segunda-feira, fevereiro 27, 2006

As regras do jogo

Ao redor da mesa de jantar às oito em ponto, como era de se supor a mãe trazendo os pedaços de frango em uma travessa fumegante, não doía a ausência, era mais como um anestesiante faz-de-conta e o pai levava à boca em silêncio uma asa, uma brincadeira entre adultos desacostumados a brincar, o filho mais velho abaixava a cabeça sobre o prato cheio de arroz dentro do jogo com regras e mandamentos que não poderiam ser infringidos sob pena de profundo desconforto, ao lado da mãe a irmã do meio absorta na tarefa instigante de contar as ervilhas, separa-las cuidadosamente do molho e arrasta-las para o lado direito do prato, deixando vários espaços vazios no molho do frango, brincadeira muito aceitável do ponto de vista das regras, a quietude de um jantar em família, o mais próximo da paz que se poderia conceber.

Ao lado do pai o cadeirão do bebê, e o pai sorria de quando em quando, e a mãe arriscava um comentário sobre a sujeira que o bebê fazia quando comia sua papinha marrom – a irmã teve um sobressalto levíssimo, quase imperceptível se não fosse esperado, ao que o irmão lançou-lhe um olhar de censura capaz de fazer morrer qualquer palavra, de novo aquela coisa pairando feito nuvem ou floco, algo cinzento e horrível, calabouço de ar, falta de, excesso de, inclassificável mas ali, a mãe lutando contra as lágrimas, o pai pigarreando como para cortar ao meio a nuvem (ou floco) e sem conseguir, o irmão engolindo sem mastigar, correr, sair da mesa, a irmã empurrando restos de comida porque não conseguiria mais, o inclassificável escorrendo pelas paredes azuis e derramando-se todo pelo chão sem fazer o menor ruído.


O primeiro a levantar-se foi o pai, que ao fazê-lo, desajeitado, derrubou o cadeirão que partiu-se em dois, um barulho seco, doído, a irmã não pôde deixar de pensar que ainda bem, o irmão fugindo para a rua, a mãe de olhos duros fixando o instante, o pai juntando os pedaços e cheio de alívio.

[Marpessa]
Fumaça

Na tepidez da manhã não nascida de todo, acendeu um cigarro para assistir à fumaça dançando. Gostava daquilo. Pensou em Lara, sentiu que ia começar a doer, parou de pensar em Lara, olhou o anel azul e gris de fumaça a subir, pensou em Lara novamente, desistiu de parar de pensar em Lara, soprou uma vigorosa baforada contra a espiral que subia mansamente, gemeu, engoliu luz. “Caralho”. Levantou a cabeça, espiou o calendário, trinta de dezembro, calor filho da puta, anticlímax pós-festejos natalinos, o ano novo e bom chegando, tudo como sempre, caminhando dentro dos limites da normalidade. Acendeu outro cigarro. Uma fresta ridícula na janela deixava entrever um filete minúsculo de sol – a massa branca de fumaça pairando no ar nublava a vista. Nublante, olubnante, blumas & blumários. Lunar. Lara. Palavras. Soprou contra a fresta; a fumaça esparramou-se. Tão perfeita, tão aconchegante, tão esquecimento e candura, tão mansa e gentil. “Pros diabos”, pensou, “pro diabo essa cama morta, essa solidão paralisante, pro diabo a fumaça, o vazio, não esquecer, nunca”. Levantou-se, saiu, correu, enfrentou ônibus e distâncias, chegou suado, peito arquejante, à porta de Lara. Bateu. Bateu de novo. Bateu mais uma vez. Anticlímax.

Acendeu um cigarro, dançou com ele, expeliu fumaça, fez círculos delicados. “Foda-se”, sentiu.

[Marpessa]

Quatro pedaços de sangue


Ele gozou sangue, e era como se não fosse nada, manteve o olhar indiferente dos que gozam e querem depois relaxar e derreter sobre uma cama, nada de mais, o preservativo cheio de sangue balançando suavemente na luz meio morta do quarto, essas coisas que adquirem um aspecto comum tão logo estejam inseridas em um contexto familiar, como sexo-cama-cigarro-conversa. Essas coisas, mas era sangue, estranhamente leitoso e com aspecto açucarado. Como se não fosse nada.


***

Ela atravessou a rua sem olhar, foi pega por um carro, ficou estendida no asfalto por quinze minutos, foi resgatada e levada a um hospital. Acordou no asfalto cinzento, pintado de vermelho. A rua barulhenta, as pessoas flutuando acima de sua cabeça. Pensou em café com bolinhos de chuva. O cheiro da chuva gelada. Incômoda pancada nos quadris. Natural que fosse assim, tão estranho e cinzento. Acordou no asfalto.


***

A vida é de mentira. Pensou nisso como título para uma história. A vida é de mentira, verdade, é mesmo. Já não podia mais esperar, precisava fazer aquilo rápido porque tantas coisas, tanta névoa. O hoje, fantasia boba do ontem, ah, quanta ilusão. Não seria mais do que um pedaço ínfimo de dor, se comparado a todas as outras dores, essa coisa de viver, que dá tanto trabalho, nós flutuando entre o animal e a deidade, nós, um simulacro de coisa alguma. Um tiro, escuro, sangue no chão, acabou. Acabou.


***

Carregava nos bolsos uma pequena mulher, de cerca de nove centímetros. Conversava com ela sempre que se sentia solitário. A mulher só ouvia, e às vezes fazia um movimento quase imperceptível com a cabeça – nunca se sabia se era um “sim” ou um “não”, mas isso não era o mais importante. O passado era vermelho e cheio de culpa. Hoje, não: a mulher vivia dentro do bolso. E fazia que sim, fazia que não, com a pequena cabeça loura.

[Marpessa - minha última colaboração ao Aquele]