terça-feira, novembro 09, 2004

Regras para falar ao telefone

Esqueçamos tudo o que sabemos a respeito dos mecanismos elétricos e mecânicos que rodeiam e classificam o aparelho telefônico. Esqueçamos, também, o fato de um telefone ser um aparelho tão comum quanto um fogão ou uma batedeira de bolos. O telefone, amigos, é na verdade mágico e como todas as coisas mágicas deve ser tratado com reverente respeito. Um mistério do engenho humano que nos traz de modo impressionante um sem-número de emoções, traídas pelas inflexões vocais ou expostas como ulcerações de pele. Por tal qualidade singular, o telefone merece toda nossa consideração: temos que saber como lidar com ele.

Em primeiro lugar, quando o telefone toca, é necessário evitar a todo custo a tentação – o desespero – de atendê-lo tão rápido quanto possível. Deixe tocar. Essa angústia prévia que mistura o incômodo causado pelos toques e o desconhecimento de quem está chamando do outro lado da linha é uma espécie de bênção às avessas. Se esta angústia estiver polvilhada de incredulidade diante de um chamado que não tinha motivos para acontecer, tanto melhor. Tantalizante.

Ao atender, não diga “alô”. Ouça, por um ou dois segundos, os ruídos do outro lado e tente adivinhar de onde vêm, como são provocados. Associe ruídos a pessoas e, como em um provocante jogo de adivinhas, tente descobrir que voz virá do outro lado. Naturalmente tanta expectativa pode acabar em franca decepção, porque mesmo quando não estamos esperando chamados, estamos esperando que. Mas valerá a pena porque, se existe a possibilidade da decepção, pelo menos houve expectativa e por algum tempo você desejou algo que – admita! - tinha alguma chance de acontecer, ainda que fosse em seu mundo e sonhos e dias vazios de significado.

Quando por fim você descobrir quem está falando, ou querendo falar, então haverá com que se ocupar por alguns minutos. Mas não deixe de pensar durante a conversa que esse é um instante fabuloso, o ápice da evolução, porque ao longe há uma voz e você pode ouvi-la, normalmente sem chiados, com total clareza. É um deslumbre, falar ao telefone. Então, enquanto estiver a falar e a ouvir, pense no mistério, porque só o mistério interessa para alguém que fala e ouve ao telefone. Um som passa através de vários fios e postes, chegando enfim ao destino em tempo real ou quase, e isso é estranho porque além de som pode-se ouvir risos e lágrimas e piadas e ironia, saber como está se sentindo a pessoa do outro lado e ela também sabendo como você está se sentindo, como tem sido seu dia ou sua noite, a despeito de qualquer dificuldade de ordem técnica que os fios ou o aparelho possa estar sofrendo naquele instante.

Importante é que você jamais volte a dizer que o telefone é um instrumento frio que distancia as pessoas, porque isso não é verdade e com um pouco de treino você vai saber. Então, passará a amar o telefone e a desejá-lo, mesmo quando seu toque é irritante ou quando você tem que correr, tropeçar, sair do banho ou da cama para atender ao chamado que sempre esperou.

Um dia ou uma noite será a voz que esteve aguardando por longo tempo, aquela voz que considerou sempre impossível como um fantasma. Pode ser assim, mas o telefone tem caprichos: também é possível que a ligação caia e do outro lado haja somente aquele sinal contínuo, absurdo e fatal.

[Marpessa]

3 comentários:

Anônimo disse...

Thiago www.canisfamiliares.blogger.com.br
Adorei a "suposta" brincadeira cortazariana! Não somente pela estrutura mas pelo conteúdo, desse modo podemos deixar de neurar com os telefonemas, hehehe!
Abraços

Bruno Domingues Machado disse...

Ótimo texto. Confesso que não consigo evitar: nunca deixo o telefone tocando; sempre atendo o mais rápido possível. Penso no desespero da pessoa (que pode estar morrendo, clamando por socorro) ao ligar. Pior do que o ruído de linha ocupada, é a secretária eletrônica. Nada me irrita mais que isso.

Neysi disse...

Definitivamente não fico muito à vontade com telefones, mas não dá para deixar de gostar do teu texto.
Muito bom o blog!
Neysi