sexta-feira, setembro 17, 2004

E se eu calasse trairia, porque o baralho está aí, como a boneca em teu armário ou a marca de meu corpo em tua cama, e eu tornarei a pôr as cartas à minha maneira, uma e outra vez até me convencer de uma repetição inapelável ou te encontrar finalmente como te quisera encontrar na cidade ou na zona (teus olhos abertos naquela quarto da cidade, teus olhos enormemente abertos sem me olhar); e calar então seria infame, tu e eu sabemos demais de alguma coisa que não é nós e joga essas cartas em que somos espadas ou copas mas não as mãos que as misturam e as armam, jogo vertiginoso de que só chegamos a conhecer a sorte que se trama e destrama a cada lance, a figura que nos precede e nos segue, a sequência com que a mão nos propõe ao adversário, a batalha de acasos excludentes que decide as posições e as renúncias. Perdoa-me essa linguagem, a única possível.

[Julio Cortázar, 62 Modelo Para Armar]

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