segunda-feira, fevereiro 27, 2006

Quatro pedaços de sangue


Ele gozou sangue, e era como se não fosse nada, manteve o olhar indiferente dos que gozam e querem depois relaxar e derreter sobre uma cama, nada de mais, o preservativo cheio de sangue balançando suavemente na luz meio morta do quarto, essas coisas que adquirem um aspecto comum tão logo estejam inseridas em um contexto familiar, como sexo-cama-cigarro-conversa. Essas coisas, mas era sangue, estranhamente leitoso e com aspecto açucarado. Como se não fosse nada.


***

Ela atravessou a rua sem olhar, foi pega por um carro, ficou estendida no asfalto por quinze minutos, foi resgatada e levada a um hospital. Acordou no asfalto cinzento, pintado de vermelho. A rua barulhenta, as pessoas flutuando acima de sua cabeça. Pensou em café com bolinhos de chuva. O cheiro da chuva gelada. Incômoda pancada nos quadris. Natural que fosse assim, tão estranho e cinzento. Acordou no asfalto.


***

A vida é de mentira. Pensou nisso como título para uma história. A vida é de mentira, verdade, é mesmo. Já não podia mais esperar, precisava fazer aquilo rápido porque tantas coisas, tanta névoa. O hoje, fantasia boba do ontem, ah, quanta ilusão. Não seria mais do que um pedaço ínfimo de dor, se comparado a todas as outras dores, essa coisa de viver, que dá tanto trabalho, nós flutuando entre o animal e a deidade, nós, um simulacro de coisa alguma. Um tiro, escuro, sangue no chão, acabou. Acabou.


***

Carregava nos bolsos uma pequena mulher, de cerca de nove centímetros. Conversava com ela sempre que se sentia solitário. A mulher só ouvia, e às vezes fazia um movimento quase imperceptível com a cabeça – nunca se sabia se era um “sim” ou um “não”, mas isso não era o mais importante. O passado era vermelho e cheio de culpa. Hoje, não: a mulher vivia dentro do bolso. E fazia que sim, fazia que não, com a pequena cabeça loura.

[Marpessa - minha última colaboração ao Aquele]

Um comentário:

Rafael Mafra disse...

Ei, muito bom, gostei do lugar, dos textos! Foi uma amiga, Erica Szuster, quem me falou. Tomo a liberdade de adicionar o endereço nos meus links, certo? Qualquer problema é só falar. Se puder, passa lá >> http://canetas.blogspot.com
O layout é o mesmo e também há textos por lá!

Por enquanto só li até aqui, nos "Quatro pedaços de sangue", mas voltarei!

Até logo!