sexta-feira, agosto 27, 2004

Correntes

Daquelas noites em que nada se sabe e quase nada se quer. O que viesse seria lucro.

Os pêlos do meu braço estava arrepiados o suficiente para machucar. Tomei um conhaque sem pensar duas vezes e sem sentir o sabor. O fato é que eu estava ali abandonado, arrastando minha auto-piedade feito correntes de setecentos elos.

Minha cabeça paria pensamentos estranhos sob a garoa. Cada esquina se afigurava como o maior e mais temido dos desafios. Deixava para trás toda e qualquer placa de sinalização, mas minhas correntes de setecentos elos se enroscavam em um bar, um velho conhecido ou um telefone público.

Aquilo precisava acabar, pois meus pés doíam e sentiam falta de massagem. Encostei no ponto de ônibus e pus-me a ouvir Lou Reed cantando baixinho em meus ouvidos. Jamais uma sensação musical fora tão boa quanto naquele momento – Lou, meu bálsamo e meu martírio covarde. Ele, brincando de amaldiçoar pessoas e coisas e lugares com seu lirismo sádico.

Lou cantava e eu caminhava de novo. Uma brasa seca brilhava a cinco centímetros dos meus dedos. Soprei longe a fumaça. Não era tão bonito quanto parece ser quando apenas se pensa sobre isso: um cigarro sob a noite enevoada com Lou nos ouvidos e o coração abalroado por uma onda incontrolável. Apenas poesia, nada real, nada comparável aos setecentos elos das minhas correntes que não deixavam saídas fáceis. Lou não faria massagem nos meus pés naquela noite.

E havia o vazio, claro.

Era demais olhar-me nas vitrines escuras dos bancos e ver minha triste silhueta. Cabelos escorridos. Ao perceber meus olhos atrás das lentes gotejadas dos óculos, que dor! Nenhuma tristeza nesse mundo pode se comparar àquilo: lentes molhadas. Um garoto solitário novamente, uma criança que ninguém quer, menino de dez anos que ainda não sabe de nada da vida e não conhece boas respostas, ameaçado pelos garotos grandes e ignorado pelas meninas cruéis. Óculos, coroa de espinhos.

Enfiei as mãos nos bolsos. Minhas correntes rangiam alto e eu temi que alguém pudesse ouvir – só que não havia mais ninguém na rua. Menino de dez anos que gostava de sofrer e se deliciava em sentir pena de si mesmo. Todo sentimento fica mais fluido ao amanhecer, mas não para aquele menino que andava dentro de mim tentando sair.

De súbito, uma esquina acabou com todo o mistério. Um carro bonito virou a rua e parou no farol. Enquanto eu caminhava sem prestar muita atenção, uma blusa cor-de-rosa saltou de dentro do carro para queimar minhas retinas. Uma gota nos óculos luziu avermelhada. Fixei os olhos e vi os cabelos loiros e uma boca enorme sorrindo, tão grande que eu poderia adivinhar o gosto daquele batom. O motorista sorrindo também e sua mão direita, mãos de homem, tocando o queixo rosa e suave enquanto o farol não abria.

A corrente pesou, o suspense se foi. As lentes molharam-se ao mesmo tempo em que o amargo subiu à garganta. Aquele sorriso vermelho e os fios dourados, bonitos e soltos, aquele brilho de estrelas... Um tiro de raiva passou por mim. A saliva estava grossa e eu cuspi longe aquela ira que dava-me náuseas.

Era o fim de uma esperança, um fim que chega destruindo todo um processo, uma longa lista de pensamentos. Algo como almoçar em cinco minutos depois de ter levado três horas para preparar o almoço.

Pareceu demorar muito a sumir a visão daquela menina. Por um instante parei e olhei para cima, murmurando “Deus, o que estou fazendo?”, porque me ocorreu que estar ali era apenas mais uma desculpa para sofrer e remoer minhas dores. Novamente, a imensa solidão urbana me agarrou.

Mandar tudo à merda. Todos os setecentos elos. Que o mundo queime até o fim, que as chamas consumam cada par de óculos, cada gota de orvalho, cada boca vermelha. Que consumam Lou Reed e meu walkman, meus ouvidos e minha cabeça.

Mas jamais a chama virá. Ela não sai do meu coração. Só eu me queimo, tenho febres intermináveis, ânsias de vômito. A dor. A dor. Todo mundo tem alguém para compartilhar a dor, mas eu não. Eu a suporto sozinho, não porque sou mais forte do que todo mundo e sim porque todo mundo é bem mais forte do que eu.

Lou grita, em seu jeito sussurrante, que este é um dia perfeito. Beber sangria no parque. Imagino isso enquanto ando, ando, ando. Um parque novaiorquino de outono, um lindo parque com milhões de folhas marrons. Frio, vento e alguém ao meu lado, alguém cujo rosto não consigo desenhar. Uma garota não vulgar, não de batom vermelho. Uma garota discreta como uma francesa, de olhos inteligentes, de sorriso amplo e cabelos negros com alguns fios caindo pelo rosto pálido. Sardas e sonhos. Riso encabulado em alguns momentos, franco e aberto em outros. Já tenho um rosto, enfim, mas por ser um rosto diferente não consigo encaixar as feições. Como seria essa garota? Com quem se pareceria?

Eu realmente prefiro que não se pareça com ninguém.

E eu estaria ali, oferecendo à amiga uma dose de sangria disfarçada em um saco de papel. Estaria de sobretudo. E de óculos, ela não se importaria, quem sabe até achasse charmoso (talvez ela também usasse óculos). E cachecol cinza. E um chapéu – que a bela menina de vez em quando colocaria em sua bela cabeça apenas para fazer graça e perguntar “e então, como estou?” com um sorriso que pertenceria aos deuses, e não a mim. Merda de cinema. Minha imaginação sempre é um espelho dos filmes que vejo.

Mas a garota seria minha amiga de verdade. Ouviríamos música no parque. Estaríamos felizes apenas pelo fato de estarmos sentados lado a lado, mesmo que não houvesse o que dizer. O sorriso não deixaria nossos rostos. Não penso em beijos. Não quero tocar nela. Quero apenas vê-la e deixar-me levar, ver o dia branco morrer, não pensar na noite e nem no que virá depois da noite. Ela ajudaria a carregar minha corrente de setecentos elos e eu ajudaria a carregar a dela, pois certamente também teria uma. Ficaríamos satisfeitos com este arranjo, mas não falaríamos nele nunca, pois o peso das correntes poderia estragá-lo. Volto a fita mais uma vez e me deixo ficar junto a outro ponto de ônibus. Já não vejo as pessoas e meus óculos estão completamente molhados. Procuro.

Just a perfect day, drink sangria in the park. And then later when it gets dark, we go home. Só queria este pedaço de universo, esse miserável rasgo no céu sombrio que é a minha vida desde o começo. Ela, ela moraria neste rasgo no céu sombrio, bem pequena, lá longe, e eu só a olhando, seu rosto, suas asas de anjo. Pequena e bem distante, no único pedaço azul do meu céu. Meu Deus, eu sabia agora como era amar e amava dolorosamente minha quimera, como se estivesse ao alcance de um telefonema. Faria um altar para ela e somente a ela me devotaria.

Todas as minhas promessas de amor serão para ti.

A realidade se derrama sobre mim. É como nascer: a luz, o frio, o fim do longo sono. Não é bom voltar a viver. Eu não queria mais sair do rasgo azul no céu sombrio. Eu não queria ser assim, eu queria detestar Lou Reed e permanecer contente, mas acho que não dá mais e então um carro passa, encharcando meu corpo com a água empoçada no meio-fio. Protejo meu walkman, pois sem ele eu não seria ninguém e não haveria mais noite. Outra vez a realidade. Meu relógio aponta duas e quinze e meu corpo está gelado. Meus pés ainda doem, agora eu os sinto de novo. Meu peito arde e a corrente pesa demais.

Já sonhei em dobrar a esquina e encontrar a salvação. O problema é que não adianta dobrar a esquina esperando por isso, porque a salvação nunca chega.

Fiquei um pouco mais adulto naquele instante. E mais pensativo e mais resoluto. Vou embora, pensei. Melhor devanear na cama até o sono chegar. A idéia de devanear em paz foi bastante atraente, mas pensar no amanhecer me fez notar que a noite e a cama são apenas uma passagem para um nada que não pára de acontecer, rodeando meu corpo como um véu.

E se não havia saída, então quem sabe indo para casa eu encontrasse aquela suave figura, arrastando sua pesada corrente de setecentos elos, disposta a dividi-la comigo.

[Marpessa, 1997]

Reconhecimento do amor

Amiga, como são desnorteantes
os caminhos da amizade.
Apareceste para ser o ombro suave
onde se reclina a inquietação do forte
(ou que forte se pensava ingenuamente).
Trazias nos olhos pensativos
a bruma da renúncia:
não querias a vida plena,
tinhas o prévio desencanto das uniões para toda a vida,
não pedias nada,
não reclamava teu quinhão de luz.
E deslizava em ritmo gratuito de ciranda.
Descansei em ti meu feixe de desencontros
e de encontros funestos.
Queria talvez – sem o perceber, juro –
sadicamente massacrar-te
sob o ferro de culpas e vacilações e angústias que doíam
desde a hora do nascimento,
senão desde o instante da concepção em certo mês perdido na História,
ou mais longe, desde aquele momento intemporal
em que os seres são apenas hipóteses não formuladas
no caos universal.
Como nos enganamos fugindo ao amor!
Como o desconhecemos, talvez com receio de enfrentar
sua espada coruscante, seu formidável
poder de penetrar o sangue e nele imprimir
uma orquídea de fogo e lágrimas.
Entretanto, ele chegou de manso e me envolveu
em doçura e celestes amavios.
Não queimava, não siderava; sorria.
Mal entendi, tonto que fui, esse sorriso.
Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amor
que trazias para mim e que teus dedos confirmavam
ao se juntarem aos meus, na infantil procura do Outro,
o Outro que eu me supunha, o Outro que te imaginava,
quando – por esperteza do amor – senti que éramos um só.
Amiga, amada, amada amiga, assim o amor
dissolve o mesquinho desejo de existir em face do mundo
com olhar pervagante e larga ciência das coisas.
Já não defrontamos o mundo: nele nos diluímos,
e a pura essência em que nos transmutamos dispensa
alegorias, circunstâncias, referências temporais,
imaginações oníricas,
o vôo do Pássaro Azul, a aurora boreal,
as chaves de ouro dos sonetos e dos castelos medievos,
todas as imposturas da razão e da experiência,
para existir em si e por si,à revelia de corpos amantes,
pois já nem somos nós, somos o numero perfeito:UM.
Levou tempo, eu sei, para que o Eu renunciasse
à vacuidade de persistir, fixo e solar,
e se confessasse jubilosamente vencido,
até respirar o júbilo maior da integração.
Agora, amada minha para sempre,
nem olhar temos de ver, nem ouvidos de captar
a melodia, a paisagem, a transparência da vida,
perdidos que estamos na concha ultramarina de amar.

[Carlos Drummond de Andrade]

segunda-feira, agosto 23, 2004

Do colapso humano

Vivemos em um período de transição de um mundo escuro para um mundo ainda mais escuro. Inseridos em uma faixa vibrante e caótica de atos e informações, jogados de cá para lá como partículas em um acelerador subatômico, e o final da experiência é a explosão. A faixa vibrante e caótica é iluminada aqui e ali por fogos fátuos, ensaios de luz que mais confundem do que esclarecem. Somos enganados o tempo todo; corremos para um porto seguro, constatamos: não é aqui!, e tornamos a correr, e de novo não é para onde queremos, não encontramos o que procuramos, especialmente, e creio que este é o ponto, porque não sabemos o que estamos tão avidamente perseguindo. Somos levados a não saber; as escolhas tornaram-se muitas e mais amplas do que nossa capacidade humana de escolher. Este é o verdadeiro drama individual de nossa época, a angústia além dos povos, dos governos, dos sistemas, o drama egoísta produzido por nossos próprios mecanismos egoístas. Chega a ser risível: tanta comunhão, tanta conjunção, as fronteiras derrubadas, o demônio/anjo da comunicação sem limites, o fim das barreiras! Tudo para que nos atiremos a esmo no vazio do auto-desconhecimento.

Ignoramos o interior para atender ao exterior – que é o que ocorre com o indivíduo quando levado cegamente a lutar por uma causa que não é e jamais seria a “sua” causa, como nos regimes totalitários. E as buscas tendem a ser, para sempre, insatisfatórias e perigosas, acumulando em seu bojo todo tipo de doença e vício. Essa velocidade é a coisa mais nociva que já criamos, apesar de gostarmos dela. Adoramos a Grande Teia e nela depositamos todas as nossas esperanças, sejam elas de cunho prático ou não. Nos conforta saber que estamos a segundos de qualquer lugar; nos apavoraria imaginar a qual distância estamos de nós mesmos.

Basta, para comprovar isso, analisarmos a história do século XX. Como foi este período? O mundo se acelerou graças às revoluções sociais, culturais, tecnológicas e ideológicas. Aconteceram coisas demais para um único século, mais do que foi vivido em um milênio inteiro. O colapso, portanto, me parece inevitável e iminente – natural, eu diria. Nos aproximamos do mundo para fugirmos dos nossos Eus, como a pessoa que sabe que é um monstro, e esta é a pedra de toque do colapso. Estamos sempre olhando pela janela, esperando por algo que nunca chega.

[Marpessa]
Querido Arreola:

...Falo da alegria em ler seus contos. Primeiro às pressas, depois devagar, tomando meu tempo e sobretudo dando-lhes, aos contos, seu próprio tempo, que necessitam para amadurecer na sensibilidade de quem os lê. Você já percebeu que um dos problemas mais temíveis dos contos é que os leitores tendem a lê-los com a mesma velocidade com que devoram os capítulos de um romance? ... O resultado é que os contos se esquecem logo... Não deveríamos fundar uma escola para a educação de leitores de contos?... Já é hora de que nas universidades se crie a cátedra de contos, como costuma existir a de poética. Que coisas estupendas podiam ser ensinadas nessa cátedra! Antes de mais nada, os primeiros colaboradores da cátedra (como alunos ou professores) deveriam ser os próprios contistas.

É curioso que muitos deles jamais refletiram sobre o gênero. Não falo da reflexão estilística, pois não é imprescindível, mas sim da meditação básica, na qual colaboram em partes iguais a inteligência e o plexo, e que deveria mostrar ao contista os riscos de seu território. Sua complicada topografia, e a responsabilidade que isso implica... E me parece que o melhor de Confabulario e de Varia invencion nasce do que você possui e que Rimbaud chamava le lieu et la formule, a maneira de pegar o touro pelos chifres e não, ai, pelo rabo como tantos outros que entopem as gráficas deste mundo. E por isso acabo de ler seus contos – e reler os que mais gosto – e depois super lê-los, que consiste lê-los na lembrança –, e estou contente... Gosto de sua brevidade narrativa, me assombra o que você consegue com tão pouca matéria verbal... Por exemplo, quando você escreve “O Rinoceronte”, basta-lhe a primeira frase (que perfeita!) para que a gente esqueça que está sentado numa poltrona... “Durante dez anos lutei com um rinoceronte; sou a esposa divorciada do juiz McBride"...

Seu amigo, Julio Cortázar

[de uma carta de Julio Cortázar a Juan José Arreola, 20 de setembro de 1954]
rascunhos (18 de setembro de 2003)

[...] Só sabe ser quando abre o caderno vermelho, apanha a lapiseira vermelha e ocupa-se – a verdadeira ocupação – em desenhar letras com o grafite de cor indefinida, letras comendo as finas linhas azuis da superfície do papel, no verso a contraparte do que escreve, o passado de sua escrita do agora, confusos traços ao contrário, ela agora a mexer nos óculos que não estão (lentes de contato, esquece sempre), sente o contorno, o peso, a consistência deles, o que é o costume, minha gente. Só sabe ser quando escreve, espera que o pensamento não fuja, porque não há nada para se ver ao redor, o caderno é o espelho por excelência e a ela só interessa Ela Mesma. [...]

[...] Para escrever ficção é preciso primeiro viver as coisas, mas viver as coisas nem sempre significa “viver”; pode ser “assistir” ou “imaginar com força”, de tal forma desejar que essas duas ações estejam e sejam o viver. Ou, ainda, “representar”. Tem que ter um cinema ou um teatro dentro de si, e manter os sentidos todos anormalmente alertas. [...]

[...] Um perigo, um verdadeiro perigo quando até o mais prosaico dos gestos, o mais comum dos estados estáticos, se enche de importância e ganha profundidades caleidoscópicas, e tudo então se torna passível de análise, é uma loucura e você jura estar enlouquecendo também por enxergar profundezas em poças d’água, sentindo-se idiota e sentimental, caindo nas armadilhas do senso comum – ou não? Nada há de comum nisso. [...]

[...] Por que tudo parece esquisito e surreal? Por que raios estou agora me aprofundando em múltiplas realidades? [...]

[...] Por que diabos esperava um milagre, se nem sabia que tipo de milagre desejava? Angústia de sonhar com o milagre, de imaginar um leque tolo de milagres, qual deles queria, e por que o queria, se jamais viriam? Sempre o mesmo: não há milagres possíveis quando se espera por eles. Tomou mais um gole de chopp, os espelhos, Deus do céu, morava em um espelho postado diante de outro e ambos se refletem, ela mesma centenas infinitas de vezes, bonecas russas enfiadas umas nas outras até o indivisível do ser. Hoje recorda-se, é inevitável a recordação. O quarto, um grande espelho, cinco anos talvez, a vertigem da descoberta do inefável, o vazio das imagens refletidas até o fim do tempo e do espaço, até sumirem pequenas uma no íntimo da outra. Só sabe que frio e tudo se congelou, hoje compara ao sonho parisiense de Baudelaire, mas na ocasião era só um frio de solidão e pena das imagens que se perdiam durante a experiência, menina de filme de terror, dá medo olhar para dentro dos espelhos. Nessas horas, quando tudo se confundia, o mais sábio a fazer (curioso paradoxo) era fumar um longo e branco cigarro. [...]


[Marpessa]
Inferno V

Altas horas da noite, despertei de repente à beira de um abismo nunca visto. Rente à minha cama, um abalo sísmico rachou a pedra escura que se desmoronou em semicírculos, deixando escapar um tênue vapor nauseante e uma revoada de aves negras. De pé sobre um pedestal de lavas, quase suspenso em sua vertigem, uma figura irrisória, cingida por uma coroa de louros, estendia-me a mão num convite à descida.

Dominado pelo terror noturno, recusei amavelmente, ponderando que todas as expedições ao fundo do homem acabam sempre em um vão e superficial palavrório.

Preferi acender a luz e me deixar cair, outra vez, na profunda monotonia dos tercetos, onde uma voz, que fala e chora ao mesmo tempo, repete que não há maior dor do que rememorar o tempo feliz na miséria.


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O Encontro

Dois pontos que se atraem não têm por que seguir forçosamente uma linha reta. Sem dúvida, é o caminho mais curto. Há, no entanto, os que preferem o infinito.

As pessoas caem umas nos braços das outras sem delinear a aventura. Quando muito, avançam num ziguezague. Mas, uma vez no rumo certo, corrigem o desvio e se juntam. Amor tão repentino representa um choque, e aqueles que assim se defrontarem são devolvidos ao ponto de partida como por efeito de um disparo. Projetados violentamente, sua trajetória de retorno os incrusta novamente, canhão adentro, num cartucho sem pólvora.

Vez por outra, um par se afasta desta regra invariável. Seu propósito é francamente linear, não carece de retidão prévia. Misteriosamente, escolhem o labirinto. Não podem viver separados. Esta é a única certeza que os possui, e terminam perdendo-a ao se procurarem. Quando um deles erra e marca o encontro, o outro finge não perceber e passa sem cumprimentar.

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Cavaleiro Desarmado

Não podia tirar aquelas idéias da cabeça. Mas, um dia meu amigo, o arcanjo, ao dobrar uma esquina e sem dar-me tempo sequer de saudá-lo, agarrou-me pelos chifres e, suspendendo-me com sinceridade de atleta, fez que eu descrevesse no ar uma cabriola (tour de force magnifique), e eu caí de bruços, cego pela dupla hemorragia. Antes de perder os sentidos esbocei um gesto de agradecimento para com o amigo que fugia, às pressas, desfazendo-se em desculpas.

O processo de cicatrização foi lento e doloroso, embora eu tentasse encurtá-lo lavando as feridas, diariamente, com um pouco de soda cáustica dissolvida em águas do Letes.

Reencontrei hoje o arcanjo, quando estou comemorando meu quadragésimo aniversário. Com uma estranha expressão, ele trouxe de presente os meus chifres, agora incrustados numa bela testada de veludo. Coloquei-os, num impulso instintivo, na cabeceira do meu leito, como um símbolo prático e funcional: esta noite, antes de dormir, dependurei neles todos os atavios da juventude.

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Liberdade

Acabo de proclamar a independência dos meus atos. À cerimônia compareceram apenas alguns desejos insatisfeitos, duas ou três atitudes condenáveis. Um propósito nobilitante, que prometera aparecer, enviou à última hora sua escusa humilde. A cena transcorreu num silêncio pavoroso.

Creio que o erro esteve na proclamação ruidosa: trombetas e sinos, foguetes e tambores. E, para culminar, uma engenhosa queima de moral pirotécnica, que não chegou a arder de todo.

No final das contas, achei-me sozinho comigo mesmo. Despojado de todos os atributos de caudilho, os confins da noite me encontraram empenhado na simples tarefa de escritório. Com os últimos restos de heroísmo, atirei-me à penosa incumbência de redigir os artigos de uma extensa constituição, que amanhã submeterei à assembléia geral. O trabalho divertiu-me um pouco, apagando do meu espírito a triste impressão do fracasso.

Leves e insidiosos pensamentos de rebeldia voam como mariposas noturnas em volta da lâmpada, enquanto sobre os escombros de minha prosa jurídica passa, de quando em vez, um tênue sopro da marselhesa.

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Gravitação

Os abismos se atraem. Eu vivo à borda de tua alma. Inclinado sobre ti, perscruto teus pensamentos, indago a origem dos teus atos. Vagos desejos se contorcem no fundo, confusos e ondulantes em seu leito de répteis.

De que se nutre minha contemplação voraz? Vejo o abismo e tu jazes na profundeza de ti mesma. Nenhuma revelação. Nada que se pareça ao súbito despertar da consciência. Nada senão o olho que, implacável, devolve meu olhar perscrutador.

Narciso repulsivo, contemplo minha alma no fundo de um poço. Por vezes, a vertigem desvia-me os olhos de ti. Mas sempre volto a escrutar a furna. Outros, felizes, detêm-se um momento diante de tua alma, e se vão.

Eu permaneço na margem, ensimesmado. Muitas criaturas se despencam do alto. Seus despojos surgem insignificantes, dissolvidos na satisfação. Atraído pelo abismo, vivo a certeza melancólica de que nunca irei cair.

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Post Scriptum

Com o cano da pistola contra o céu da boca, por entre o untuoso e frio sabor do aço escuro, senti a náusea incoercível que me produzem todas as frases feitas. “Ninguém...”

Não tenhas medo. Não colocarei aqui o teu nome, tu, a quem devo a morte. A morte melancólica que me deste há um ano e que, lucidamente, consegui aplacar para não morrer como um louco. Recordas? Deixaste-me só. Pugilista nocauteado em seu repouso, com a cabeça imersa num balde de gelo.

É verdade. Após o golpe, senti-me desfigurado, confuso, indefinível. E ainda me vejo caminhar tropegamente, atravessando a rua com o cigarro apagado na boca, até o poste em frente.

Cheguei em casa bêbado, com o estômago revolvido. Curvado sobre o lavatório, ergui a cabeça e me contemplei no espelho. Estava com um semblante de El Greco. De um bufão de Toledo. E não quis morrer assim. No trabalho de destruir tal máscara, todo um ano transcorreu. Recuperei minhas feições, uma a uma, posando para o cinzel da morte.

Há condenados que se salvam quando já a caminho da execução. Eu pareço um deles. Mas não pretendo salvar-me. Desfruto os momentos da espera com os rigores de estilo. E aqui estou, ainda vivo, traspassado por uma frase: “não culpem a ninguém...”


[Juan Jose Arreola, Confabulario Total]

Vomitando

Muito me apavora a solidão dos espaços infinitos que existem entre as pessoas e dentro delas. É assustador apoiar-se na beira do abismo e olhar para baixo, enxergando um nada, um grande nada circundado por tênues resquícios de luz. Todos andamos cegos tateando no breu, feito almas no inferno, procurando, chocando-se e pedindo desculpas, sobressaltando-se com qualquer forma de contato, assombrando-nos o incrível medo de descobrirmos, finalmente, alguma coisa. Porque ainda mais tenebroso do que navegar pela solidão do escuro é tocarmos em algo que não podemos ver, e mais ainda, não conhecemos. Sentimos a forma, a temperatura, as texturas, e ainda assim, por não ser nada do que povoa nossas mentes acostumadas aos falsos brilhantes existenciais, encolhemo-nos com medo, e tentamos com todas as forças fugir e vazar nossos olhos e perfurar nossos ouvidos, amputar nossas mãos, anularmo-nos, anularmo-nos em nome do que é conhecido, deixando para trás e no limbo do desconhecimento aquilo que permanecerá irrealizável, irreal, e é como gostamos. No mundo em que eu vivo, dentre as pessoas que conheço e reconheço, dentre as relações, os fatos, o tempo e os deslocamentos espaciais dos quais me sirvo diariamente para viver e seguir em frente, noto nas entrelinhas as extraordinárias possibilidades jamais possíveis; a galáxia de mitos, de imagens falsas, de engodos engendrados com displicência e inconsciência. Nós, cartas de um baralho gasto e seboso, caminhando em duas dimensões quando existem tantas inexploradas... Entrevejo nos rostos as cores da mentira, de todas as mentiras, o cerne de toda a confusão, de todo o gelo fino e cinzento que recobre a superfície de um lago denso e frio. Estamos encapsulados em um estranho jogo, cuja regra de ouro é FINGIR, engendrar máscaras, capas, capotes, algemas, luvas, vendas, tampões ginecológicos, mordaças, e mantermo-nos ocultos sob todos estes acessórios para protegermos nossas preciosas existências de todo o mal decorrente do desconhecido.

É o mal social global, não importa que estejamos ao sul do Equador, agraciados pela bênção do sol, incitados em nossas naturezas primitivas a sermos reais e não espectros, a sermos de carne e ossos e sangue, e não caldo de repolho. Estamos aqui contaminados, nessa pobre América dos Países Baixos, por uma herança indigna da grandeza de nossos antepassados. Contaminados pelo frio dos colonizadores. Contaminados pelas doenças que trouxeram, pelas doenças do corpo e da alma, contaminados e condenados a sermos cada vez mais iguais, porém sem ultrapassar os limites do arremedo, da imitação, tornando nossas vidas sempre uma espécie de nuvem que engolfa em seu caminho tudo o que pode haver de pior – esponjas atiradas no esgoto, mais precisamente. Estes tempos, que tempos, meu Deus! Que tempos. Seguindo as leis do retorno, os ciclos históricos, vivenciamos nós, pobres homens e mulheres do terceiro milênio, a alvorada da escuridão. Mergulhamos a cada segundo, a cada notícia, a cada crença derrubada ou erigida, a cada parto e morte e sono e câmbio e falência, a cada estúpida declaração na tv, a cada momento na Grande Rede, a cada linha ou letra ou número, a cada queda de energia, a cada beldade, a cada fealdade, a cada sintoma de ódio, fé, desespero ou desconforto – mergulhamos todo o tempo e para sempre, pelo resto das vidas de quem lê isso e de seus filhos e netos¸ na Idade das Trevas. Conhecimento em demasia gera ignorância em demasia. Vamos abolir o estudo do Medievo dos livros, porque não é mais necessário e urgente do que estudar este tempo de agora, aqui bem onde estamos, o novo Medievo, até que as forças superiores decidam acabar com tudo e voltar à prancheta. Esta Idade das Trevas será ainda maior, mais forte, mais negra, mais devastadora do que qualquer peste. Deixemos os ratos de lado, pois temos o homem, e o homem, em toda sua terrível força, encaminha este mundo e esta sociedade terrestre para o fundo do rio... Nunca se viu tamanho esforço empreendido por uma raça para acabar consigo própria e garantir que não haja possibilidade de sobrevivência. Alguns estão querendo escapar pela tangente, querendo voar para outros mundos, querendo habitar estações no espaço. Outros esperam, os pobres coitados, serem despertos de um estado criogênico para um novo mundo, melhor, mais justo, etc. Esperem em suas cápsulas. Esperem como múmias. Quando a justiça for finalmente feita, isso significa que não haverá mais mundo, tampouco países tropicais de águas azuis e terapêuticas. Não haverá mais nada, porque estamos diligentemente devorando feito traças toda a nossa esperança. Essa raça feita de pessoas herdeiras da doença crônica de todas as sociedades e de todos os milênios desde a sopa primordial, essa raça não está apta, nem cientificamente e muito menos espiritualmente, para salvar-se. É como querer ver Deus e depois tentar escrever a respeito: não podemos porque não temos elevação anímica nem capacidade física para tal. Nossas mentezinhas, que julgamos tão avançadas, e nossas almazinhas, que cremos tão esplêndidas, estão manchadas irremediavelmente pelas fezes de trilhões. Estamos sujos, completamente maculados, e este sim é o Pecado Original do qual não podemos nos redimir com algumas gotinhas na cabeça e o sinal da cruz. Somos os maiores pecadores de todos os tempos; somos o erro bem acabado, o topo da civilização, vorazes predadores autofágicos, os mais eficientes canibais de que se tem conhecimento. É impressionante como pudemos chegar a tal estágio. Impressionante como a evolução é perversa, em todos os sentidos. Impressionante como, tanto aqui como acolá, é sempre mais do mesmo. E aqui neste país, tão difícil de definir e categorizar, estamos ainda mais sujeitos a todo tipo de resíduo. Somos mais permeáveis, mais maleáveis, e nossa personalidade enquanto povo é fraca, fraca, porque trata-se de uma mistura que não teve tempo de maturar antes de ir para o forno. Um bolo cru, é o que temos. Um imenso bolo de queijo com seus vários buracos vazios, cru e começando a apodrecer antes mesmo de ficar pronto. O que é uma pena.

Este pobre país, esta pobre gente que é cozinhada diariamente pelo sol e depois esmagada feito as batatas do purê, é fruto de erro, involução e globalização. Essa pobre gente foi gerada pelo ódio, pela maldade, pelos interesses, pela bestialidade européia; pela servidão e pelas lágrimas e rancor dos negros; pelo aturdimento e impotência dos donos da terra diante da invasão sem misericórdia. Nós, os herdeiros, não crescemos orgulhosos. Não sentimos palpitar o verdadeiro sentimento de unidade nacional, porque cada um de nós é muitos, colados como um vaso remendado por uma criança. Nos assemelhamos mais a cavalos selvagens que por acaso pastam no mesmo descampado do que a um povo. Não temos identidade racial, nem em genótipo e muito menos em fenótipo. Isso é bom quando produz um resíduo artístico interessante, mas é só. Não tem nos ajudado. Nem por isso somos melhores ou piores do que outros povos, mas somos a síntese da potencialidade do vir-a-ser, que jamais virá-a-ser, para nossa desgraça. Estamos corrompidos desde o berço e ainda querem nos fazer crer que somos especiais, mas não somos! Apenas andamos como todos, com duas pernas e dois pés, sendo tão ruins, tão criativos, tão gananciosos, tão falsos, tão inteligentes, tão ignorantes quanto qualquer outro habitante deste vasto e intrincado mundo. Com a desvantagem clara de não sermos levados a sério, no fundo, porque não somos mesmo encarados com seriedade em quaisquer níveis. Pela polidez e pela economia, nos despejam cordiais saudações. Nem piores, nem melhores; animais estranhos. Temos os atrativos dos bonecos vudus haitianos, dos mares caribenhos, da cor exótica, da beleza feminina, do que é pitoresco, analisado com superficialidade com aquele olhar de turista, que se encanta com ninharias apenas porque não as conhece de perto, mas tão logo retornam ao conforto e à civilização fria que deixaram para trás, esquecem-se de nós. Ficamos na memória como um sonho arquetípico, de paraíso perdido, e não como gente de verdade. Aos olhos dos outros, estamos sempre tentando igualar-nos, e essas tentativas resultam em sorrisos condescendentes e uma indiferença constrangedora. Somos constrangedores enquanto país e enquanto indivíduos, por mais que existam dentre nós aqueles que merecem respeito porque ultrapassam as definições nacionais, porque são cidadãos do mundo em todos os sentidos, em suas conquistas e em seus pensamentos.

A dedicação do mundo à causa da morte e da destruição é mais um importante item do testamento, do legado histórico. Hoje, tudo parece ‘over’, superaperfeiçoado, especialmente esta inclinação tácita e palpável para o que é negativo, para tudo que contradiz os objetivos Reais, nos afastando cada vez mais de nossa verdadeira missão – que seria viver. Paradoxalmente, a destruição (democrática) do mundo como o conhecemos parece ser a única maneira de salvá-lo e mantê-lo vivo antes que o Sol se ponha para sempre. Como no Apocalipse, a redenção só pode acontecer pela aniquilação do antigo. O novo, o puro, só pode brotar sobre a terra limpa, cauterizada, lavada purificada. O fogo, a água, o sangue – no alvorecer do milênio, tenho a mórbida sensação de que nem mesmo para mártires servimos, apesar de nossos erros colossais, de nosso modo de vida irrefletidamente horrendo, de nosso cheiro. Creio que ainda não será desta vez, e que a raça humana terá pelo menos mais duzentos anos para superar-se na espantosa arte de fazer tudo errado.

[Marpessa]
Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

[Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, Tabacaria e outros poemas]
Vejo o vento, atiçando a alma das árvores, empurrando nuvens, lavando o céu - mas não o sinto. Tu encolhes o pescoço no casaco para te defenderes dele. Se ao menos eu pudesse dominá-lo, por um segundo que fosse, dar-lhe a forma dos meus dedos mortos e acariciar-te lentamente esses fios brancos, desordenados. Persigo-te para que o tempo exista. Porque andas, e olhas o céu, e o encontras às vezes negro, ou cintilando como um escuro mar de jóias, ou chuvoso, ou ressequido de sol, sei que os dias passam.

Mas sei cada vez menos. De repente, o passo torna-se-te elástico e és o meu primeiro namorado, de rabo de cavalo, procurando constelações novas num firmamento longínquo. Não consigo ver os contornos desse rapaz no tempo do meu amor por ele, de cabelo curto, e sempre vestido de preto. Mas acontece-me uma vertigem instantânea sobre os corpos amados, acontece-me ter-te diante de mim com o olhar, o gesto, o passo de outros que amei de outras maneiras. Ah, se esta vertigem me tivesse sido dada em vida, até onde eu poderia ter ido. Abre um livro, por favor.

Podemos amar no escuro, sim, podemos amar na luz sonâmbula da ausência, podemos tanto que inventávamos Deus. Tu dizias que Deus era o teu personagem de ficção favorito. Mas não querias entender que os personagens de ficção existem tanto como tu.

[Inês Pedrosa]
Despertar

Deus, estarei sonhando? Não. Eu estive. Não dormi. Era bom e quente, era um espaço e um tempo além do real e de repente fez puf! e fui atirada na chuva. Foi bom e quente; durou pouco e muito. Não quis me mover, quem dera também tivesse sido impedida de escutar – mas tudo estranhamente ficou em silêncio por alguns instantes que foram horas e dias e eras no passado e no futuro.

Fechar os olhos e sonhar, sonhar, não deixar o mundo intervir. Não permitiria. Era escuro, um canto, uma volta em um arco-íris negro, uma escada rolante sempre descendo, dando voltas em si mesma, ânsias de vomitar, vomitar de prazer.

Eu quis morrer ali mesmo. Era denso e macio como a eternidade. Jamais tamanha sensação de conforto, jamais, todo mundo deve saber que nunca fora assim. Um ninho para pequenos gatos de orelhas também pequenas – gatos vermelhos.

Nunca, por minha própria vontade, abandonaria aquilo que era forte e robusto, uma árvore antiga na tempestade de milênios, sob o açoite do vento inclemente, e no entanto invulnerável e sólida. Petrificada em seu lugar, oferecendo vida e abrigo. Quis transformar-me em cipó e ali permanecer, acompanhando aquela existência lenta de dor e rigidez.

Tornei-me, em vez disso, o menor dos seres vivos. Desejei permanecer escondida em uma caixa de fósforos, e eu bem sei que poderia caber em uma, ali como estava, tão reduzida, tão à mercê de tudo, tão frágil. Porque sou frágil. Porque sou ainda mais frágil do que o mais humilde dente-de-leão. E também posso voar; basta que me assoprem com uma certa energia. Eu quis voar, eu quis derreter, eu quis acorrentar-me, por favor, acorrente-me, açoite-me agora com seus galhos, faça o que quiser comigo mas não permita que eu acorde, por Deus, não permita que isso aconteça, não agora, nem dessa maneira brusca como todos nós acordamos dos nossos sonhos noturnos.

E de súbito fui atirada na chuva. Com tanta força. Na mesma proporção e profundidade em que eu estivera mergulhada até aquele instante. Doeu e guardei as lágrimas para depois. Eu sei, não minta, não pode mentir, nem mesmo para mim: doeu? Eu sei, não preciso de respostas, eu sei porque estive perto demais para não saber. Algo se misturou à minha própria dor e a elevou até muito alto, naquela escada rolante rodopiando direto para o fim, o frio da chegada do inevitável, aquele sopro apavorante que antecede o final de todos os sonhos.


[Marpessa]

A flauta vértebra

A todos vocês,
que eu amei e que eu amo,
ícones guardados num coração-caverna,
como quem num banquete ergue a taça e celebra,
repleto de versos levanto meu crânio.

Penso, mais de uma vez:
seria melhor talvez
pôr-me o ponto final de um balaço.
Em todo caso eu
hoje vou dar meu concerto de adeus.

Memória!
Convoca aos salões do cérebro
um renque inumerável de amadas.
Verte o riso de pupila em pupila,
veste a noite de núpcias passadas.
De corpo a corpo verta a alegria,
esta noite ficará na História.

Hoje executarei meus versos
na flauta de minhas próprias vértebras.


[Maiakovsky]
Três meninos

São três garotos idiotizados caminhando pela avenida. Lembram os três ratos cegos, com um quê de sordidez. Olham para o chão e parecem trigêmeos, frutos de uma gestação doente, talvez miserável e fraca. Caminham com uma segurança de quem é aleijão e tem que aprender a cuidar de si, andar, comer, falar, ir ao banco, lidar com a troça alheia, com o desprezo dos saudáveis, com o riso e o espanto das crianças. Estão dolorosamente seguros por um cruel senso de sobrevivência – a prova maior de que Deus é mau.

Também eles são só crianças, doze anos, treze, mas podem ser mais velhos, um ligeiramente maior do que o outro, e estão sempre juntos. Passam todos os dias no mesmo horário – ou serei eu que estou sempre no mesmo lugar, na exata hora em que aqueles três meninos passam com suas sobrancelhas grossas e unidas e os seus cabelos iguais?

Primeiro vi os rostos e depois o olhar para baixo, a cabeça inclinada em um ângulo artificial, pendendo suavemente. Hoje os ouvi falar, mas não entendi uma palavra porque só falam entre si. Isso porque têm a mesma sina, além da mesma origem. A pele deles é manchada como se carregassem vermes; a coluna, arqueada como se andassem com o peso de se refletirem todo o tempo, um morando no interior das deficiências do outro para sempre. Parece improvável que se separem algum dia. Vivem idênticos e morrerão idênticos, talvez no mesmo desastre de trem, ou padecendo da mesma enfermidade. O caso é que não posso escapar da observação. Em um primeiro momento parecem ser hostis; depois, são apenas meninos tortos e, no instante seguinte, voltam a ser hostis – por causa das sobrancelhas unidas, do erro três vezes repetido, o mesmo erro, no mesmo lugar, no mesmo ovo, no mesmo ventre da mesma mulher. Cabeças pendendo amarelas. Os cabelos também são os mesmos, escuros e foscos, cortados por mãos muito inábeis...Como se eles não precisassem ficar bonitos porque nunca serão bonitos e retos, coluna no lugar, olhos crucificados no horizonte, no caminho que seguem todos os dias, não se sabe para onde vão, nem o que levam nos bolsos sujos das calças de malha...

Um deles veste a camisa de um time de futebol, mas tenho certeza de que ele não torce para esse time, e nem acredita nele. Todos rotos, manchas marrons no peito e o amarelo da pele manchada de vermes. São meninos delgados que andam em trio olhando para o cuspe negro, os papéis e os vestígios de droga e de misérrima solidão.

Ofendem a minha vista, os três meninos reféns dos vermes. Apáticos e de olhos fundos, íris nadando em um globo estourado em veias azuis, antigas veias, antiga esclerótica amarelenta e endurecida pelo que olham – nunca levantam a cabeça, porque não podem ou porque não há nada para se ver além do buraco na calçada, dos sapatos melados de barro e tristeza, da água empoçada e das fezes dos cães que também seguem olhando para o chão.

[Marpessa]
Toco a tua boca, com um dedo toco o contorno da tua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a tua boca se entreabrisse e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e te desenha no rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em teu rosto e que por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a tua boca que sorri debaixo daquela que a minha mão te desenha.

Me olhas, de perto me olhas, cada vez mais de perto e, então, brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam entre si, sobrepõem-se e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se nos teus cabelos, acariciar lentamente a profundidade do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E, se nos mordemos, a dor é doce; e, se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu te sinto tremular contra mim, como uma lua na água.

[Julio Cortázar, O Jogo da Amarelinha]
Triste, em inglês

Enevoados são os olhos daquele que tem diante de si um desafio maior do que pode compreender. Enevoados são. Tristes, sem dúvida. Sombra que oculta o entendimento perfeito. Ignorância fabricada pelo cérebro de quem não vê.

O corpo pede arrego e ajuda, pede socorro, pede mãos fortes que o segurem e sustentem pelo espaço sem chão. Duro é encontrar, meu amigo, essas mãos de ferro. Duro é saber escolher dentre tantas mãos oferecidas qual é a mais forte e ao mesmo tempo a mais bela, pois nem sempre a mais bela é a mais indicada para um caso de resgate desta categoria.

E se um dia você virasse uma flor ou um crocodilo, depois de ser expelido pelo ânus de um bebê? E se um dia você quiser acreditar que isso é realmente possível? E se em uma bela manhã de primavera você amanhecesse como uma vaca ou uma couve-flor? Faria diferença para alguém? Faria diferença acreditar ou não na possibilidade disso acontecer fora de um quadro ou de um sonho? Não importa a crença, e sim o fato; não importa a estatística, e sim a causalidade.

Contrariando todas as disposições, conjugações e interlúdios, consegui amanhecer sem ter me transformado em uma acácia apaixonada ou em um cão sem pedigree. Só não sei que tipo de vantagem obtive em ter continuado como ser humano (talvez não fosse tão mau virar um cão sem pedigree. Pelo menos eu jamais conheceria a morte de uma maneira, digamos, mais metafísica).

Algum conluio universal mofa dos meus olhos castanhos sem que eu possa mudar a cor para verde. Eu moro dentro de uma televisão. Uma TV ligada não representa nada além de um olho-de-tv-sobre-mim. She got a TV EYE on me, e isso não é muito do meu agrado, especialmente quando estou tentando dormitar no sofá ou me masturbando diante de uma tigela de pipocas. Que importa qual antena maldita se eleva sobre os prédios daqueles que estão repousando? É a mesma antena que trará os mesmos sinais para dentro da minha cabeça atônita, porque eu moro dentro de uma televisão.

E a mesma televisão de riso histérico que escarnece da minha tristíssima condição é também a mesma que traz a névoa para minha vista. Os fabricantes de brinquedos da Malásia não ligam e, portanto, ninguém mais liga (segundo as leis das Correspondências Universais). Tudo termina em um imenso pote de queijo derretido no qual os ratos chafurdam, violentos e imorais. A televisão, na verdade, não existe. Ela não está aqui. Eu estou dentro dela, vivendo um certo veneno imbatível, angustiando-me um pouco mais a cada miserável segundo de cada miserável dia em cada miserável existência, dentre minhas muitas existências idiotas.

E o corpo continua clamando por socorro. Ele não consegue se calar porque as mãos me alisam, acariciam, evocando novos gritos e novos desesperos. Mas isso não é para qualquer um. O desejo é de ocultação do cadáver vivo que anda, trabalha, come, dorme, mija, toma banho, fabricado de acordo com as mais rígidas normas haitianas. Um poste seria um bom lugar para se esconder, se já não estivesse ocupado com todas aquelas pessoas desaparecidas que só reaparecem nos jornais, mas quem sabe ainda haja uma vaga? Não posso me esquecer de testar essa alternativa em meu próximo passeio ao sol.

Bem, parece que recuperei minha sanidade.

[Marpessa]
Mas atravessando a ponte, com o sol se pondo, os arranha-céus brilhando como cadáveres fosforescentes, a lembrança do passado firmou-se.. Lembrança de ir e voltar sobre a ponte, ir para um emprego que era morte, voltar para uma casa que era um necrotério, decorando Fausto e olhando para o cemitério lá embaixo, cuspindo do trem elevado sobre o cemitério, o mesmo guarda na plataforma toda manhã, um imbecil, e os outros imbecis lendo jornais, novos arranha-céus subindo, novos túmulos onde trabalhar e morrer, barcos passando lá embaixo, a Fall River Line, a Albany Day Line, porque eu estou indo trabalhar, que farei hoje à noite, a fêmea quente ao meu lado e será que posso enfiar minha mão entre suas coxas, fugir e virar vaqueiro, tentar o Alasca, as minas de ouro, descer e virar as costas, não morra ainda, espere outro dia, um golpe de sorte, rio, acabe com isso, para o fundo, para o fundo, como um saca-rolhas, cabeça e ombros na lama, pernas livres; peixes virão morder, amanhã uma nova vida, onde, em qualquer lugar, por que começar de novo, a mesma coisa em toda parte, morte, morte é a solução, mas não morra ainda, espere outro dia, um golpe de sorte, uma cara nova, um novo amigo, milhões de oportunidades, você ainda é muito moço, você tem melancolia, você não vai morrer ainda, espere outro dia, um golpe de sorte, vai se foder de qualquer jeito, e assim por diante sobre a ponte, entrando na casa de vidro, todos colados juntos, vermes, formigas, rastejando para fora de uma árvore morta e seus pensamentos rastejando da mesma maneira...

(...) toda vez que passava lá em cima eu estava verdadeiramente sozinho e sempre que isso acontecia o livro começava a escrever-se, gritando as coisas que eu nunca murmurava, os pensamentos que eu nunca expressava, as conversas que eu nunca tinha, as esperanças, os sonhos, os delírios que eu nunca admitia. Se esse era o verdadeiro eu, então era maravilhoso e, ainda mais, parecia nunca mudar, mas recomeçar sempre a partir da última parada, continuar na mesma veia, uma veia que eu descobri quando, ainda criança, desci sozinho a rua pela primeira vez e lá, imóvel no gelo sujo da sarjeta, jazia um gato morto, a primeira vez que eu vi a morte e a compreendi.

[Henry Miller, Trópico de Capricórnio]
De dentro de mim fluiu um pensamento que se transformou em ruído triste e profundo. Eu conseguia suportar minhas próprias dores existenciais pensando nas dores dos outros, mas isso sempre me pareceu conversa fiada, de qualquer forma. As dores dos outros pouco importavam porque eram dos outros, e não minhas, eram para os outros e não para mim, eram suportáveis na mesma medida em que as minhas também o eram. Quando isso chegava se arrastando da parte inconsciente no fundo do meu cérebro para a parte onde havia um pouco de luz, eu pensava com intenso desagrado: nada mais faz sentido. E nesse instante de revelação é que o pensamento se transformava em um ruído triste e profundo. Profundo porque vinha de uma zona que me era desconhecida, e minha própria voz tornava-se absolutamente inédita para mim. Eu não podia admitir que aquele som partia de mim, tal a estranheza.

Pensava em meu nome e via o quão rara eu deveria ser. Se aquele nome quisesse dizer alguma coisa, era: você está fora, definitivamente. Você não é o que você imagina ser, e também não é o que não imagina. Você é nada e alguma coisa indescritível. Está se observando sob o ponto de vista do comatoso, que abandona o corpo e assiste, do alto, à toda a movimentação no quarto, os médicos, o parente aos prantos segurando uma mão mole e resfriada pelo súbito estertor da morte. É assim que você se enxerga. Fora do contexto, fora da realidade alheia, fora até mesmo da própria realidade. Tudo parece ficar pequeno diante da grande questão que você tem agora para deslindar: o que diabos é você? Para quê você serve? Qual o propósito de você estar aqui? É estranho, mas a verdade é que havia um propósito, assim como havia um excelente motivo para as baratas terem sido criadas pelas misteriosas forças do Cosmos. Dessa forma, eu achava que era uma questão sobre a qual seria necessário, senão vital, refletir. Quando a questão se impõe, é impossível evitar que se torne a coisa mais importante da sua vida. É imensa a força com que ela invade sua alma e a carrega para bem longe, para o fundo de um baú desagradável cheio de lembranças, lembranças de vida e de fim, reminiscências de falhas, de outras crises, de lágrimas que não vieram no momento certo.

A sensação de estar fora por causa de um nome, ou de uma particularidade que só eu conhecia, me obcecava ao ponto de eu não querer pensar em mais nada. Estava convencida do fato de que jamais seria como qualquer outra pessoa. Cogitava se outras pessoas também se deparavam com tais questões. Se as pessoas que estavam acostumadas a ouvir seus nomes repetidos por toda a parte também compartilhavam da mesma estranheza. Se aquilo acontecia comigo porque eu tinha algum problema de ordem psicológica, uma psicose qualquer, como a síndrome da simetria mórbida, outra coisa com a qual estou perfeitamente familiarizada. Seria isso outra síndrome? Seria grave? Evoluiria até o limite das minhas fibras nervosas? Eu nunca pude responder a isso, e creio que a descoberta levará ainda algum tempo. Na velhice as coisas devem se aclarar.

Eu nunca fui como os outros. Mesmo que eu me esforçasse muito. Mesmo que eu tentasse. Em algum momento uma verdade que eu desconhecia acabaria subindo à tona e tornando-se evidente até para um cego. Nesse ponto os olhares convergiam todos para mim, ou melhor, para a tal verdade anteriormente submersa. Eu estava, então, em uma situação de completo abandono, da solitude definitiva, na maior de todas as escuridões, porque estaria sozinha, nua diante do carrasco, impotente mesmo para chorar, sem desperdiçar um mísero movimento que fosse, o medo de estar deixando a vida fugir para dentro de cada um dos vampiros, das feias sanguessugas que exaltavam-se diante da realidade despida. Devoravam-me em um segundo, e depois esqueciam-se de mim. Os olhos estranhando o que viam, os ouvidos se negando a ouvir, testas franzidas denotando um discreto desconforto travestido de estranheza - mais pueril, mais aceitável pela fera que está sendo analisada, virada do avesso pela consciência alheia, julgada e condenada ao degredo. Tudo em um pequeno segundo. Uma revolução esquecida no instante seguinte, como um pedaço de papel atirado de uma janela em um edifício em chamas.

Ao ser nomeada, chamada, considerada, estava sendo vilipendiada do meu verdadeiro eu. Estava sendo atacada por antropófagos e sentia isso em cada célula do corpo. Um arrepio percorria minhas costas de um ponto ao outro na velocidade de um pensamento ruim e então eu sabia que nada voltaria a ser como antes daquela cerimônia macabra, da qual eu tomava parte mesmo sem querer, mesmo relutando, mesmo sofrendo com isso. Jamais me fez bem ser assim. Sempre doeu não estar em lugar nenhum, ou não conseguir firmar o pé em alguma ilha, algum pedaço de terra que parecesse firme e seguro. Isso porque, quando conseguia entrar em algum útero quente, um vendaval me arrastava para longe dali. Eu nunca mais tornava a ver aquele lugar. Eu não nutria nenhum sentimento especial por aquele lugar. Quanto mais longe o vendaval me carregava, menos parecia importar a distância ou o tempo. Eu estava fora, mais uma vez, e assim seria para sempre, até que minha vida acabasse.

E tudo isso me fez e me faz chegar à conclusão de que tudo é uma questão de natureza. De vivência. De nome de batismo, de maldição uterina, de maldição nas manhãs da escola, nas manhãs de vazio, nas manhãs cantadas pelos passarinhos. Tudo é história, caminho, nascimento, portanto, imutável e indiscutível. A única modificação visível e que pode ser considerada manipulável é o destaque dado pelas circunstâncias a certas características, formando um quadro muito, muito particular de si mesmo. Não se melhora ou piora; só se muda, gira, como imagens de caleidoscópio. Cada desenho formado não é melhor ou pior do que o anterior. Logo, que importa para que lado o caleidoscópio esteja sendo virado? O resultado parece de pouca relevância, até mesmo para aqueles que ainda esperam alguma coisa grandiosa de uma vida sempre e continuamente miserável e tão pouco regulada pelas leis que inventamos, insistimos em criar e destruir ao nosso bel-prazer e conveniência – tudo em vão.

[Marpessa]
Para ir ao fundo dos fatos eu precisaria ser um artista e ninguém fica artista da noite para o dia. Primeiro você precisa ser esmagado para que seus pontos de vista colidentes sejam aniquilados. Você precisa ser arrasado como ser humano a fim de nascer de novo como indivíduo. Precisa ser carbonizado e mineralizado a fim de erguer-se do último denominador comum do eu. Precisa ir além da piedade a fim de sentir as próprias raízes de seu ser.

[Henry Miller, Trópico de Capricórnio]
Anônimos somos todos. Corpos contra corpos, mentes enlaçadas com outras mentes, tudo em uma mistura que nos transforma em massa. Perdemos a singularidade com a qual nascemos, se é que nascemos mesmo com alguma singularidade. Nos deixamos estar parados, observando a lava nos alcançar, sem piscar um olho; é quando ficamos menos humanos, pelo menos dentro do conceito que eu tenho de humanidade. A força que mantém a gosma unida é a mesma que nos empurra cada vez mais para baixo, para o fundo de um rio lodoso e rico de matéria orgânica. Nos empastelamos nessa gosma e nesse lodo, que nos enche os olhos de marrom. Só os dentes ficam de fora, muito arreganhados em um gesto de cobiça e dor pelas coisas erradas.

É olhar e ver. O cenário se assemelha à queda de um anjo, com o mesmo fogo, a mesma desolação. Nos olhos do anjo brilham centenas de milhares de olhos pequenos, baços, semicerrados, espreitando como crianças atrás da porta na noite de Natal. O interesse, no entanto, não é tão evidente; espiam porque não há mais nada para fazer. Negror e medo ao redor, fuligem nos rostos. Somos então refugiados, meros desenhos em uma parede de caverna, presos para sempre a um vestido azul inatingível.

Vemos as jóias flutuando pelo céu sem que possamos alcançá-las, sem percebermos que elas estão também dentro de cada um. A individualidade, as idiossincrasias, as perolazinhas... Tudo embaçado por um brilho feio e falso que provém da lâmpada primeva, acesa por toda a eternidade.

Quando você nota um quê de verdade, de luz real gerada por um sol particular, mal tem tempo de pensar no assunto. Alguém o agarra por trás e trata de tapar sua visão com uma venda de pano grosso e preto, cobrindo na afobação até mesmo o seu nariz, sua boca, seus ouvidos. Os sentidos embotados pelo Anonimato, não ver mais nada, não deixar que coisa alguma passe pela muralha de mil metros que erigimos ao redor de nossas cabeças processadas pelo rica e vigorosa ordem natural das coisas.

(E porque essa cegueira? Porque permitimos isso? Onde começou o erro? Teria sido no dia em que o primeiro filósofo fez a primeira pergunta retórica?)

Provavelmente foi quando o macaco interior resolveu descer um pouco mais e se estabelecer na região do baixo ventre, abandonando as meninges, a medula, o cerebelo, os miolos cinzentos. Estando ao abrigo dos limites do racional, pôde operar com mais tranqüilidade e então fez-se a sombra jocosa, cobrindo nossos atos com um manto de ridícula transparência.

A partir daí tornamo-nos indistintos uns dos outros, criando uma sociedade de dominação – seja pela força, seja pelo intelecto, ou pela astúcia, ou pelo engodo; tudo existe para que dominemos enquanto nos atropelamos pelos degraus de uma escada que não leva a lugar algum. O medo e a coragem da civilização engendrou dois pólos. e a moléstia do Bem e do Mal, desde então, é o que verdadeiramente nos têm dominado. O resto são talheres para o banquete. Todos os embates, as guerras, as ideologias, as discussões, os sistemas filosóficos, as forças reunidas dos Altos Líderes do Mundo em prol de uma causa que invariavelmente visa um bem apenas possível para a cúpula e não para a base, tudo isso foi em vão porque jamais teve um objetivo distinto dentro do contexto verdadeiro, geral e mais abrangente.

A inutilidade de toda e qualquer ação, estratégia, dissidência, confluência, consciência e lágrima caída é o que nos enlouquece. É o segredo sob o tapete. Se um dia uma nave extraterrestre aterrissar no centro do mundo e o homenzinho verde pedir para falar com o líder, soluciona-se imediatamente o problema. Um jantar pode ser providenciado e então o nosso visitante ficaria ao lado do presidente dos Estados Unidos e mais os coadjuvantes europeus e asiáticos. Mas, se o visitante perguntasse a respeito do nosso maldito objetivo, seria no mesmo instante mandado de volta para as estrelas aos pontapés. Porque ninguém saberia o que dizer e, por baixo de cada afirmação pateticamente reforçada por argumentos falhos, habitaria um ponto de interrogação, um esgar de macaco e olhares sub-reptícios.

Conspiração! Há um motim em cada torrão de açúcar para o chá da tarde. Só que é continuamente sufocado. Não tem forças para germinar, e, verdade seja dita, não tem porque germinar, nesse poço de gosma e lodo. Se houvesse um propósito, qualquer um, estaríamos mais confortáveis. No entanto é difícil enxergar um porquê quando os olhos estão cobertos de marrom, ou quando este propósito não existe ou nunca existiu.

Desde que começamos a vivenciar o processo de “civilizamento” não temos vivenciado o resto. Estamos muito ocupados em disciplinar nossas funções físicas e psicológicas, transformando-as em funções sociais, para termos tempo para a Vida Propriamente Dita, aquela que certa vez habitou o sangue de algum piolho de primata, há milênios.

[Marpessa]
Você está perpetuamente gastando sua energia no ato de equilibrar-se. É dominado por uma espécie de vertigem espiritual, cambaleia na beira, fica com os cabelos em pé, não pode acreditar que por baixo de seus pés exista um abismo imensurável. Isso acontece devido a excesso de entusiasmo, devido a um desejo apaixonado de abraçar pessoas, de mostrar-lhes seu amor. Quanto mais você se estende em direção ao mundo, mais o mundo recua. Ninguém quer amor verdadeiro, ódio verdadeiro. Ninguém quer que você ponha a mão em suas sagradas entranhas – isso é só para o padre na hora do sacrifício. Enquanto você viver, enquanto o sangue ainda estiver quente, tem de fingir que não existe sangue, que não existe esqueleto por baixo da cobertura de carne. Não pise na grama! Esse é o lema pelo qual as pessoas vivem.

Se continuar esse equilíbrio à beira do abismo por bastante tempo, você se tornará muito hábil; seja qual for o lado que o empurrem, sempre se endireitará. Estando em constante forma, você adquire uma alegria feroz, uma alegria antinatural, poderia eu dizer. Só existem hoje no mundo dois povos que compreendem o sentimento desta declaração: os judeus e os chineses. Não fazendo parte de nenhum deles, você se vê em situação estranha. Está sempre rindo no momento errado; é considerado cruel e sem coração, quando na realidade é apenas duro e durável. Mas se ri quando os outros riem e chora quando os outros choram, precisa estar preparado para morrer como eles morrem e viver como eles vivem. Isto significa estar certo e receber o pior ao mesmo tempo. Significa estar morto quando se está vivo e vivo só quando está morto.

[Henry Miller, Trópico de Capricórnio]
Também eu devo parecer morta aos olhos atentos de alguém. Também a minha vida pode estar presa sob uma crosta. Também eu pulso sob o magma resfriado, e a lava corre, é o meu sangue vermelho. Por fora, a rocha inerte. A máscara rígida, a expressão imutável de um rosto de Veneza.

Há mais do que inação. Aquele enxame que vem ao meu encontro, hora de ir, todo mundo seguindo em frente com muito afã, no desespero para morrer de verdade. Todos parecem desejar apenas isso - deitar-se para sempre e nunca mais ter de suspender seus corpos acima dos limites verticais de um caixão.

A vida transcorre em duas linhas horizontais e paralelas. Uma é o que nos acostumamos a chamar de "vida": rasa, permeável, volátil e insegura, é o que temos cotidianamente. É o piloto automático da existência, poroso e circunstancial. Outra, logo abaixo, é firme e constante, como se desenhada com uma régua. Não permite ajustes, pois abriga somente o que verdadeiramente importa, o Eu além de quaisquer paradigmas comportamentais. Abriga a alma, o cerne, o núcleo maçiço e perene. É aquilo que cada um pode ser; é a porção mais tenra e ao mesmo tempo a mais firme. E quase nunca vem à tona.

[Marpessa]
O Relógio

Relógio! Deus sinistro, hediondo, indiferente,
Que nos aponta o dedo em riste e diz: “Recorda!
A Dor vibrante que a lama em pânico te acorda
Como num alvo há de encravar-se brevemente;

Vaporoso, o Prazer fugirá no horizonte
Como uma sílfide por trás dos bastidores;
Cada instante devora os melhores sabores
Que todo homem degusta antes que a morte o afronte.

Três mil seiscentas vezes por hora, o SegundoTe murmura:
Recorda! - E logo, sem demora,
Com voz de inseto, o Agora diz: Eu sou o Outrora,
E te suguei a vida com meu bulbo imundo!

Remenber! Souviens-toi! Esto memor!(Eu falo
Qualquer idioma em minha goela de metal.)
Cada minuto é como uma ganga, ó mortal,
E há que extrair todo o ouro até purificá-lo!

Recorda: O Tempo é sempre um jogador atento
Que ganha, sem furtar, cada jogada! É a lei.
O dia vai, a noite vem; recordar-te-ei!
Esgota-se a clepsidra; o abismo está sedento.

Virá a hora em que o Acaso, onde quer que te aguarde,
Em que a augusta Virtude, esposa ainda intocada,
E até mesmo o Remorso(oh, a última pousada!)
Te dirão: Vais morrer, velho medroso! É tarde!”


[Charles Baudelaire]
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De onde estavam, podiam avistar toda a paisagem. Era alto ali. Pena que cheirasse mal, e não fosse pelas baratas mortas, seria bem mais divertido. As árvores embaixo estavam todas com flores cor-de-rosa e roxas, as copas se misturando. E sob cada árvore, uma sombra de musgo – porque o sol nunca batia. E, mesmo naquele lugar alto e malcheiroso, o sol só entrava um pouquinho, alguns raios em cada corredor pela manhã. Não foram construídos voltados para leste e oeste, e sim no sentido norte-sul, e por isso não esquenta nunca, é sempre, sempre úmido e meio frio, mesmo no verão. Tem umas torneiras e uns tanques também. Quando tem mais gente, sempre alguém vem lavar os vasos das flores, ou lavar as flores, e nunca ninguém explicou para quê lavar as flores também.

Vão descendo as escadas de pedra amarela.
_Cansou de ficar aqui?
_ Cansei, vamos passear?

Chegam ao térreo, quantas baratas!, ela diz. Continuam até sair e alcançar uma árvore.
_Por quê lavam as flores também?
_Eu não sei, minha filha. Acho que é para tirar as folhas.
_Para quê tirar as folhas?
_Para os cabinhos ficarem todos iguais. Deve ser isso. Vamos passear.

Ela gostava mesmo era de ver as casinhas. Olhar dentro delas, todas arrumadas, com pequenas mesas cobertas por toalhas rendadas e retratos presos às paredes de azulejo. Eram espaços pacíficos e plásticos, mas claro que ela não sabia disso naquele tempo, quando os dias andavam devagar e eram cheios de vida. Tudo o que ela podia adivinhar era que aquilo servia para alguma coisa. Pra quê fazem casinhas? E por quê tão arrumadas? Enxergava as flores artificiais; eram quietas e perenes. Jamais morriam. Não era mesmo um paradoxo? Ela não sabia o que era paradoxo.

Quando entravam ali, ela sempre queria alcançar logo a estátua do Cristo. Era muito grande, e estava pregado a uma cruz. Ela olhava com atenção. Tinha sangue e os olhos Dele eram muito, muito desolados. Aos Seus pés, velas já derretidas e algumas ainda acesas. Tocava os pés, os pregos, as pernas; membros frios. Eram tão tristes.
_Ele sempre estava triste daquele jeito?
_Sim, sempre. Ele morreu triste.

Dependendo do lugar, havia pouco espaço entre um túmulo e outro. Ela subia por cima deles, mas sabia interiormente que era falta de respeito e se arrependia. Só que a memória das crianças é volátil, apesar de guardar coisas incríveis que só serão lembradas na idade adulta, e ela sempre se esquecia de que não deveria pular sobre os túmulos. Se avistava um gato, precisava correr atrás, era importante que o fizesse, mesmo que não conseguisse agarrá-lo. Por isso tinha que pular os túmulos.

Logo depois do local onde as pessoas costumavam acender suas velas – um espaço quadrangular, de paredes altas e enegrecidas pelo fogo que jamais deixava de arder – vinha o primeiro túmulo a visitar. É que lá estava o menino misterioso. Um menino que não era da família mas fora colocado ali, um favor feito aos pais dele.
_E por quê não tem fotos da vovó nem do vovô aqui?
_Não quiseram colocar...Eles não tinham fotos.
_Então ficou só o Peter?
_Sim, só o Peter.

Olhos escuros, só um menino. Que idade poderia ter? Qualquer idade. Era bonito, o menino do retrato. E ela ficava pensando que agora mesmo ele era só uma caveira, ou será que ainda tinha carnes presas aos ossos? Não era certo que até ele ficasse feio e caveira. Só que ela também sabia que todo mundo ia ficar feio e caveira, até mesmo o seu pai e ela mesma. Aí segurava as lágrimas, porque era tão bobo ficar chorando, e se chorasse seu pai a levaria embora, e ela não queria ir.

_Por quê todos os retratos são ovais?
_Não sei, filha, ele respondia sorrindo.
_E por quê todos amarelos?
_Porque são velhos, muito velhos, e ficam mais bonitos. Vamos do outro lado?

Havia muitas estátuas para se ver. Algumas brancas, outras pretas, todas silentes, guardando seus mortos. Para isso estavam lá. Muitos anjos, mulheres chorando, santas e Cristos pálidos, monges calvos. E sob cada um deles, havia uma sepultura erigida com maior ou menor capricho. Tinha pena das que não tinham nada, nem cruz, nem estátua, e eram só terra e mato. Ficava ainda mais penalizada se havia daquelas flores falsas encardidas enfiadas em um vaso de pedra, condenadas a jamais habitarem um jardim. Feitas somente para ser uma cópia ruim da realidade. Essas flores não conversavam nem bebiam água.

Sabia ler, e lia muito bem. Então ia decifrando os nomes, e as datas em que nasceram e morreram. Alguns estava ali há bastante tempo. Outros haviam acabado de chegar; havia coroas de flores frescas enfeitando lápides recentemente abertas e logo fechadas. Um enterro era como um almoço: muito tempo para prepará-lo, quinze minutos para o ato propriamente dito, e depois a digestão lenta e incômoda.

Não doía? Era um pouco doloroso, sim. Afinal, gente morta. Era esquisito. Mas ela não perdera ninguém ainda, ninguém próximo, havia o John Lennon, lembrava-se do mês em que o haviam assassinado, tempo de calor, e todo mundo só sabia falar disso e em todo lugar era só aquela música que soava como um lamento fúnebre e que até ela, com cinco anos, sabia cantar. Mas ela não fora ao enterro do John Lennon e nem mesmo parecia que ele havia morrido, porque havia fotos dele em revistas e imagens na televisão. Quem morria era aquela gente da guerra do Irã e do Iraque. Esses morriam mesmo porque era uma guerra com bombas e tiros, e no jornal da noite diziam. Era uma guerra que nunca acabava.

Aí correu atrás de outro gato. Era como perseguir a sombra: completamente inútil. Só que, perseguindo o bichinho, viu ao longe um bando de pessoas; um enterro. Ficou muito animada. _Vamos ver, pai? Vamos ver o enterro, por favor, por favor!
_Não, não podemos ir ver o enterro de quem não conhecemos!
_Ah, que droga...Ah, vamos, vai! Ninguém vê a gente...Eu quero ver!
_Não podemos. Fique olhando daqui mesmo.
_Então me pega no colo!

Ficou assistindo de longe, mas não dava pra enxergar quem estava sendo levado. Só via o bando de gente andando, e uns quatro homens que carregavam um caixão. Só isso. Queria ver colocarem o morto, queria ver enterrarem, porque não sabia como era. Será que jogam o caixão no buraco e depois cobrem de terra? Não sabia direito sobre as gavetas. Ou melhor, sabia que existiam porque ficava espiando dentro dos túmulos, pelas gradezinhas, e enxergava as repartições que pareciam prateleiras de armário. Só que não entendia muito bem; os caixões entram ali, pai? Sim, estão ali, os coveiros colocam e depois tampam com cimento e tijolo. Ah, bom.

Às vezes morria um bebê. Era ruim quando morria um bebê porque a mãe dele deveria ficar muito triste. Não deveriam morrer.
_Por quê Deus deixa os bebês morrerem?
_Ora, porque todo mundo deve morrer um dia, não importa se quando é bebê ou quando for velhinho. Os bebês ficam doentes e morrem, ou se viajam de carro e sofrem um acidente também morrem, ou se caem do colo... Entendeu?

Dois anos mais tarde veria um bebê morto; estava azulado, e era seu priminho. O pai do bebê beijou a testa dele, mas não pôde acordá-lo. E ela sabia que antes, bem antes de ela nascer, dois de seus irmãos haviam morrido bebês. Por isso não gostava quando os bebês morriam. Não era justo; por causa disso, ela não tinha irmão nem irmã.

Estava ficando frio, e tarde. Logo fechariam os portões; precisavam ir embora. Ela não queria, mas o pai sugeriu que comprassem biscoitos na saída. O céu ficou vermelho e uma luminosidade rósea deitou-se sobre tudo com uma solenidade aveludada e macia, não desejando incomodar as coisas desse mundo. Ela sentia-se bem em estar viva; não queria que a deixassem ali, sob a terra úmida, sozinha e sem os seus brinquedos. Sentiu pena de si mesma, mas nada disse. Ficou cismando com o olhar, tentando distrair-se, desviando o pensamento daquela imagem de si, criança morta assistindo a seus parentes irem embora, dando-lhe as costas, todos para suas casas quentinhas enquanto ela permaneceria, sentada sobre o túmulo cor-de-rosa, vestida com roupinhas de boneca. Pelo menos Peter estaria ao seu lado, também sozinho em sua dor, mas ao seu lado. Brincariam juntos pelas alamedas, de mãos dadas, e perseguiriam os gatos, e colheriam flores de mentira, e entrariam nas casinhas. Brincariam de tomar chá sentados nos banquinhos, a toalhinha rendada. Ele se cansaria logo e ficaria perscrutando o vazio com seus olhos escuros, sua pele sépia como no retrato. Ela saberia por quê: ele havia morrido antes dela e estava mais apagado. Haveria um retrato dela no túmulo; queria que também fosse amarelo.

Ela adorava comprar biscoitos, mas por causa do vendedor. Tinham quase o mesmo tamanho. Mas era um adulto, um tipo indígena, de olhos biliosos, sempre com uma imitação infeliz de sorriso. Com as mãos rústicas, apanhava um pacote; ela não entendia porquê, mas incomodava vê-lo, e quanto mais incômodo, mais ela queria. Também incomodava ver o pai procurando o dinheiro na carteira, e entregando ao anão, que o apanhava agradecido. Ela entendia que era pouco aquele dinheiro, e que, para que o anão conseguisse viver, era preciso muitos daqueles pais com menininhas. Por quê vender biscoitos na porta do cemitério? Quem compraria? Só crianças, pensava. Mas ela nunca via outras crianças ali. Tinha a certeza de que o anão era pobre e triste, porque seus olhos eram tristíssimos, e aquele sorriso era muito doloroso. Cara bovina e cansada, e se ela conhecesse a palavra naquele tempo, diria que era uma cara resignada. Era assim que ela sentia, enfim, aquilo que os adultos chamam de depressão, de tédio, de vazio, de mil outros nomes diferentes e que são uma coisa só.

Foram embora, descendo a rua calma e morta de domingo. Ela e seus biscoitos, no céu de outono os hematomas; mãos dadas e carros antigos, rua e poste, estátuas que ficaram para trás, boa noite aos anjos que adormecem em suas pequenas casas. O vento esfria ainda mais e ela sabe que aquilo não ia mesmo durar. Vê que cedo ou tarde vai morar lá, com os anjos e os gatos ariscos. É o que vê: um dia vai chorar. Um dia, vai doer. Muito em breve. Nada será como antes daquele instante de compreensão.

[Marpessa]
Dez Chamamentos ao Amigo

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

[Hilda Hilst]
Escrever é a ruína, é a ruína completa, porque ninguém vai saber do que estou falando, ou o que se passa verdadeiramente comigo. Em verdade, em verdade vos digo, escrever é a ruína de uma mulher. Deveria eu ter sido feita de uma massa menos pretensiosa, e então choraria menos, doeria menos, não saberia das coisas, nem teria os amaldiçoados vislumbres que me acometem vez ou outra, vez ou outra uma porra, todo dia, a qualquer hora, como acessos de epilético, e me sacodem igual, deixando-me prostrada, língua de fora, caricata e suja de palavras sujas, de vermezinhos que são letras e vão se juntando como na cartilha, nas lições do primário, bê e á bá, vejam como dão as mãozinhas para formar nomezinhos, ao inferno com tudo isso, antes tivessem me deixando analfabeta...Mas me espezinharam com essa história, tiraram de mim o sagrado direito de permanecer ignorante no exato momento em que me obrigaram a viver, quando me fabricaram via volúpia instantânea, pedaço de secreção oriundo de uma bolsa escrotal. Aí fico sofrendo eternas dores de parto, crônicas, irrevogáveis. Bate um frio na nuca e até os meus seios se retesam, e não é prazer. Tivesse eu pretendido coisas menos elevadas. Tivesse eu pretendido apenas cumprir as minhas funções, aquelas que são da minha raça, do meu gênero, as minhas tarefas orgânicas femininas, assar bolos e procriar, ter um marido para satisfazer, jogar fora todas as chances de espiar por sobre a lona do circo, jamais fugir com o palhaço. Tivesse eu, e agora não estaria aqui sangrando feito um porco. Minha livre vontade carregou-me até aqui. Não posso culpar ninguém por isso. Pois bem; eis meus pés seguindo em frente, para aquele desconhecido que chamamos “em frente”, o importante é continuar, mesmo tendo que olhar de vez em quando para trás, só para ter a certeza de que não estou esquecendo nada de muito importante, ou quem sabe vital para mim nesse momento. Uma corda, uma bóia, um bote amarelo, ah, malditas esperanças! Queria eu perdê-las todas, toda a patética vontade de ser feliz, que merda é essa de ser feliz, que importa, se acabarei com algodão nos orifícios cedo ou tarde?

[Marpessa]
O canto dos cronópios

Quando os cronópios cantam suas canções preferidas, ficam de tal maneira estusiasmados que freqüentemente se deixam atropelar por caminhões e ciclistas, caem da janela e perdem o que tinham nos bolsos e até a conta dos dias.

Quando um cronópio canta, as esperanças e os famas acorrem a ouvi-lo embora não compreendam muito seu arrebatamento e em geral se mostrem um tanto escandalizados. No meio da roda o cronópio suspende seus bracinhos como se segurasse o sol, como se o céu fosse uma bandeja e o sol a cabeça do Batista, de forma que a canção do cronópio é Salomé nua dançando para os famas e as esperanças que ali estão boquiabertos e perguntando-se se o senhor padre, se as conveniências. Mas como no fundo são bons (os famas são bons e as esperanças bobas) acabam aplaudindo o cronópio, que se recupera sobressaltado, olha em redor e começa a aplaudir também, coitadinho.

[Julio Cortázar, Histórias de Cronópios e de Famas]
[...]

sentou-se para descansar e em breve fazia de conta que ela era uma mulher azul porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul, faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que dela não estava escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz-de-conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz-de-conta verde-cintilante, faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, não Lóri mas o seu nome secreto que ela por enquanto ainda não podia usufruir, faz de conta que vivia e não que estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que ela era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua pois ela era lunar, faz de conta que ela fechasse os olhos e seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão, faz de conta, faz de conta que se descontraía o peito e uma luz douradíssima e leve a guiava por uma floresta de açudes mudos e de tranqüilas mortalidades, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro.

[Clarice Lispector, Livro dos Prazeres ou Um Aprendizado]
Receitas antitédio carnavalesco

pequenas sugestões e receitas de espanto antitédio para senhores e donas de casa durante o carnaval.

I
pegue um nabo. coloque duas ou três palavras dentro dele, por exemplo: bastão, ouro, amplidão. chacoalhe. você não vai ouvir ruído algum. é normal. aí ajoelhe-se com o nabo na mão e diga: com o bastão que me foi dado com o ouro que me foi tirado e sem nenhuma amplidão de conceitos e dados quero renascer brasileiro e poeta. quem te ouvir vai ficar besta.

II
colha um pé de couve e dois repolhos. embrulhe-os. faça as malas e atravesse a fronteira. tá na hora.

III
pergunte ao seu filhinho se ele quer laranja descascada de tampinha ou de gomo. se ele disser que quer laranja descascada de tampinha, diga que um menino bem educado sempre escolhe a de gomo. se ele começar a chorar, chupe você a laranja. de tampinha, naturalmente.

IV
enfeite a mesa com flores. compre um peru. feche as crianças no banheiro. antes de começar a ceia, convide seu marido para dançar ao redor da mesa (não mexa com o peru). inopinadamente pergunte se ele gosta de trufas. se ele disser que sim, gargalhe algum tempo atrás da porta e diga que "trufas não tem não, amorzinho".

V
compre manteiga. passe-as nos dedos (esqueça marlon brando). chupe-os. e diga em tom de oração: que vida solitária, meu deus! (contenha-se).

VI
compre uma língua de tucano (é uma umbelífera), uma língua de vaca (chaptalia nutans é o seu nome científico), um lírio branco (lilium candidum), dois caquis (não é cáqui, não vá comprar o brim da cor dos caquis), ferva durante cinco minutos. depois jogue fora, olhando para o alto. é uma simpatia para você não dormir.

VII
corte um saco em pequenos pedaços. um de estopa, evidente. embrulhe vários ovos, um por um, em cada pequeno pedaço de estopa. pinte caras descarnadas, dentes pontudos e beiços vermelhos na cara dos ovos (sempre esses de galinha ou de pato, é desses que eu estou falando). quando alguma das tuas crianças começar a pedir aquelas coisas caríssimas e imbecis que são sugeridas na televisão, cubra-se de negro à noite, use tinta fosforescentes para ressaltar a cara dos ovos (aqueles) e quebre-os um a um nas pequeninas cabeças dizendo com voz rouca: parem de pedir coisas impossíveis à sua mãe, seus canalhas!

VIII
(se você for phd leia até o fim. se não, pule esta). faça um buquê de orelhas. é fácil. peça apenas uma a cada um de seus dez amigos íntimos. diga-lhes que é para uma causa nobre. se te perguntaram qual causa (não confundir com cáucaso, é outra coisa), diga que você precisa mandar buquê para tua velha e queria preceptora inglesa (quando você tinha quinze anos, lembra-se?), que arrancou as tuas duas porque você insistiu inquebrantável durante doze horas seguidas que aquela primeira frase de marco antônio para o povão era, na "tua" tradução, "emprestai-me vossas orelhas". todos concordarão, acredite, com o teu pedido. ainda mais porque todo mundo sabe que "lend me your ears" quer dizer isso mesmo.

IX
se você quer se matar porque o país está podre, e você quase, pegue uma pedrinha de cânfora e uma lata de caviar e coloque ao lado seu revólver. em seguida, colque a pedrinha de cânfora debaixo da língua e olhe fixamente para a lata de caviar. só então engatilhe o revólver. (é bom partir com olorosas e elegantes lembranças. atenção: não dê um tiro na boca porque a pedrinha de cânfora se estilhaça).


[Hilda Hilst, Contos d'escarnio/Textos grotescos]
Ocupação maravilhosa é ter quatro anos, parar diante de um espelho grande, desses de penteadeira antiga, e segurar um espelho de tamanho médio em uma das mãos. Depois descobrir como o ambiente, o quarto e você mesmo são engolfados em um universo que tende a se multiplicar, alheio a quaisquer forças em sentido contrário, e por aí começar a formar, não sem espanto, a consciência de que existe algo mais dentro de si do que poderia até então supor. Descobrir que viver é tão frio e infinito quanto o aço polido de qualquer espelho.

[Marpessa]

domingo, agosto 22, 2004

Nunca levei você para Mme. Léone ler a sua palma da mão, pois na certa tive medo de que ela lesse na sua mão alguma verdade sobre mim, já que você sempre foi um espelho terrível, uma espantosa máquina de reprodução e aquilo a que chamávamos o nosso amor era talvez eu estar de pé diante de você, com uma flor amarela na mão e você com duas velas verdes, enquanto o tempo soprava contra os nossos rostos uma lenta chuva de renúncias e de despedidas e passagens de metrô.

[Julio Cortázar, O Jogo da Amarelinha, cap. 1]