segunda-feira, outubro 03, 2005


Um
Teus olhos não me deixam mentir mais. Porque são janelas, e porque você me espia detrás delas, essas suas janelas sem cortinas que me perseguem até mesmo quando as minhas estão fechadas. Perseguem-me através das dobras suaves do sono. Vasculham meus pensamentos à procura de um retrato seu, de um gesto guardado, de um menear de cabeça ou um sorriso. A busca é certeira: exatamente no meu baú de coisas mortas, vencidas pela exaustão dos anos ou pela passagem das dores. A cada nova noite, novos olhos, mas são sempre os teus, sempre a mesma cor, o mesmíssimo brilho – devorando meus dias sem pressa. Não posso mais com eles, e sei que estou enlouquecendo, que serei trancafiada, sedada, enterrada. Mas são seus olhos, são apenas os seus olhos cor de musgo, eu bem sei porque os vazei um dia, tantos invernos atrás. Agora a mentira, agora o disfarce, a tentativa de esconder o que não pode mais, que não cabe em si de tanta realidade, e depois o calor calmo e secreto dos beijos, é tanta coisa a me confundir mas no final sempre são os teus olhos que repousam sobre mim, seja dia, seja morte.

Dois

Hoje quando ouvi tua voz, quando comecei a sair do meu sono e acordei finalmente, com a tua voz nos meus ouvidos dizendo, o que você dizia, mesmo? Não pude entender: era amor? Na curva do silêncio, um sussurro quase cristalino: você, entrando e dizendo algo, o que era? Alguma coisa doce e acariciante. Era mesmo você, ou era aquele você dos meus sonhos? Tantas perguntas. Você veio de dentro, agora tenho certeza, você veio de dentro e de dentro me disse, o que? Sei que você estava ali, em algum lugar, me rodeando dentro e depois fora do meu sono de nuvem, era suave e tenro te saber dentro e fora, e seguro saber que também fora, porque sempre foi aqui dentro, eu só quis despertar em definitivo e saber que era mesmo você e que havia ainda um você do meu lado de fora a me vigiar enquanto eu dormia e acordava lentamente, tão bom se fosse verdade, se porventura você estivesse de fato. Eu então esforcei-me para despertar e encontrá-lo, mas, você também sabe, o que me disse não era amor, porque do lado de fora não havia você.

Três

Estava andando, andando sem direção, quando por fim descobri um perfume perdido, em meio a tantos outros. Um perfume. Procurei por você e não encontrei. Um perfume perdido no ar, no meio do nada habitado de fantasmas, e por um instante meu coração esfriou, ficou pequeno e tímido, aquele perfume solto assim, impune, trazendo sua presença, fazendo caber em instantes quase toda uma vida, seu corpo ao meu lado, a cama desfeita, delícias da noite, delícias, eu me aninhando bem junto a você e sentindo o perfume já esmaecido no seu pescoço, beijar a nuca, beijar a boca, encostar o meu rosto no seu pescoço e aspirar o perfume desmaiado, suspirar de prazer, sorrir um sorriso simples de lua crescente, afagar seus cabelos, tocar suas costas longas, sentir novamente o perfume no travesseiro, e começar tudo de novo, oferecendo-me, o perfume, o perfume que depois ficou em mim e me fez sorrir voltando para casa como agora, voltando para casa e você de novo me aparece em forma de perfume, perdido no ar imenso, na solidão intangível.

Quatro

Não têm gosto. Mas estão ali, vivos e quentes. Eu os saboreio com verdadeiro prazer, uma fome hedonista, ancestral. Mordo-os sem machucar, ou machucando um pouquinho, porque é bom. Movem-se, teimosos, fogem para em seguida aproximarem-se de mim, sabendo ser inútil essa fuga e desejando que seja mesmo inútil, quase sinto o sangue, tão vermelhos e lindos. Eu os persigo, os encontro, os abandono, deixo-os esfriarem, para pegá-los novamente com desejo redobrado: agora estão frios e me cabe aquecê-los novamente, o que faço, deixo-os úmidos, brilhantes, satisfeitos. Não lhes dou tempo de me esquecerem; volto a eles com fúria, arraso-os, deixo-os cansados, saciados, e tão logo se vêem livres desejam aprisionar-se de novo, mais um pouco. Sinto o sabor, agora; não têm sabor, mas têm – como explicar? Não têm sabor, mas eu o sinto, e é como se fosse uma folha de árvore, meu peito arqueja, a respiração é entrecortada, e no entanto não têm sabor. E que delícia, assim sem sabor; a coisa mais deliciosa que já provei em toda a minha vida, sem sabor, mas é um par de folhas de árvore, no entanto vermelhos, no entanto úmidos, no entanto falam e respiram e me mordem ao mesmo tempo, esses lábios que agora beijo e torno a beijar – sua boca. O gosto, é de gostar. E só.

Cinco

Era fechar os olhos e descobrir que não precisava de olhos. Que me bastava a pele, e a minha tocava a sua mansamente, morna, branca. Carícia elegante, gestos felinos, a tatuagem azul no braço direito, como foi mesmo que você fugiu de mim? Eu gostava de tocar suas costas, alisá-las, saber que estavam ali ainda que eu não as estivesse vendo – porque estávamos sempre de olhos fechados, ou habitando no escuro. E enquanto eu o tocava, os olhos de dentro estavam abertos, vendo tudo o que se passava no interior das minhas mãos, desenhando para mim, e era lindo quando o desenho se completava, e sempre mais que perfeito. Suas costas eram longas, sim, muito longas e firmes, a pele lisa e quente escorregando sob meus dedos, ou meus dedos é que escorregavam? Na abstração, não poderíamos ter certeza. Mas havia ali as suas costas longuíssimas, intermináveis, você tão mais alto do que eu, e eu com minhas mãozinhas desenhando símbolos, traçando com a ponta do dedo uma palavra e pedindo para você adivinhar o que eu havia escrito, não sei como, mas você sempre adivinhava. Então eu apagava tudo e começava outra vez, e quando minhas mãos esquentavam muito eu as oferecia a você, para que as beijasse. E você as beijava, sempre.

[Marpessa - texto publicado na edição #7 do Aquele, com o tema Sentidos]

Um comentário:

Anônimo disse...

Valeu esperar tanto tempo por um novo post... Adorei, linda!
Bjks.