quarta-feira, novembro 10, 2004

conto inacabado, sem título e sem objetivo claro, o que é um erro terrível
(o começo dele é assim mesmo, com letra minúscula)

mas persisto no erro de remontar, com todas as letras, aquele instante. Nada do que tenho dito ou pensado nos últimos dias foge do espectro gelado destas memórias, que hoje me envolvem de tal forma que não entendi como ainda não pus termo à minha existência. Eu deveria escrever tudo isso, para servir de exemplo para mim mesmo que hoje assisto em meu cinema mental a sucessão de erros e de enganos nos quais incorri. Tolo, um dia acreditei. Entre folhas secas e o sol avermelhado a vi pela primeira vez, e qualquer um teria me dado razão se naquele momento eu dissesse que estava apaixonado por um fantasma. Ainda agora o gosto deste café ruim me traz à boca e ao peito o amargor da lembrança, a madeleine de Proust a azedar meu espírito com um vigor que antigamente eu, passando incólume pelos domínios do amor, jamais poderia ter imaginado. Por detrás dos meus óculos vi a mulher fantasma a colher rosas vermelhas em um jardim de sonho, pisando as folhas secas como se não as quisesse machucar, tamanha sua delicadeza. Lembro-me de que fiquei tocado, a observá-la deste mesmo balcão, ela do outro lado da rua. E que por isso o gosto do café que tomo agora me remete de pronto à imagem dela colhendo rosas. Tal viagem do espírito ao passado é incômoda, como se todo o meu ser tivesse sido desmontado em pedaços ínfimos para depois serem colados em algum outro lugar, aquele lugar onde antes não havia nada e antes ainda houve alguma coisa de importante para o viajante. Nesta dimensão incorpórea onde sobrevivem as lembranças há um quadro e ela é o motivo central, tão distante das minhas mãos quanto um Van Gogh no Louvre. Busco em silêncio dar à cena estática algum movimento e evoco para mim o perfume da tarde, o balançar de um galho da roseira e o poente riscando no céu um outro quadro enquanto eu apreciava aquele quadro com roseira e mulher, os olhos dela se voltando subitamente para mim e demorando longamente na tarefa discreta de me observar. Assim o começo.

Acabo de pedir mais um café. Não sei, mas sinto ser um erro terrível insistir. Meu momento é repleto de vazio e todas as cores fugiram para um lugar secreto, ao qual não tenho acesso e por certo jamais terei. As portas que levam aos segredos do mundo estão cerradas. Sinto-me encarcerado na rigidez de um sistema matemático que não admite improvisos, um pesadelo euclidiano que coíbe meus gestos, por menores que sejam. Tudo o que tenho é o café e minhas lembranças. Minha solidão é um cubo solto no espaço, um fractal em preto e branco mergulhado em total e irremediável silêncio. Ao meu lado, outras vidas povoam o espaço pontuando-o com suas presenças também encarceradas, cada qual em sua posição.

Naquela tarde em que a conheci tudo se apagou ao redor. Minha vida flutuou ao redor daquela outra vida, um astro percorrendo o firmamento e eu, uma lua a girar ao seu redor. Os primeiros instantes foram tensos, cheios de cuidados, mas as rosas e que belas e que ventania. O sorriso da Gioconda não foi mais misterioso. Entendi estar diante de uma forma peculiar de mulher, uma criatura atípica, que mantinha de tudo e de todos (exceto de suas adoradas rosas) um distanciamento tácito, mais por temperamento do que por decisão. Ela era assim. Vê-la era como enxergar o princípio e o fim de todas as coisas, mas estar em sua presença me tornava também fantasmagórico. Eu sentia como se fosse desaparecer e quando enfim ela me permitiu entrar em seu jardim e depois tocar suas mãos e em seguida beijá-la no rosto, eu desejava agarrar-me a ela feito um náufrago.

Pensando em como agora estou só e em quão dolorosa é a solidão de um homem que já teve em seus braços um anjo, percebo que não há diferença entre o que sou agora e o que fui naquele momento epifânico. Como tudo acabou, vejo que o caminho levou-me de volta ao começo de mada aprendi, nada guardei a não ser pedaços de uma vida que hoje parece não ter sido


[Marpessa]

5 comentários:

Anônimo disse...

Arte fragmentada.
Não metódica.
Quem disse que isso precisa de títulos, objetivos e fins?? Bem, você disse. E eu acredito.

Anônimo disse...

em tempo: assino.
Júlio Castro

Neysi disse...

Mais um belo texto...aos poucos vou lendo os antigos também...muito bons todos!
Neysi

Anônimo disse...

Epifanias, momentos de felicidade infinita, dor, perda, nostalgia do que (se) foi... Quem dentre nós não viveu (e morreu) com isso? Só me admira que alguém consiga viver depois de tal experiência sem ter a poesia, a arte pra expurgar os restos mortais de seu corpo, de sua mente...

Anônimo disse...

http://moacircaetano.blog.uol.com.br