segunda-feira, agosto 23, 2004

Escrever é a ruína, é a ruína completa, porque ninguém vai saber do que estou falando, ou o que se passa verdadeiramente comigo. Em verdade, em verdade vos digo, escrever é a ruína de uma mulher. Deveria eu ter sido feita de uma massa menos pretensiosa, e então choraria menos, doeria menos, não saberia das coisas, nem teria os amaldiçoados vislumbres que me acometem vez ou outra, vez ou outra uma porra, todo dia, a qualquer hora, como acessos de epilético, e me sacodem igual, deixando-me prostrada, língua de fora, caricata e suja de palavras sujas, de vermezinhos que são letras e vão se juntando como na cartilha, nas lições do primário, bê e á bá, vejam como dão as mãozinhas para formar nomezinhos, ao inferno com tudo isso, antes tivessem me deixando analfabeta...Mas me espezinharam com essa história, tiraram de mim o sagrado direito de permanecer ignorante no exato momento em que me obrigaram a viver, quando me fabricaram via volúpia instantânea, pedaço de secreção oriundo de uma bolsa escrotal. Aí fico sofrendo eternas dores de parto, crônicas, irrevogáveis. Bate um frio na nuca e até os meus seios se retesam, e não é prazer. Tivesse eu pretendido coisas menos elevadas. Tivesse eu pretendido apenas cumprir as minhas funções, aquelas que são da minha raça, do meu gênero, as minhas tarefas orgânicas femininas, assar bolos e procriar, ter um marido para satisfazer, jogar fora todas as chances de espiar por sobre a lona do circo, jamais fugir com o palhaço. Tivesse eu, e agora não estaria aqui sangrando feito um porco. Minha livre vontade carregou-me até aqui. Não posso culpar ninguém por isso. Pois bem; eis meus pés seguindo em frente, para aquele desconhecido que chamamos “em frente”, o importante é continuar, mesmo tendo que olhar de vez em quando para trás, só para ter a certeza de que não estou esquecendo nada de muito importante, ou quem sabe vital para mim nesse momento. Uma corda, uma bóia, um bote amarelo, ah, malditas esperanças! Queria eu perdê-las todas, toda a patética vontade de ser feliz, que merda é essa de ser feliz, que importa, se acabarei com algodão nos orifícios cedo ou tarde?

[Marpessa]

Um comentário:

Nora Borges disse...

Queria só aplaudir em silêncio e guardada pelas sombras da cor de sua página... mas não sei fazer isso aqui.