terça-feira, março 08, 2005

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Durante sete anos andei, dia e noite, só com uma coisa na mente: ela. Se houvesse um cristão tão fiel a seu Deus quanto eu a ela, nós todos seríamos Jesus Cristo. Dia e noite pensava nela, mesmo quando a estava enganando. E agora às vezes, bem no meio das coisas, quando sinto que estou absolutamente livre disto tudo, de repente, ao virar uma esquina talvez, surge uma pequena praça, algumas árvores e um banco, um lugar deserto onde ficamos em pé e discutimos, onde nos deixamos mutuamente loucos com ferozes cenas de ciúmes. Sempre algum lugar deserto, como a Place de l’Estrapade, por exemplo, ou aquelas ruas sujas e lúgubres perto da Mesquita ou ao longo daquele túmulo aberto que é a Avenue de Breteuil, a qual às dez horas da manhã é tão silenciosa, tão morta que faz a gente pensar em homicídio e suicídio, qualquer coisa que possa criar um vestígio de drama humano. Quando percebo que ela partiu, talvez para sempre, um grande vazio se abre e sinto que estou caindo, caindo, caindo no espaço profundo e negro. E isto é pior do que lágrimas, mais profundo que o pesar, a dor ou a tristeza; é o abismo em que lançaram Satã. Não há meio de subir de volta, não há raio de luz, nem som de voz humana ou toque de mão humana.

Quantas mil vezes, caminhando pelas ruas à noite, perguntei a mim mesmo se não voltaria jamais o dia em que ela estivesse ao meu lado: todos aqueles olhares ansiosos que lancei aos edifícios e estátuas... Olhava para eles tão esfomeadamente, tão desesperadamente, que agora meus pensamentos devem ter-se tornado parte dos próprios edifícios e estátuas, que devem estar saturados pela minha angústia. Eu não podia também deixar de refletir que quando caminhávamos lado a lado por essas ruas lúgubres e sujas, agora tão penetradas por meu sonho e minha saudade, ela não observara nada, não sentira nada: eram como quaisquer outras ruas para ela, um pouco mais sórdidas talvez, mais nada. Ela não se lembraria de que em certa esquina parei para amarrar os cordões dos seus sapatos, observei o lugar em que seu pé havia pousado, e que aquilo ali ficaria eternamente, mesmo após as catedrais terem sido demolidas e toda a civilização latina ter sido arrasada para sempre.

Descendo a Rue Lhomond certa noite, num acesso de extraordinária angústia e desolação. algumas coisas se me revelaram com pungente clareza. Não sei se foi por eu ter tantas vezes caminhado por essa rua em amargura e desespero, ou a lembrança de uma frase que ela disse uma noite, quando estávamos na Place Lucien Herr. “Por que não me mostra aquela Paris”, disse ela, “sobre a qual você escreveu?”. Uma coisa eu sei, que à lembrança daquelas palavras percebi de repente a impossibilidade de revelar-lhe a Paris que eu chegara a conhecer, a Paris cujos arrondissements são indefinidos, uma Paris que nunca existiu a não ser em virtude de minha solidão, de minha fome por ela. Uma Paris tão vasta! Demoraria uma vida inteira para explorá-la de novo. Esta Paris, cuja chave só eu possuo, não se presta bem a uma excursão, mesmo com a melhor das intenções; é uma Paris que tem de ser vivida, que tem de ser experimentada cada dia em mil formas diferentes de tortura, uma Paris que cresce dentro da gente como um câncer, e cresce e cresce até nos devorar.


[Henry Miller, trecho de Trópico de Câncer]

5 comentários:

Anônimo disse...

Essa casa, esses espelhos
esses interstícios, entremeios
essa palavras sagradas, sutis

Seus movimentos, seus enleios
isso pelo que anseio...

minha manhã ficou feliz...

Anônimo disse...

Olhos alheios quase nunca captam os raios que nos penetram a alma.
Como descrever o poder que as coisas nos provocam? Paris certamente é morta para alguns e eterna para outros.
Adorei o texto e adoro Henry Miller em sua seriedade e em sua nudez.
Um beijo. Simone

http://www.letrasetempestades.zip.net

Anônimo disse...

"Se houvesse um cristão tão fiel a seu Deus quanto eu a ela, nós todos seríamos Jesus Cristo." Essa passagem vale o texto.

Anônimo disse...

Olá. Estou fazendo uma pesquisa para a minha monografia de pós-graduação sobre blogs literários e gostaria de lhe enviar um questionário, já que seu blog se enquadra nela. Por favor entre em contato pelo e-mail jrosasil@yahoo.com.br ou jrosasil@ig.com.br. Obrigado e conto com sua colaboração. José Antonio www.breveshistorias.zip.net

Andréa Muroni disse...

Dá para sentir o cheiro úmido das vielas, não?