando olhares para o horizonte, ainda que esse horizonte fosse apenas uma parede mal pintada de azul em um restaurante que recendia a delicadezas ordinárias, um romantismo um tanto equivocado em suas paredes azuis e seus enfeites plásticos. De quando em quando fazia um gesto qualquer (eu conhecia todos, entendia todos) e no mesmo instante vinha-me aquela pontada no peito, e então eu tinha que tomar um gole grande e engasgar-me com outra coisa que não fosse lágrima.

Vinte e oito de março. Dissera a ele: - Hoje faz sete anos. Ele sorriu: - Eu sei. E calou-se. Para preencher o vazio, bebíamos. Os entreatos eram sempre muito mais longos do que os atos propriamente ditos, e portanto precisavam ser recheados, sob a pena severa de se tornarem mais incômodos do que o normal. Bebíamos e íamos para a cama mais mortos do que vivos, o bendito sono nos tomando de imediato. Não havia tempo para pensar em nada que não fosse agüentar-se, sobreviver, suportar. Sete anos olhando Roger acordar e acreditando ser isso uma espécie de paraíso, acordar e ver seu amante bonito despertando duas vezes por semana para sempre. Mas até os amantes se cansam e Roger decerto está cansado. Acredito mesmo que ele nutra por mim agora uma espécie de repugnância, pois sequer me toca. Não sei em qual curva do caminho isso tudo começou; quando vi, era tarde demais. Não há mais Roger e Linda, há apenas Linda, há apenas Roger.

Estivemos juntos ontem e nada dissemos, como se não houvesse, de fato, nada a dizer. Evitamos a dor maior; eu não quis perguntar, ele tampouco desejava ser inquirido, porque certamente não gostaria de dar respostas e, secretamente, alimento a idéia de que ele não pretende magoar-me, apesar de tudo. Ama a si mesmo e mantém outras amantes. Para meu infortúnio, não raro me apanho recordando os primeiros tempos, a primavera vívida e solar na qual nos derramamos, nos entregamos um ao outro em uma relação franca e vivaz. Hoje não passamos de cadáveres cinzentos que, por acaso, foram atirados juntos à mesma cova rasa.

Roger, ontem, fugiu e não pôde ocultar isso de mim. Meus olhos estavam atentos, fixados em cada movimento, em cada combinação de gestos, em cada sibilar, assobio, estalar de dedos, cigarro aceso, balançar de pés, menear de cabeça. Eu estava toda em Roger, enquanto ele escapava, escorregava como um gato que se recusa a ficar no colo e busca a liberdade esticando-se por qualquer fresta deixada pelos braços que o tentam reter. Assim estava Roger, assim o entendi, ou melhor, tive certeza do que era aquilo quando ele fixou a vista na parede azul, a alma lutando para fugir, um viajante observando o horizonte da amurada de um navio em alto-mar. Nessa hora tomei um gole dos grandes, bem grandes, e enxerguei pelo vidro do copo o rosto deformado de Roger, a cara assim derretida, escorregando para fora do ângulo de visão, a metade superior do rosto completamente virada para a direita em uma torção estranha.

Como não soubesse o que fazer, hoje pela manhã optei por sair de casa, tomar o primeiro ônibus para uma cidade da qual mal ouvira falar, procurar um hotel não muito caro e enfim deixar-me ficar por algum tempo, não saberia dizer quanto, mas o suficiente para que alguma coisa aconteça dentro de mim, para que algo mude, algo ligue ou desligue com força, de modo que eu possa perceber a mudança como algo positivo ou negativo, isso pouco importa, porque o que vale mesmo é mudar. Há um demônio aqui também, como em todos os outros quartos de hotel, mas este aqui é dos mais mefistofélicos. Pedi um vinho e um conhaque, o hotel não é dos piores, nem sei onde estou. Olho pela janela e não sei para que lado fica nada, é uma paisagem completamente desconhecida e isso, em vez de ser opressivo, acaba por tornar-se libertador. É esquisito que eu me sinta assim liberta, logo eu que sempre fui tão claustrofóbica em ambientes novos, mas o fato é que ninguém sabe que estou aqui, nem mesmo Roger, que para ele não devo satisfações, muito menos agora depois da noite horrorosa e da repugnância e do vislumbre dele tentando escapar pelo fundo de um copo, buscando a parede azul no restaurante mais ordinário jamais concebido.

Engraçado que jamais tenhamos colocado os pés em um hotel juntos, Roger e eu, Roger e Linda – como um dia foi, como não mais será.

[Marpessa]