Aranhas
- Ô, mããe! Uma aranha “modeu” minha cabeeeça...
A mãe franziu a testa. Nem respondeu. Aquilo já estava ficando chato.
- Mãe, você ouviu? Uma aranha “modeu” minha cabeça! – insiste o menino.
- Pare com isso. Aranhas não saem mordendo a cabeça dos outros desse jeito.
- É “vedade”, mãe! – o menino choraminga, manhoso. E a mãe, que em absoluto era uma pessoa ruim, afaga a criança.
- Então me mostra. Onde foi que a aranha te mordeu?
O menino aponta com seus dedinhos gordos de três anos uma pequena saliência logo acima da nuca. A mãe olha bem; parece uma espinha, ou um fio de cabelo encravado.
- Filho, isso não é mordida de bicho. É uma bolinha que nasceu aí. Não coce.
- Mas, mãããeee...
- Vai brincar, vai. Olha sua bola ali no quintal.
O menino foi, se coçando. Só não entendia porque a mãe não acreditava. Uma aranha havia, realmente, mordido sua cabeça. Ele pensou: foi de noite, quando dormia. Veio uma aranha e se enfiou por entre os cabelos, aninhando-se na massa castanha, e ali mordeu. Mordeu porque era um bicho malvado. O menino tinha muito medo de aranhas, porque elas têm tantas pernas e são tão feias! E fazem teias que dão arrepios.
De noite não queria ir para a cama. Foi preciso a voz enérgica do pai, que naturalmente também não acreditou na história. O menino fez a mãe esquadrinhar o teto, os cantos da parede, para garantir que não havia nenhuma aranha por perto.
- Que imaginação! – suspirou o pai. _Onde já se viu uma coisa dessas? Aranhas não mordem. Não essas daqui de casa; são inofensivas.
- Ele deve ter sonhado. – a mãe concluiu.
Passou-se um bom tempo – na verdade alguns anos – para que o menino reclamasse de novo.
- Mãe, uma aranha mordeu minha cabeça.
A mãe se lembrou.
- Filho, você já é bem grande para ficar com besteira. Uma vez, quando você era pequeno, veio falando isso e não era nada. Deixa eu ver.
Afastou os cabelos e viu uma feridinha vermelha.
- Você coçou? Deve ter sido um pernilongo – a mãe prosseguiu o exame, aproveitando para ver se não havia piolhos. - Pernilongo nada, mãe! Foi uma aranha que me mordeu. Ele veio do teto e me mordeu!
- Mordeu coisa nenhuma! Aranhas não mordem, entenda isso. Se não acredita, pergunte à sua professora.
Ele não perguntou nada para a professora, porque sabia a resposta. E como estava certo do que dissera, não precisava da opinião de ninguém nesse assunto. Era bem grande, já, para saber o que havia acontecido em sua própria cabeça durante a noite. Uma aranha, e pronto. Nunca mais falaria sobre isso. Na hora de dormir, olhou bem atrás da cama, e nos cantos da parede. Viu uma papa-mosca de barriga rajada percorrer com avidez a madeira da janela. Pensou em matá-la, mas era tarde, porque a danada escapara pela fresta. O menino tampou com jornal todos os cantinhos abertos, para que ela não voltasse mais.
Ele não se lembrava em que momento havia se descuidado das aranhas em seu quarto. O fato é que muito tempo depois outra ferida apareceu em sua cabeça. Muito tempo depois.
- Filho, que tanto coça essa cabeça?
- Você não vai acreditar, se eu disser.
- Que foi?
- Uma aranha mordeu minha cabeça. – quebrou a promessa, falou no assunto.
- Ah, filho, pelo amor de Deus! - exasperou-se. - Lembra quando...
- Sim, eu me lembro muito bem, e daquela vez você também não acreditou. Então esquece, tá? – o menino saiu batendo os pés, e foi para a rua. Tinha então quinze anos. Saiu para a rua e ficou recordando o incidente, percebendo que há anos havia deixado de vigiar a janela. “Elas demoraram para voltar”, pensou, alisando com a ponta do indicador a ferida. Notou que estava molhada, mas não era sangue, e sim um líquido transparente.
Foi dentro do seu primeiro carro que ele sentiu uma pontada ardida na nuca. A namorada ao lado.
- De novo... – ele passou a mão nos cabelos e tocou o caroço.
- De novo o quê? – a moça quis saber.
- Uma aranha mordeu minha cabeça. – ele dizia as palavras sem vontade nenhuma de dizê-las, sabendo de antemão o que ouviria. No entanto, mais uma vez não pôde evitar.
- Impossível! Deixe eu ver. – a garota passou a mão e identificou uma saliência. - Isso não é mordida de bicho. É uma espinha.
- Tudo bem, tudo bem, se você acha... – aprendera cedo que não adiantava discutir com mulheres. Especialmente sobre aquele tema.
- Não coce. – o velho conselho. Ele não coçaria. Mas sabia que era uma aranha a malfeitora.
...
Os anos vieram e se foram. O menino virara homem, estudara, casara-se. E as aranhas seguiram-no, importunando-o como de costume, com mordidas na cabeça. Ninguém acreditava nele, nunca, e ele desistira de tentar mostrar às pessoas que isso era realmente possível. Foi ficando velho, via seus filhos crescerem, depois viu os netos, depois via a morte de perto e já dormia sozinho quando em uma noite de calor sentiu a mordida. Pela primeira vez estava acordado no momento do ocorrido. Acendeu a luz do abajur, luzinha fraca, e procurou sob o travesseiro, nos cantos, embaixo da cama, no próprio pijama. “Escapou”. Voltou a dormir.
Horas depois foi despertado. Uma pontadinha suave no dedão do pé esquerdo. Abriu os olhos, ergueu os lençóis e avistou uma pequena aranha sobre a unha. Pareceu-lhe que a aranha estava falando. Em seguida, antes que pudesse apanhá-la, outra aranha apareceu e subiu em seu joelho. Mais outra, e mais outra, todas caminhando sobre ele, todas diminutas como percevejos. Com a luz do abajur pôde ver melhor. Eram muitas, várias, passeando seus corpinhos delicados pelo colchão. Ele colocou a mão na cabeça e sentiu umas dores irritantes e facilmente localizáveis. Aranhas mordendo sua cabeça. E haviam tantas aranhas que era difícil saber o que fazer. Ele estava tão velho... Tentou levantar-se da cama, mas não foi possível, porque as aranhas ordenaram que ficasse. Ordenaram! Medo; chorou silenciosamente. Elas iam comendo devagarzinho, primeiro os pés magros e solitários. Demoravam-se na tarefa. O velho até começou a sonhar, de tanto que as aranhas demoravam para executar o trabalho. Sonhou com uma gigantesca aranha com cabeça de homem. Era dele, a cabeça. A aranha corria, com doze pernas, corria para debaixo de uma cama muito velha, de madeira escura, e ali ficava a espiar, espiar...O que espiava tanto? O velho não sabia. Como não conseguiu encontrar a resposta, acordou. Estava já comido pela metade. Tinha certeza de que isso iria acontecer um dia. Tinha que acontecer. Tirou os óculos, colocou-os no criado mudo e, estoicamente, deixou que as aranhas terminassem o seu trabalho.
[Marpessa]