sábado, dezembro 02, 2006

Episódio do inimigo

Tantos anos fugindo e esperando, e agora o inimigo estava em minha casa. Da janela eu o vi subir penosamente pelo áspero caminho da montanha. Ajudava-se com um bastão rústico que em velhas mãos jamais poderia ser uma arma, mas tão somente um báculo. Custei a dar-me conta do que esperava: a fraca batida em minha porta. Olhei, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho não terminado e o tratado de Artemidoro sobre os sonhos, um livro um tanto anômalo neste conjunto, já que não sei grego. Outro dia perdido, pensei. Tive que fazer força com a chave. Receei que o homem despencasse dali; porém, deu alguns passos incertos, soltou o bastão (que não voltei a ver) e caiu vencido em minha cama. Minha ansiedade o havia imaginado muitas vezes, mas só então notei que se parecia, de um modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deveriam ser quatro horas da tarde.

Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse:

- A gente pensa que os anos passam somente para nós mesmo – disse - , porém eles passam também para os outros. Aqui nos encontramos, afinal, e o que aconteceu antes não tem sentido.

Enquanto eu falava, ele havia desabotoado o sobretudo. Sua mão direita estava no bolso do paletó. Apontava-me algo, e senti que era um revólver. Disse-me, então, com voz firme:

- Para entrar em sua casa, recorri à compaixão. Tenho-o agora à minha mercê e não sou misericordioso.

Ensaiei algumas palavras. Não sou um homem forte, e somente as palavras poderiam salvar-me. Consegui dizer:

- É verdade que há tempos maltratei uma criança, mas você já não é aquela criança nem eu sou aquele insensato. Além disso, a vingança não é menos vaidosa e ridícula do que o perdão.

- Precisamente porque já não sou aquela criança – replicou – é que tenho que matá-lo. Não se trata de uma vingança, mas sim de um ato de justiça. Seus argumentos, Borges, são meros estrategemas de seu terror para que eu não o mate. Você já não pode fazer nada.

- Posso fazer uma coisa – respondi.

- Qual?

- Acordar.

E assim o fiz.

***

O sonho de Macário

Sonhou São Macário que caminhava pelo deserto quando encontrou uma caveira e que a tocou com seu báculo. Pareceu-lhe que ela se queixava e ele perguntou quem era. “Eu era um dos sacerdotes idólatras que habitavam este lugar; tu és o Abade Macário”. Acrescentou que cada vez que Macário rezava pelos condenados, estes experimentavam algum consolo: todos estavam mergulhados e enterrados num fogo infernal a uma profundidade semelhante à distância que vai do céu à terra, e não podiam ver-se; porém, quando algum piedoso se lembrava deles, conseguiam vislumbrar-se vagamente; e o horrendo espetáculo fazia com que se sentissem menos sós.

(Vidas dos Padres eremitas do Oriente)

[Jorge Luis Borges, in Livro dos Sonhos]

Um comentário:

Anônimo disse...

Posso imaginar... Vc lendo borges e tendo um surto de idéias!!! Acho que ler é correlativo de escrever... Vc não acha? Ou nada a ver? beijinhos...