quinta-feira, janeiro 20, 2005

Façamos de conta

Façamos de conta que foi só um vento, desses que cortam a pele no inverno ou anunciam tempestades no verão. Façamos de conta e esqueçamos, pensemos que talvez tenha sido só um sonho e que este sonho tenha sido afugentado com a primeira espreguiçada, ainda na cama quente. Deixemos que o tempo aos poucos soterre essa lembrança e que a coloque em seu devido lugar, em alguma das gavetas do arquivo, friazinha e acomodada com cuidado atrás de uma papeleta com seu nome-data-grau de importância.

Vamos ver quantos anos a lembrança perdurará antes de se desfazer em centenas de pedacinhos amarelentos; veremos se haverá alguém ainda interessado em dar uma olhada nela, em trazê-la para fora dos arquivos, espanar o pó e afugentar as traças, botá-la na janela para tomar um pouco de sol. Veremos se vai envelhecer, se vai perder a cor, murchar como uma rosa no meio de um livro. Prestemos atenção para o que acontece com essa lembrança: se reluz um pouquinho, se vibra para depois cair no chão abandonada, ou se apenas fica quieta esperando sua hora passar.

Façamos de conta que nada disso foi verdade e que a lembrança é somente a asa esquerda de um engano feliz. Desse modo podemos seguir incólumes, os olhos secos e um sorriso rasgado nos lábios, em frente, ignorando qualquer dor que porventura nasça, porque a dor é a asa direita. Fechemos as gavetas. Só as abriremos na próxima primavera.

[Marpessa]

7 comentários:

Anônimo disse...

Eu sabia que assim que apresentasse sinais de melhora iria aparecer um texto daqueles de tirar os pés no chão. Ainda bem, dona Marpessa. Um beijo enorme.

O Cara.

Anônimo disse...

Eu estava querendo dizer que já sabia que quando se recuperasse iria aparecer um texto aqui daqueles de tirar os pés do chão.
Um beijo.

O Cara.

Ana Paula disse...

Eu estou de queixo no chão...esse texto é muito forte. Acho que ainda vou ler essas palavras mais algumas vezes. Muito forte.

Anônimo disse...

O mais difícil é quando descobrimos que nossa gaveta de lembranças está por demais bagunçada para se entender. As lembranças começam a se perder, misturar-se com outras, até que,por fim, a vida termina como se nunca tivesse começado.

Ficou ótimo o texto.

Vivian Luiz - http://www.viviluiz.blogger.com.br

Anônimo disse...

Entre as lembranças que forçosamente arquivamos e as dores inevitáveis que comprovam nossa existência, alçamos vöo. Nossos pesados casulos ficam para trás, nossos ninhos que outrora nos aqueciam já nos parecem desconfortáveis. E o som do vento - esse mesmo, que traz a brisa primaveril - acaricia nossos ouvidos coma promessa de que coloridas flores, saborosos frutos e aconchegantes árvores nos aguardam logo ali, atrás daquela verde colina - mas como saber sem contorná-la? Coragem, minha linda, coragem...

Inefável é essa tua ternura que às vezes tentas disfarçar.

O Menino Azul...

Anônimo disse...

Aqui é o Ricardo, do Defenestrando o Inútil. Olha, que texto bom esse seu, heim? Dá gosto passar por aqui e ler o que vc escreve...
Beijão!

Anônimo disse...

Lindo, lindo, lindo... como td que está qui.

Beijinhos