domingo, maio 08, 2005

A queda

Já havíamos escalado a montanha de três mil pés de altura. Não para enterrar em seu topo a garrafa nem tampouco para plantar a bandeira dos alpinistas denodados. Passados uns minutos começamos a descida. Como é de costume nestes casos, meu companheiro, dando com seu sapato armado de grampos metálicos um chute numa pedra, perdeu o equilíbrio e, dando uma cambalhota, veio a ficar postado na minha frente. De modo que a corda, enroscada entre as minhas duas pernas, obrigando-me, a fim de não rodar para o abismo, a curvar as costas. Ele, por sua vez, tomou impulso e moveu o corpo em direção ao terreno que eu, por minha vez, deixava às minhas costas. Sua resolução não era descabelada ou absurda; antes, respondia a um profundo conhecimento dessas situações que ainda estão anotadas nos manuais. O ardor no movimento foi causa de uma ligeira alteração: de pronto, percebi que meu companheiro passava como um bólido por entre as minhas duas pernas e que, ato contínuo, o puxão dado pela corda amarrada, como disse, às suas costas, punha-me de costas para a minha primitiva posição de descida. Por seu lado, ele, obedecendo sem dúvida a iguais leis físicas que eu, uma vez percorrida a distância que a corda permitia, ficou de costas para a direção seguida por seu corpo, o que, logicamente, nos fez encontrar-nos frente a frente. Não dissemos palavra, mas sabíamos que o despenhamento seria inevitável. Com efeito, passado um tempo indefinível, começamos a rodar. Como minha única preocupação era não perder os olhos, pus todo o meu empenho em preservá-los dos terríveis efeitos da queda. Quanto a meu companheiro, sua única angústia era que sua bela barba, de um admirável cinza de vitral gótico, não chegasse à planície sequer ligeiramente empoeirada. Então eu pus todo o meu empenho em cobrir com minhas mãos aquela parte de seu rosto coberta pela barba e ele, por sua vez, aplicou as suas sobre meus olhos. A velocidade crescia a cada momento, como é obrigatório nestes casos de corpos que caem no vazio. De pronto olhei através do ligeiríssimo interstício que deixavam os dedos de meu companheiro e percebi que, nesse momento, um afiado pico levava sua cabeça, mas de pronto tive que virar a minha para comprovar que minhas pernas ficavam separadas do tronco por causa de uma rocha, de origem possivelmente calcária, cuja forma dentada cerceava o que se punha a seu alcance com a mesma perfeição de uma serra para placas de transatlânticos. Com algum esforço, é preciso reconhecer, íamos salvando: meu companheiro, sua bela barba, e eu, meus olhos. É verdade que, de trechos em trechos, que eu liberalmente calculo de uns cinqüenta pés, uma parte de nosso corpo separava-se de nós mesmos; por exemplo, em cinco trechos perdemos: meu companheiro, a orelha esquerda, o cotovelo direito, uma perna (não recordo qual), os testículos e o nariz; eu, de minha parte, a parte superior do tórax, a coluna vertebral, a sobrancelha esquerda, a orelha esquerda e a jugular. Mas isto não é nada em comparação com o que veio depois. Calculo que, a mil pés da planície, só nos restava respectivamente o que se segue: de meu companheiro, as duas mãos (mas só até o carpo) e sua bela barba cinza; de mim, as duas mãos (igualmente só até o carpo) e os olhos. Uma ligeira angústia começou a possuir-nos. E se nossas mãos fossem arrancadas por alguma pedrica? Continuamos descendo. Aproximadamente a uns dez pés da planície, a vara abandonada de um lavrador enganchou-se graciosamente nas mãos de meu companheiro, mas eu, vendo meus olhos órfãos de todo amparo, devo confessar que, para eterna, memorável vergonha minha, retirei minhas mãos de sua bela barba cinza, a fim de protegê-los de todo impacto. Não pude cobri-los, pois outra vara enganchou-se igualmente em minhas duas mãos, razão pela qual ficamos, pela primeira vez, longe um do outro em toda a descida. Mas não pude queixar-me, pois meus olhos chegavam então sãos e salvos à relva da planície e podiam ver, um pouco mais além, a bela barba cinza de meu companheiro, que resplandecia em toda a sua glória.

[Virgilio Piñera, in Contos Frios]
Deus

1. Pode ou não existir. Existe. Talvez. Sim, um dia irão prová-lo pela ciência, ainda que eu creia que já o tenham feito por diversas vezes. 2. Seu plural é “deuses”. 3. Deuses são um único deus subdividido em pedaços de tamanhos variados. 4. O coração dos homens é a morada dos deuses. 5. Coração: órgão pulsátil, muscular estriado, feito para durar. 6. O feminino de Deus é deusa, termo costumeiramente grafado em minúsculas. 7. Deusa é vários deuses unidos por uma substância indecifrável. 8. Objeto de um culto ou de um desejo ardente que se antepõe a todos os outros desejos ou afetos. 9. Indivíduo ou personagem que, por qualidades extraordinárias, se impõe à adoração ou ao amor dos homens. 10. Cadeia de DNA, asa de borboleta, sussurro das matas, equações acima de quarto grau, luz dos vaga-lumes, orgasmo: variações do mesmo tema, expressas de acordo com a conveniência ou o momento, e dependendo intrinsecamente do observador. 11. Caminho ou senda pela qual se chega a novo caminho, tendo ao final dele um interminável corredor de espelhos e novas perguntas. 12. Átomos e seus compartimentos. 13. Verbete de dicionário.

[Marpessa - texto publicado na última edição do Aquele]