Um grande sertão dentro da gente
Todos ocupam-se do tempo; prefiro ocupar-me do espaço. O trabalho é o mesmo, as mesmas dores, e talvez, não sei, talvez seja a mesma coisa em tudo. Os longes no espaço se misturam aos longes do tempo. As distâncias, os buracos profundos e largos entre pessoas, coisas, fatos. Lonjuras que poderiam ser transpostas, mas não o são, porque o abismo, tão grande e perigoso, nos deixa imóveis no lugar onde estamos. Não vencemos o espaço. Tampouco o tempo, que segue comendo a vida, comendo a vida, comendo a vida. Para quê tanta corrida? É de se rir de tudo. Um dia nem mesmo este planeta vai sobrar, porque sabemos, o Sol vai explodir. Que importa tanta arte, tanto amor? Nada vai restar. Que importa almoçar bem, jantar bem, cuidar da saúde, criar animais, beber água de chuva? Um nada de importância, uma total impotência que paralisaria se não fôssemos teimosos, insistentes, renitentes, céticos, horrorosos, predadores, vazios e vagos d’alma, embusteiros, ladrões. Que apego, que pavor indescritível no fundo dos olhos! Tempo é ir e nunca voltar. Espaço é ficar. Chover no mesmo lugar.
Um sertão dentro da gente, um grande sertão cheio de caminhos que fazemos sozinhos, as outras gentes que só fazem sombra, no final a curva e só um Eu enorme a remar, no seco, no sol invernal. Aquele silêncio morno, eco do coração, a nos mostrar o que não há - o que não pode haver. Bate fundo na memória, esta sala atulhada de trastes, de cerimônias, e mesmo assim parada e triste lá dentro, como se ninguém a houvesse visitado. Espaço: longe. Tempo: longe. Tudo: espaço e tempo. Cordas rompidas. Tempos remotos, dizemos. É lá atrás. Indiscutivelmente lá atrás. Lugares remotos, dizemos: também lá atrás? Nem sempre. Ao lado. Porém inacessível, como o lá atrás do tempo remoto, esse moço de chapéu e luvas que surge no horizonte ao contrário quando partimos e esquecemos.
A margem de cá do rio é sempre tão clara e confusa, tão dia, tão viva. Deixemos a margem oposta se esconder por entre as brumas do entardecer, o lusco-fusco das seis, a treva faminta da noite. Deixemos, guardemos, que o moço de chapéu virá, em uma barca, buscar o que largamos por aí, lá atrás, nas profundas do passado, nos calendários do antes. O diabo, Ele-mesmo, habita outro lugar, com os medos e as coisas que chamamos de nomes feios – terceira margem. Porque sempre existe uma terceira margem, e nela sempre existe um diabo, nem tão feio, nem tão bonito quanto pintam.
[Marpessa - em dias de Guimarães Rosa, a se comemorar.]