Aquele de Quem lhe Falei - primeira edição
Está no ar. Corram lá.
CASA, s.f. edifício destinado a habitação. et coetera. ESPELHO, s.m. superfície brilhante e polida que reflete os raios luminosos ou a imagem dos objetos. et coetera.
quarta-feira, janeiro 26, 2005
quinta-feira, janeiro 20, 2005
Façamos de conta
Façamos de conta que foi só um vento, desses que cortam a pele no inverno ou anunciam tempestades no verão. Façamos de conta e esqueçamos, pensemos que talvez tenha sido só um sonho e que este sonho tenha sido afugentado com a primeira espreguiçada, ainda na cama quente. Deixemos que o tempo aos poucos soterre essa lembrança e que a coloque em seu devido lugar, em alguma das gavetas do arquivo, friazinha e acomodada com cuidado atrás de uma papeleta com seu nome-data-grau de importância.
Vamos ver quantos anos a lembrança perdurará antes de se desfazer em centenas de pedacinhos amarelentos; veremos se haverá alguém ainda interessado em dar uma olhada nela, em trazê-la para fora dos arquivos, espanar o pó e afugentar as traças, botá-la na janela para tomar um pouco de sol. Veremos se vai envelhecer, se vai perder a cor, murchar como uma rosa no meio de um livro. Prestemos atenção para o que acontece com essa lembrança: se reluz um pouquinho, se vibra para depois cair no chão abandonada, ou se apenas fica quieta esperando sua hora passar.
Façamos de conta que nada disso foi verdade e que a lembrança é somente a asa esquerda de um engano feliz. Desse modo podemos seguir incólumes, os olhos secos e um sorriso rasgado nos lábios, em frente, ignorando qualquer dor que porventura nasça, porque a dor é a asa direita. Fechemos as gavetas. Só as abriremos na próxima primavera.
[Marpessa]
Façamos de conta que foi só um vento, desses que cortam a pele no inverno ou anunciam tempestades no verão. Façamos de conta e esqueçamos, pensemos que talvez tenha sido só um sonho e que este sonho tenha sido afugentado com a primeira espreguiçada, ainda na cama quente. Deixemos que o tempo aos poucos soterre essa lembrança e que a coloque em seu devido lugar, em alguma das gavetas do arquivo, friazinha e acomodada com cuidado atrás de uma papeleta com seu nome-data-grau de importância.
Vamos ver quantos anos a lembrança perdurará antes de se desfazer em centenas de pedacinhos amarelentos; veremos se haverá alguém ainda interessado em dar uma olhada nela, em trazê-la para fora dos arquivos, espanar o pó e afugentar as traças, botá-la na janela para tomar um pouco de sol. Veremos se vai envelhecer, se vai perder a cor, murchar como uma rosa no meio de um livro. Prestemos atenção para o que acontece com essa lembrança: se reluz um pouquinho, se vibra para depois cair no chão abandonada, ou se apenas fica quieta esperando sua hora passar.
Façamos de conta que nada disso foi verdade e que a lembrança é somente a asa esquerda de um engano feliz. Desse modo podemos seguir incólumes, os olhos secos e um sorriso rasgado nos lábios, em frente, ignorando qualquer dor que porventura nasça, porque a dor é a asa direita. Fechemos as gavetas. Só as abriremos na próxima primavera.
[Marpessa]
sábado, janeiro 15, 2005
Visível, invisível
Às vezes era invisível, noutras vezes visível demais. Fazia sol de solidão, aquele céu azul que era uma afronta, e tanta gente andando de cá para lá. Estava invisível, agora, definitivamente invisível. Mas isso era o agora, a praça da igreja, o caminhar lento de pajem medieval, frase do poeta Vinícius "para uma menina com uma flor”, isso era o instante presente, uma sacola pesada de livros e revistas, o local marcado para um encontro.
Antes, instantes antes, estivera visível. Indo para o centro da cidade, estivera visível o bastante para ver também, retribuir a visão do outro, daquele outro perturbador que abaixara o vidro do carro para bolinar-se olhando para ela. Um choque, o vilipêndio, o medo primitivo dos estranhos, e nem era mais criança. Só que tem umas coisas que não ficam velhas. Então, o medo, ser ofendida assim por um estranho, obrigada a ver o que não esperava. Indefesa, à mercê, tão ruim sentir-se à mercê quando não queria. Isto está errado e incomoda, chega a doer. Ficou uns bons minutos sob os efeitos nocivos daquela ancestral maneira de temer os homens. Ela se soube mais visível que as luas cheias.
Visível demais. Andou pelas ruas; foi à biblioteca, um bom refúgio se não parasse para pensar nas barrigas das bibliotecárias, porque se pensasse, que tristeza, o pensamento não seria interrompido, rebentaria em ondas indômitas de associações inúmeras, que não dão mesmo trégua a uma pobre cabecinha visível. Adoráveis volumes embaixo do braço, vamos lá.
Passou em uma loja conhecida, almoçou com um conhecido, então visível porque o conhecido a olhava e falava com ela, um calor grande, uma da tarde. Almoçando, ele; ela, uma cerveja, que coisa me aconteceu, veja só você que absurdo. Ele diz: normal, essas coisas acontecem, cada doido... Ela tentando explicar o vilipêndio, mas as palavras, como já se sabe, traem sem misericórdia. Cerveja, cigarros, adeuses. Vamos lá.
Rodar a esmo, na invisibilidade. Banca de jornal. Ver o que não interessava, ver só para matar o tempo, muito tempo até o encontro marcado. Ouve um chamado débil (de volta à visibilidade), não se mexe. O chamado insiste, cresce, impossível ignorar. Um senhor apoiado numa bengala, trajado adequadamente para o sol, em bege e branco, um senhor de boina que diz: senhorita! És muito linda... Ela agradece, surpreendida pelo excesso de visibilidade, estaria exposta? No mesmo instante, a moça com a criança, sacolas, que bonitas as suas tatuagens. A moça tem um olho roxo, um soco, e sorri preocupada em admirar as tatuagens da outra que agradece e não entende, fica estupefata, estão todos me enxergando, será?
Quer por tudo na vida tornar-se invisível novamente, quer por tudo, não está preparada para tanto olhar assim gratuito, se olhassem apenas, mas ela está palpável, ao alcance das mãos, tão pequena ela é. Segue pela rua, não sabe para onde, segue e segue até outra banca de revistas, entra e ninguém olha. Escolhe, tira o dinheiro, o homem cobra e diz: o que está escrito aí no seu braço?, meu aparelho de tradução não encontra essa palavra... Kills. Love Kills.
É como se estivesse navegando em um barco branco no cair da tarde, um barco que singra os mares suaves e mornos, um passeio que poderia durar eternamente - eternidade, que palavra macia. Ela ainda precisa esperar pelo telefonema, um cansaço de repente, mas precisa. Vai devagar, gastando o tempo, reluta. Quantas coisas num só dia, preguiça de viver. Procurando os cantos de sombra, ela segue em direção ao local do encontro marcado. Torce para que não haja nenhum imprevisto e a pessoa aguardada possa comparecer, porque se não vier será incomodamente anticlimático, ela queria conversar com alguém que a conhecesse a fundo.
Por dentro algumas revoluções, o que dava a impressão de ter feito e vivido muito mais do que fez e viveu. Era só uma tarde, uma tarde comum, mas o sol era de solidão, daí a sensação que começava a nascer, de solidão sob o sol. Completamente só, dentro de si mesma, e por isso a condição de visibilidade ficava tão deslocada - era apenas ela, afinal, apenas ela e o interior rico e fervilhante. Sem lágrimas, sem dores fortes, só o estado crônico de estranheza e deslocamento, agora permeado pela solidão sob o sol, aquele céu, uma colcha impecável e sem rugas.
Praça, igreja. O caminhar lento do pajem medieval. Sentia-se mais alta, mais ereta, e quando isso acontecia, era fato, logo estaria também mais etérea e alheada. Cortou a praça, concentrou-se na falta de rumo, era sentar e esperar um pouco, quem sabe. Andou de um extremo a outro e de repente estacou, como se soubesse; um instante depois, o telefone tocou. Sim, sim, estou aqui. Meia hora? Certo. Sorriu; foi como se adivinhasse, aqueles pressentimentos, era razoável que tivesse tido um pressentimento naquela tarde, o sol-solitário-solitude. Mais etérea e alheada: deu-se um título, “A que estava para morrer”, pois assim parecia, assim o mundo colocara, ela não era apenas uma pecinha encaixada em algum ponto-momento da máquina do mundo? Pois então, se preciso fosse, morreria. Isto também era um pressentimento? Não deu a menor bola. Se fosse, feito estaria.
Ainda meia hora para ocupar. Sentou-se num banco, acendeu o cigarro e apanhou uma revista. Visível ou invisível? Agora não sabia, muito dentro de si e as janelinhas fechadas. Muito dentro para saber. Achou-se bem, ali sentada, à sombra da igreja e das árvores. Achou-se convicta de estar no lugar certo e na hora certa, na tarde ideal para jogos assim de visível-invisível – pois que era mesmo só um jogo de si consigo mesma. Concreto, mas sempre um jogo. Ele entenderia? Certamente, se ela soubesse explicar. Pensando melhor, não entenderia tudo, mas o cerne, o miolo da experiência e do jogo, a coisa de estar pronta para morrer no dia seguinte, isso sim seria compreensível para ele.
De súbito, entendeu. Apagava-se como uma tela de TV antiga, cuja imagem some aos poucos, com alguns espasmos, umas manchas, uns clarões repentinos. E isto, ele entenderia? Estava pronta. Ficando invisível. Levantou-se, foi espiar, já era hora. Chegaram ao mesmo tempo no ponto combinado, ele também alheado, vivia alheado. Invisível, aos olhos dela, mas estaria invisível por dentro? “Tenho tantas coisas para te contar”, e no mesmo momento percebeu que não eram assim tantas coisas; eram algumas poucas, e que brincavam de profundidade e superfície, não soube explicar para si própria se os fatos ocorridos estavam submersos ou boiando naqueles mares calmos, o barco branco. Pôs-se a falar, mas as tristezas dele fizeram tudo parecer uma grande tolice. Invisível até para ele, seria possível? Estavam então feito fantasmas, à sombra das árvores, o sol de solidão desaparecera tão depressa que ela nem mesmo notara. Um vento frio naquela praça, ela explicando, e que sorte, lembrou-se de uma boa história: se fosse pintora, estaria tudo resolvido, o que fazer com aquela tal boa história. Pintaria uma tela, ao estilo de Toulouse-Lautrec, ela esticando a perna esquerda e apontando para a prima um furo em sua meia-calça, o carro passando bem nessa hora e o motorista espiando. Na verdade, ela trocaria todo e qualquer talento para as artes plásticas pela espantosa e feliz coincidência do motorista ser também um pintor. A boa história é que o momento foi digno de ser pintado, esse era o ponto.
Ela o olhou nos olhos. Os dele estavam tão escuros, tão lupinos. Providenciou uma piada, o que sempre funciona. Vamos beber alguma coisa. Ela quis que o planeta inteiro perecesse na incapacidade de enxergá-la. Sabia que era visível para ele, afinal. Lembrava-se das palavras antigas, um cartão antigo, ela bastante visível na ocasião: Meeting you was an unthinkable, but delightful accident. Isso, sim, era importante. E se foram, disfarçados de humanidade.
[Marpessa]
Às vezes era invisível, noutras vezes visível demais. Fazia sol de solidão, aquele céu azul que era uma afronta, e tanta gente andando de cá para lá. Estava invisível, agora, definitivamente invisível. Mas isso era o agora, a praça da igreja, o caminhar lento de pajem medieval, frase do poeta Vinícius "para uma menina com uma flor”, isso era o instante presente, uma sacola pesada de livros e revistas, o local marcado para um encontro.
Antes, instantes antes, estivera visível. Indo para o centro da cidade, estivera visível o bastante para ver também, retribuir a visão do outro, daquele outro perturbador que abaixara o vidro do carro para bolinar-se olhando para ela. Um choque, o vilipêndio, o medo primitivo dos estranhos, e nem era mais criança. Só que tem umas coisas que não ficam velhas. Então, o medo, ser ofendida assim por um estranho, obrigada a ver o que não esperava. Indefesa, à mercê, tão ruim sentir-se à mercê quando não queria. Isto está errado e incomoda, chega a doer. Ficou uns bons minutos sob os efeitos nocivos daquela ancestral maneira de temer os homens. Ela se soube mais visível que as luas cheias.
Visível demais. Andou pelas ruas; foi à biblioteca, um bom refúgio se não parasse para pensar nas barrigas das bibliotecárias, porque se pensasse, que tristeza, o pensamento não seria interrompido, rebentaria em ondas indômitas de associações inúmeras, que não dão mesmo trégua a uma pobre cabecinha visível. Adoráveis volumes embaixo do braço, vamos lá.
Passou em uma loja conhecida, almoçou com um conhecido, então visível porque o conhecido a olhava e falava com ela, um calor grande, uma da tarde. Almoçando, ele; ela, uma cerveja, que coisa me aconteceu, veja só você que absurdo. Ele diz: normal, essas coisas acontecem, cada doido... Ela tentando explicar o vilipêndio, mas as palavras, como já se sabe, traem sem misericórdia. Cerveja, cigarros, adeuses. Vamos lá.
Rodar a esmo, na invisibilidade. Banca de jornal. Ver o que não interessava, ver só para matar o tempo, muito tempo até o encontro marcado. Ouve um chamado débil (de volta à visibilidade), não se mexe. O chamado insiste, cresce, impossível ignorar. Um senhor apoiado numa bengala, trajado adequadamente para o sol, em bege e branco, um senhor de boina que diz: senhorita! És muito linda... Ela agradece, surpreendida pelo excesso de visibilidade, estaria exposta? No mesmo instante, a moça com a criança, sacolas, que bonitas as suas tatuagens. A moça tem um olho roxo, um soco, e sorri preocupada em admirar as tatuagens da outra que agradece e não entende, fica estupefata, estão todos me enxergando, será?
Quer por tudo na vida tornar-se invisível novamente, quer por tudo, não está preparada para tanto olhar assim gratuito, se olhassem apenas, mas ela está palpável, ao alcance das mãos, tão pequena ela é. Segue pela rua, não sabe para onde, segue e segue até outra banca de revistas, entra e ninguém olha. Escolhe, tira o dinheiro, o homem cobra e diz: o que está escrito aí no seu braço?, meu aparelho de tradução não encontra essa palavra... Kills. Love Kills.
É como se estivesse navegando em um barco branco no cair da tarde, um barco que singra os mares suaves e mornos, um passeio que poderia durar eternamente - eternidade, que palavra macia. Ela ainda precisa esperar pelo telefonema, um cansaço de repente, mas precisa. Vai devagar, gastando o tempo, reluta. Quantas coisas num só dia, preguiça de viver. Procurando os cantos de sombra, ela segue em direção ao local do encontro marcado. Torce para que não haja nenhum imprevisto e a pessoa aguardada possa comparecer, porque se não vier será incomodamente anticlimático, ela queria conversar com alguém que a conhecesse a fundo.
Por dentro algumas revoluções, o que dava a impressão de ter feito e vivido muito mais do que fez e viveu. Era só uma tarde, uma tarde comum, mas o sol era de solidão, daí a sensação que começava a nascer, de solidão sob o sol. Completamente só, dentro de si mesma, e por isso a condição de visibilidade ficava tão deslocada - era apenas ela, afinal, apenas ela e o interior rico e fervilhante. Sem lágrimas, sem dores fortes, só o estado crônico de estranheza e deslocamento, agora permeado pela solidão sob o sol, aquele céu, uma colcha impecável e sem rugas.
Praça, igreja. O caminhar lento do pajem medieval. Sentia-se mais alta, mais ereta, e quando isso acontecia, era fato, logo estaria também mais etérea e alheada. Cortou a praça, concentrou-se na falta de rumo, era sentar e esperar um pouco, quem sabe. Andou de um extremo a outro e de repente estacou, como se soubesse; um instante depois, o telefone tocou. Sim, sim, estou aqui. Meia hora? Certo. Sorriu; foi como se adivinhasse, aqueles pressentimentos, era razoável que tivesse tido um pressentimento naquela tarde, o sol-solitário-solitude. Mais etérea e alheada: deu-se um título, “A que estava para morrer”, pois assim parecia, assim o mundo colocara, ela não era apenas uma pecinha encaixada em algum ponto-momento da máquina do mundo? Pois então, se preciso fosse, morreria. Isto também era um pressentimento? Não deu a menor bola. Se fosse, feito estaria.
Ainda meia hora para ocupar. Sentou-se num banco, acendeu o cigarro e apanhou uma revista. Visível ou invisível? Agora não sabia, muito dentro de si e as janelinhas fechadas. Muito dentro para saber. Achou-se bem, ali sentada, à sombra da igreja e das árvores. Achou-se convicta de estar no lugar certo e na hora certa, na tarde ideal para jogos assim de visível-invisível – pois que era mesmo só um jogo de si consigo mesma. Concreto, mas sempre um jogo. Ele entenderia? Certamente, se ela soubesse explicar. Pensando melhor, não entenderia tudo, mas o cerne, o miolo da experiência e do jogo, a coisa de estar pronta para morrer no dia seguinte, isso sim seria compreensível para ele.
De súbito, entendeu. Apagava-se como uma tela de TV antiga, cuja imagem some aos poucos, com alguns espasmos, umas manchas, uns clarões repentinos. E isto, ele entenderia? Estava pronta. Ficando invisível. Levantou-se, foi espiar, já era hora. Chegaram ao mesmo tempo no ponto combinado, ele também alheado, vivia alheado. Invisível, aos olhos dela, mas estaria invisível por dentro? “Tenho tantas coisas para te contar”, e no mesmo momento percebeu que não eram assim tantas coisas; eram algumas poucas, e que brincavam de profundidade e superfície, não soube explicar para si própria se os fatos ocorridos estavam submersos ou boiando naqueles mares calmos, o barco branco. Pôs-se a falar, mas as tristezas dele fizeram tudo parecer uma grande tolice. Invisível até para ele, seria possível? Estavam então feito fantasmas, à sombra das árvores, o sol de solidão desaparecera tão depressa que ela nem mesmo notara. Um vento frio naquela praça, ela explicando, e que sorte, lembrou-se de uma boa história: se fosse pintora, estaria tudo resolvido, o que fazer com aquela tal boa história. Pintaria uma tela, ao estilo de Toulouse-Lautrec, ela esticando a perna esquerda e apontando para a prima um furo em sua meia-calça, o carro passando bem nessa hora e o motorista espiando. Na verdade, ela trocaria todo e qualquer talento para as artes plásticas pela espantosa e feliz coincidência do motorista ser também um pintor. A boa história é que o momento foi digno de ser pintado, esse era o ponto.
Ela o olhou nos olhos. Os dele estavam tão escuros, tão lupinos. Providenciou uma piada, o que sempre funciona. Vamos beber alguma coisa. Ela quis que o planeta inteiro perecesse na incapacidade de enxergá-la. Sabia que era visível para ele, afinal. Lembrava-se das palavras antigas, um cartão antigo, ela bastante visível na ocasião: Meeting you was an unthinkable, but delightful accident. Isso, sim, era importante. E se foram, disfarçados de humanidade.
[Marpessa]
terça-feira, janeiro 11, 2005
...
É noite, e meu coração não me permite dormir.
A chuva mais uma vez lava a cidade e graciosamente perdoa seus pecados.
É noite e a cidade dos espelhos fenece sob o silêncio após a grande confusão:
O dia em que o sol brilhou, resplandesceu e tingiu de dourado cada centímetro de aço polido.
O dia em que o aço polido tornou-se tão musical quanto sinos de vidro - e soou no ar tépido de verão.
O dia em que a mornidão do vento trouxe consigo a languidez oriental dos gatos.
O dia em que os gatos comeram morcegos, e nada mais.
O dia em que os gatos, o dia em que as botas, o dia em que os espelhos
Retiniram todos em festa, comemorando a cidade em chamas, porque houveram chamas e houve confusão na cidade dos espelhos.
Quando chegou o final do dia, foi revelada enfim a verdade: os espelhos mentem ao contrário.
(Mas a questão, puramente estética e dialética, foi deixada de lado: a cidade é uma festa e os rojões confundem-se com o barulho dos sinos de vidro.)
O sol não se põe.
***
Alguém caminha pela cidade com a certeza de que a possui: ela, a cidade, uma babilônia apocalíptica a seduzir aqueles que em alguma ocasião puderam entrever, por momentos, um de seus pequenos pedaços brancos e pulsantes de concreto.
***
Subitamente, o sol se põe - porque precisa.
***
Então, a cidade funciona como um dia após o outro, deixando-se ocultar sob grossos cobertores de aleivosias e mediocridades para despertar em seguida, mais bela e livre do que antes, sob os eternos auspícios do astro -rei.
A lua confunde o coração dos homens e turva-lhes a visão. De novo, o silêncio de vidro pintado, a textura de porcelana a correr pelos dedos, a língua e a boca secas: ânsia e desalento.
É noite, e de novo a cidade impura.
[Marpessa, desavergonhadamente inspirada em "62 Modelo para Armar" e nela mesma]
É noite, e meu coração não me permite dormir.
A chuva mais uma vez lava a cidade e graciosamente perdoa seus pecados.
É noite e a cidade dos espelhos fenece sob o silêncio após a grande confusão:
O dia em que o sol brilhou, resplandesceu e tingiu de dourado cada centímetro de aço polido.
O dia em que o aço polido tornou-se tão musical quanto sinos de vidro - e soou no ar tépido de verão.
O dia em que a mornidão do vento trouxe consigo a languidez oriental dos gatos.
O dia em que os gatos comeram morcegos, e nada mais.
O dia em que os gatos, o dia em que as botas, o dia em que os espelhos
Retiniram todos em festa, comemorando a cidade em chamas, porque houveram chamas e houve confusão na cidade dos espelhos.
Quando chegou o final do dia, foi revelada enfim a verdade: os espelhos mentem ao contrário.
(Mas a questão, puramente estética e dialética, foi deixada de lado: a cidade é uma festa e os rojões confundem-se com o barulho dos sinos de vidro.)
O sol não se põe.
***
Alguém caminha pela cidade com a certeza de que a possui: ela, a cidade, uma babilônia apocalíptica a seduzir aqueles que em alguma ocasião puderam entrever, por momentos, um de seus pequenos pedaços brancos e pulsantes de concreto.
***
Subitamente, o sol se põe - porque precisa.
***
Então, a cidade funciona como um dia após o outro, deixando-se ocultar sob grossos cobertores de aleivosias e mediocridades para despertar em seguida, mais bela e livre do que antes, sob os eternos auspícios do astro -rei.
A lua confunde o coração dos homens e turva-lhes a visão. De novo, o silêncio de vidro pintado, a textura de porcelana a correr pelos dedos, a língua e a boca secas: ânsia e desalento.
É noite, e de novo a cidade impura.
[Marpessa, desavergonhadamente inspirada em "62 Modelo para Armar" e nela mesma]
quarta-feira, janeiro 05, 2005
...
Que coisa estranha é um espelho! E que afinidade assombrosa existe entre ele e a imaginação de um homem! Pois este meu quarto, tal como o contemplo no espelho, é o mesmo, e no entanto não é o mesmo. Não é a mera representação do quarto em que vivo, mas é exatamente como seria se eu estivesse lendo sobre ele numa história que aprecio. Toda a sua trivialidade desapareceu. O espelho o suspendeu da região de fato para as esferas da arte... Gostaria de viver nesse quarto, se ao menos pudesse entrar nele.
[George McDonald, trecho de Phantastes, citado em 'Annotated Alice']
Que coisa estranha é um espelho! E que afinidade assombrosa existe entre ele e a imaginação de um homem! Pois este meu quarto, tal como o contemplo no espelho, é o mesmo, e no entanto não é o mesmo. Não é a mera representação do quarto em que vivo, mas é exatamente como seria se eu estivesse lendo sobre ele numa história que aprecio. Toda a sua trivialidade desapareceu. O espelho o suspendeu da região de fato para as esferas da arte... Gostaria de viver nesse quarto, se ao menos pudesse entrar nele.
[George McDonald, trecho de Phantastes, citado em 'Annotated Alice']
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