quinta-feira, novembro 02, 2006

Uma borboleta branca

Com olhos úmidos, o velho observava o nada, parado e frio como um peixe. Havia certa palidez nas coisas, no verde das folhas nas árvores, na parede cinzenta da igreja, no rosto dos passantes ocasionais, nas asas sujas das pombas que bicavam o chão, rodando pela praça à cata de comida. Um ou outro pássaro cantando bem longe, de tempos em tempos. O velho, e o nada, o céu encardido de tristeza, tão morto.

Uma angústia funda, uma ferroada, afligia o velho naquele instante. A solidão, a grande distância intransponível, independente da vontade. Quase não podia suportar. Ao redor dele, a mesma igreja, o mesmo sino soando a cada hora, os mesmos idosos solitários. Tarde de domingo.

Com o final do dia, as pombas recolhiam-se, fartas. A luz abandonava devagar o céu. Outros velhos levantavam-se e iam, sabe-se lá para onde, ou para quê. Em pouco tempo não havia ninguém na praça além do velho de olhos úmidos. Ninguém, nada, o fim de todas as coisas enquanto o sino anunciava tristemente as seis horas.

Quando as badaladas cessaram, e quando a última delas terminou de ecoar, o velho estava mais só do que jamais estivera. Chorou sem lágrimas, gemeu sem palavras, aprisionado nas dobras do tempo, incapaz de qualquer idéia além da desesperança, sentindo nas costas o sopro gelado do vento enquanto as coisas todas fugiam da noite que se aproximava.

Então, ele sentiu uma vibração tímida no ar, um deslocamento no espaço, quase como se não fosse real. Abriu bem os olhos: era uma borboleta branca, pequena e tonta, que voejava sozinha pela praça. Talvez tenha sido atraída pelo calor do corpo do velho; começou a dar voltas em torno dele, atrapalhada, como se fosse setembro. O velho ficou espantado em ver aquela borboleta solitária, dançando inutilmente. E dela não se desprendia nenhum som, nem mesmo do bater de suas asas.

O velho chegou a gostar. Achou-a até bonita. Depois teve raiva, porque ficou pensando que talvez – somente talvez – ela poderia ser a responsável por aquela quietude pesada e obscura que o rodeava. Em um ser tão pequeno habitaria uma síntese grandiosa do espaço-tempo, como se todos os sons do universo convergissem para ela, que os guardaria, sem saber, no mistério de sua aparição. Era um princípio, e era também um fim, ainda que fosse apenas uma borboleta branca e tola. Um dia, por certo, não haveria mais ninguém além dela, sobrevoando alegremente o fim do mundo.

Com um gesto lento, o velho estendeu a mão. A borboleta pousou com suavidade sobre a carne que lhe era oferecida de modo tão gentil. Com a outra mão, o velho cercou a borboleta. Apanhou-a. Ela permaneceu imóvel em seu pavor. Ele olhou-a de perto, muito de perto. Cheirou-a, sentiu seu peso que era nada, viu manchas amarelas, minúsculas, em suas asas brancas. E enfiou-a na boca. Mastigou-a, os olhos úmidos, o rosto ferido de lágrimas. Desse modo, descoberto o verdadeiro sabor do silêncio – que era de pó e pedra - , o velho levantou-se e partiu. Para onde, e para quê, não se sabe.


[Marpessa de Castro - última participação no Aquele (edição 10)]

4 comentários:

Anônimo disse...

(posso soltar a respiração?)

Anônimo disse...

eu adoro esse texto.
bom ler mais um vez.
:D

Anônimo disse...

Aos meus olhos,
Um belo texto.

Tamara Martins disse...

linda leve tristeza!