segunda-feira, agosto 22, 2005


Esboço de uma teoria que possa me explicar

Agora sei onde está o segredo: o segredo está na infância. Na verdade, eu sempre soube, mas não achava que fosse possível.

Como que para confirmar minha descoberta, o acaso colocou-me diante de uma das minhas notas para futuros textos:

Lembrança de infância: a idéia de que a casa dos fundos era a casa da tia -- a tentativa de construir o espaço de acordo com as vontades
-- na infância havia a vida verdadeira -- insights destas lembranças ou trechos deles no sonho.

Tal anotação reencontrada acabou por elucidar muitas coisas. A mais importante delas é a de que o meu desejo profundo de resgatar pedaços da infância é uma constante da qual não posso me livrar. Isso se fecha em um círculo: meus insights recorrentes pontuam o que escrevo; e o que escrevo é, sobretudo, o desejo manifesto de (re)viver.

Outra revelação que me trouxe essa anotação foi a clara certeza de que existem, na infância, momentos tão complexos permeados por tanta epifania, que me parece lógico transformar isso em literatura, como uma espécie de exegese da vida. Na infância habita o ponto onde tudo se une (o Aleph, ou coisa que o valha), no qual vão dar todos os caminhos, incluindo esse mesmo instante, essas palavras, esse Eu formado por tantas camadas sobrepostas.

Quanto mais penso na infância, mais essa impressão se expande. Posso relacionar dezenas de momentos onde “tudo pareceu ser como realmente é”. Rememoro meu olhar sobre as coisas e sinto muito profundamente cada viva impressão, e cada uma dessas vivas impressões como sendo uma pincelada no quadro.

Observar uma veneziana “ao contrário” e ver em cada pedaço de madeira uma coluna, cada vão um amplo espaço no qual dança um casal de noivos. Enroscar-me em uma teia de aranha. Aprisionar borboletas e logo soltá-las, porque muito feias, e também a piedade. Girar, girar muitas vezes e deitar-me no chão, ver o mundo cair devagar. Inventar sistemas lógico com números e formas, sem jamais deixar de seguir as “regras” criadas. Brincar com espelhos um diante do outro, angustiar-se ao infinito. Fingir morar em um túmulo. Criar cobras imaginárias. Perder-se na visão do mundo dentro das bolinhas de gude. Tentar surpreender os brinquedos conversando. Escrever enciclopédias – projetá-las, na verdade. Entreter-se por horas na visão de coisas muito, muito pequenas: formigas, bolhas da espuma do sabão, a trama dos tecidos, grãos de areia, pétalas. Olhar tudo através de frascos de perfume. Ver dentro de um copo d’água a grande caverna dentro de uma baleia.

Experimentos sem bloqueio. A liberdade desenfreada, a percepção clara: surrealismo.

Trata-se de desmascarar a realidade, ou, antes, apresentá-la sob filtros diferentes, mostrando que “tudo” pode existir, que “tudo” existe, e o que existe pode virar arte. As mulheres de Picasso existem tanto quanto as de Renoir. As criaturas de Bosch são tão reais quanto as dançarinas de cabaré de Toulouse-Lautrec. A questão é que há muitas realidades, emparelhadas, simultâneas, sobrepostas, paralelas, transversais...Oníricas, inconscientes, reais-concretas, reais-abstratas... São infinitas, as realidades, e talvez mesmo a palavra “realidade” seja insuficiente. Os quarks existem? As cordas existem? Pressupõe-se que sim, dados os experimentos quânticos, porém ninguém os vê. Ainda assim, eles “são”, e mais: fazem parte da ciência. Assim as múltiplas realidades. Mas isso tudo já foi vislumbrado por sábios antigos e por cientistas.

Nada, então: nem experimentos dadaístas, nem o Ulisses, nem a Commedia, nem relatos de viagem (por falar em Commedia!); nada disso situa-se “fora” do Real Absoluto. O chamado realismo fantástico é um derivado especial do Surrealismo, creio, mas tudo deveria ser considerado Realismo, todas as escolas artísticas e literárias: tudo é REAL.

A arte é real (na falta de melhor definição). Daí apreende-se que a arte não só “imita” ou representa a vida, como é a própria vida.Não é possível distinguir a vida da arte, e nem a arte da vida.

[Marpessa]

5 comentários:

Michel disse...

Muito bonito.

Michel disse...
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Anônimo disse...

ai-ai...

bel_Guerra disse...

Saudades da casa de saquarema...

Anônimo disse...

Nossa, muito bom mesmo. Eu sempre fico pesando que é na infancia q realmente se mostra o verdadeiro EU, toda aquela inocencia, certeza de td q se faz, o esquecer o ontem e nem se importar com o amanha, querer apenas coisas simples, sem muito valor, apenas viver, eu acho q me perdi em um desses caminhos, estou tentando reencontrar o elo coom a infancia q foi perdido em um desses caminho loucos da vida. Eu nunca conseguiria espressar o q a infancia representa da forma como vc o fez.
Espero q vc chegue a ler esse simples e sincero comentário.