segunda-feira, fevereiro 27, 2006

Fumaça

Na tepidez da manhã não nascida de todo, acendeu um cigarro para assistir à fumaça dançando. Gostava daquilo. Pensou em Lara, sentiu que ia começar a doer, parou de pensar em Lara, olhou o anel azul e gris de fumaça a subir, pensou em Lara novamente, desistiu de parar de pensar em Lara, soprou uma vigorosa baforada contra a espiral que subia mansamente, gemeu, engoliu luz. “Caralho”. Levantou a cabeça, espiou o calendário, trinta de dezembro, calor filho da puta, anticlímax pós-festejos natalinos, o ano novo e bom chegando, tudo como sempre, caminhando dentro dos limites da normalidade. Acendeu outro cigarro. Uma fresta ridícula na janela deixava entrever um filete minúsculo de sol – a massa branca de fumaça pairando no ar nublava a vista. Nublante, olubnante, blumas & blumários. Lunar. Lara. Palavras. Soprou contra a fresta; a fumaça esparramou-se. Tão perfeita, tão aconchegante, tão esquecimento e candura, tão mansa e gentil. “Pros diabos”, pensou, “pro diabo essa cama morta, essa solidão paralisante, pro diabo a fumaça, o vazio, não esquecer, nunca”. Levantou-se, saiu, correu, enfrentou ônibus e distâncias, chegou suado, peito arquejante, à porta de Lara. Bateu. Bateu de novo. Bateu mais uma vez. Anticlímax.

Acendeu um cigarro, dançou com ele, expeliu fumaça, fez círculos delicados. “Foda-se”, sentiu.

[Marpessa]

Um comentário:

Anônimo disse...

Anticlímax, o verão é cheio deles...Circulo de Paixões, Amor à Queima roupa, Drugstore Cowboy...achei lindo.