sexta-feira, junho 17, 2005

Coisas que acontecem (sim, acontecem coisas)


Tem coisa que começa sem que a gente note, tão devagar que só notamos que alguma coisa está acontecendo quando nos apontam, nos dizem com todas as letras “algo está acontecendo com você”, dedos preocupados e duros a nos mostrar na cara onde é que está o erro. Posto que dificilmente notemos a coisa quando nasce, bem escondida como os filhotes dos peixes em um aquário, não temos muita responsabilidade sobre ela. Penso que não existe nenhum outro momento mais irresponsável na vida de uma pessoa do que este no qual as coisas estão apenas começando.

Constantemente Rubens me dizia “olha, tem alguma coisa”, com aquele ar misterioso das pessoas que não são propriamente inteligentes e se deixam intrigar por banalidades. Quando Rubens ficava quieto por muito tempo eu sabia que lá vinha, ele carregava a expressão e soltava seu “olha...” que eu fingia não ouvir; dava de ombros e virava para o canto, tornava a dormir sem pensar em nada.

Mas um dia tive que prestar atenção ao que ele dizia, até me censurei por não prestar atenção quase nunca, mas naquele dia a lembrança de Rubens me dizendo “olha...” veio com força, como se fosse o cenário ideal para o que estava acontecendo, e eu enfim começava a notar que algo acontecia de fato. Apesar de ter finalmente notado, mantive o ceticismo, porque não era fácil aceitar que aquilo estivesse acontecendo e que fosse o prenúncio de algo maior, muito ruim.

Hoje, olhando para aquele dia, fica um pouco difícil saber exatamente por onde a coisa começou, mas fazendo um esforço de memória (porque Rubens não está e não pode me ajudar) acho que foi a janela batendo, uma ventania destas que antecedem tempestades. Foi, sim, a janela batendo, o barulho, nunca suportei barulho e por isso nem filhos nem bichos, meus nervos sensíveis e o barulho da janela me sacudiu, bem me lembro, estava bordando borboletas em uma toalha amarela e usava a linha azul para fazer uma asa.

Então, a janela bateu, me sacudindo, como já disse, e por certo este foi o começo e dali até o instante em que me pus a pensar no que Rubens dizia, “olha, tem alguma coisa”, parece que foram semanas ou meses mas não, essas peças que a cabeça da gente nos prega quando as coisas que acontecem são muito elásticas e cheias de razões ou de não-razões, não entendo direito porquê as coisas aconteceram mas elas tinham que acontecer porque aconteceram, entende? O tempo é o diabo, me perturba um pouco, não consigo situar, eu não andava olhando para o relógio naquela tarde da tempestade e então que diferença faz, se dias, anos, horas?

Sei que a chuva caiu forte, janeiro doze, recordo até do cheiro da água batendo na terra, mas não do horário, decerto à tarde porque no verão as tempestades acontecem à tarde. Sim, agora sei que sentia a coisa que iria acontecer, chegando de manso, sim, eu sabia, por que não dizer? Hoje sei que sabia, mas naquele momento não sabia que sabia, não sabia de nada porque mal conseguia enxergar meu bordado, uma angústia pesada subindo pela garganta e então foi que espetei a agulha do bordado no dedo, acho que este foi o segundo pedacinho do quebra-cabeça dos fatos que estavam para acontecer e nessa altura (hoje, só hoje sei) eram inevitáveis.
Nesse dia em especial Rubens não falara comigo a manhã toda e ficara consertando o carro na garagem. Eu entendia o porquê do silêncio; a noite anterior e a briga feia, eu também não estava de conversa, mas não era só isso que me subia pela garganta, não, havia outra coisa subindo, um pouco mais dolorosa. O caso é que permaneci no meu lugar bordando e não almoçamos, me fiz de morta e quando a janela bateu espetei o dedo na agulha e levantei-me do sofá para procurar um band-aid.

Sabe quando as coisas acontecem de uma vez? Foi assim depois no final daquela tarde, a chuva já tinha passado, Rubens com toda certeza ficara embaixo do carro, a garagem coberta, ouvindo o estalar das gotas sobre a cobertura metálica e pensando que algo, algo acontecia ou estava para acontecer. No final daquela tarde foi que as coisas finalmente aconteceram e Rubens só poderia estar se referindo a isso, porque não havia outra coisa e não houve, para Rubens não houve realmente mais nada depois daquilo.

Não achei o band-aid, mas encontrei uns objetos tão estranhos na gaveta dele que na hora não pensei em nada, acho que perdi os reflexos, a capacidade de reagir. Era estranho que eu não reagisse e voltasse para o sofá, o dedo embrulhado num pedaço de pano e o sangue que não parava de escorrer, que lugar mais sangrento é a ponta de um dedo jovem! Talvez por isso eu não saiba dizer no relógio quanto tempo se passou; porque fiquei preocupada com o meu dedo e toda a minha atenção se voltou para o sangue que ia manchando o pano, uma gotinha aqui, outra ali.

Não demorou muito, acho. Sou saudável e o sangue parou de escorrer, mas ficou uma dorzinha aguda, um incômodo que eu trataria de esquecer porque só agora me lembro dele, fazendo um esforço grande. Fiquei andando pela casa e abri as janelas, chovia horrores, afinal um calorão o dia todo, minha mão suava enquanto eu bordava as borboletas, disso me recordo bem porque a agulha escorregava a todo instante. Aquela dor que subia, tão diferente da dorzinha na ponta do dedo, ia agora avolumando-se, criando contornos, transformando-se em um monstro de bestiário a sacudir minha embarcação em algum oceano distante dali, como se eu tivesse deixado de existir para ser outra pessoa, alguém longe que navegava em uma embarcação e cujo medo ali no meu sofá transformava-se em um monstro a sacudir a embarcação correspondente da minha outra pessoa correspondente.

Senti meu rosto avermelhar e arder. Não parecia fazer sentido, e a asa da borboleta no pano amarelo a perder a forma, pouco se me dava se estava ficando torta, eu não era boa bordadeira, nunca fui. E por tudo isso acho que houve um plano, como se Deus ou alguém invisível estivesse desenhando esse mapa porque não parecia lógico que assim fosse. Mas as coisas acontecem sem que a gente possa prever, apenas porque precisam acontecer, porque são o próximo ato no espetáculo e o diretor desta peça é tremendamente severo com seus atores, então não teve jeito e saí da sala, atravessei a cozinha, invadi o quintal. A chuva caía inclemente, o cheiro bom da terra refrescada, um verdadeiro alívio.

Sempre gostei de tomar chuva, e há anos não fazia isso. Gostoso. Caminhei lentamente pela grama, as gotas fortes, pesadas, estalando nas minhas costas; subia um vapor da grama, das pedras do jardim, do carro. Rubens estava sob o carro, pude ver as pernas dele apenas, joelho e panturrilha. Eu sabia o que fazer ali, naquele instante houve como que uma ordem, o ponto no teatro a nos dar a deixa quando nos desconcentramos e acabamos nos perdendo no texto e na ação a seguir, o desconcerto peculiar logo emendado pelo acerto que nos acalma, tudo tão rápido que o público sequer nota, só nós os atores depois da peça enquanto fumamos um cigarro na coxia e rimos dos enganos cometidos durante o espetáculo.

“Rubens”, chamei, e meu marido resmungou debaixo do carro, fez um som que não pude definir. “Rubens, por favor, venha até aqui, preciso que você veja uma coisa”, eu pedi, e então ele começou a se mover para sair. A chuva caía forte, lembro-me claramente de que estava descalça, e Rubens também estava descalço, é certo que estava, disso eu sei porque Rubens de pôs de pé e ao dar os primeiros passos apressados escorregou na mancha de óleo que vazava do motor do carro inerte na garagem. Eu não me movi, e por isso digo que sempre há um diretor a nos guiar, não me movi enquanto olhava curiosa para saber se óleo de misturava com sangue. Não misturava; acho que porque a chuva ia lavando o sangue e o óleo ao mesmo tempo, lavando o grito que perdurou por um segundo apenas, as roupas de Rubens estavam coladas ao corpo e um filete de sangue escorria da sua cabeça para o gramado.

Fiquei olhando por muito tempo, e daí soube que não tinha culpa, as coisas são o que são, engraçado que Rubens soubesse disso antes mesmo da janela que bateu com a força do vento, o prenúncio da tempestade. Entrei em casa, tomei um banho quente, tornei a abrir a gaveta, depois a fechei, e agora só me recordo de um homem me dizendo que não havia nada dentro da gaveta, que não podia ser, não podia ser, e me olhava com olhos maus durante todo o tempo em que permaneci sendo interrogada, disso pouco me lembro além do fato de haver uma gaveta vazia e fechada em algum dia, e em algum dia também uma embarcação cruzando um oceano qualquer.

[Marpessa]

5 comentários:

Anônimo disse...

o que mais me atrai, são as espirais do furacão se sucedendo num espetáculo majestoso para terminar naquilo que é a natureza de cada furacão: o inevitável.

Anônimo disse...

Saudades de seus textos... Finalmente estou conseguindo entrar nos blogues dos amigos, coisa que não dava pra fazer no trabalho... Um beijo!
Ricardo Miyake (Defenestrando o Inútil)

Jorge Rocha disse...

maravilha, marpessa.

Anônimo disse...

eu... eu... eu não cumpri um prazo...

Stela disse...

Ultimamente, as histórias têm contado muito a mim. Elas não me deixam em paz nenhum minuto. Como um espírito obsessor (talvez acham catalogariam os kardecistas), eu debruço-me sobre qualquer coisa que escreva (até um pobre delineador de olhos).
É, querida amiga, será que tenho sofrido de constipação literária?
Beijocas e já com saudades!