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De onde estavam, podiam avistar toda a paisagem. Era alto ali. Pena que cheirasse mal, e não fosse pelas baratas mortas, seria bem mais divertido. As árvores embaixo estavam todas com flores cor-de-rosa e roxas, as copas se misturando. E sob cada árvore, uma sombra de musgo – porque o sol nunca batia. E, mesmo naquele lugar alto e malcheiroso, o sol só entrava um pouquinho, alguns raios em cada corredor pela manhã. Não foram construídos voltados para leste e oeste, e sim no sentido norte-sul, e por isso não esquenta nunca, é sempre, sempre úmido e meio frio, mesmo no verão. Tem umas torneiras e uns tanques também. Quando tem mais gente, sempre alguém vem lavar os vasos das flores, ou lavar as flores, e nunca ninguém explicou para quê lavar as flores também.
Vão descendo as escadas de pedra amarela.
_Cansou de ficar aqui?
_ Cansei, vamos passear?
Chegam ao térreo, quantas baratas!, ela diz. Continuam até sair e alcançar uma árvore.
_Por quê lavam as flores também?
_Eu não sei, minha filha. Acho que é para tirar as folhas.
_Para quê tirar as folhas?
_Para os cabinhos ficarem todos iguais. Deve ser isso. Vamos passear.
Ela gostava mesmo era de ver as casinhas. Olhar dentro delas, todas arrumadas, com pequenas mesas cobertas por toalhas rendadas e retratos presos às paredes de azulejo. Eram espaços pacíficos e plásticos, mas claro que ela não sabia disso naquele tempo, quando os dias andavam devagar e eram cheios de vida. Tudo o que ela podia adivinhar era que aquilo servia para alguma coisa. Pra quê fazem casinhas? E por quê tão arrumadas? Enxergava as flores artificiais; eram quietas e perenes. Jamais morriam. Não era mesmo um paradoxo? Ela não sabia o que era paradoxo.
Quando entravam ali, ela sempre queria alcançar logo a estátua do Cristo. Era muito grande, e estava pregado a uma cruz. Ela olhava com atenção. Tinha sangue e os olhos Dele eram muito, muito desolados. Aos Seus pés, velas já derretidas e algumas ainda acesas. Tocava os pés, os pregos, as pernas; membros frios. Eram tão tristes.
_Ele sempre estava triste daquele jeito?
_Sim, sempre. Ele morreu triste.
Dependendo do lugar, havia pouco espaço entre um túmulo e outro. Ela subia por cima deles, mas sabia interiormente que era falta de respeito e se arrependia. Só que a memória das crianças é volátil, apesar de guardar coisas incríveis que só serão lembradas na idade adulta, e ela sempre se esquecia de que não deveria pular sobre os túmulos. Se avistava um gato, precisava correr atrás, era importante que o fizesse, mesmo que não conseguisse agarrá-lo. Por isso tinha que pular os túmulos.
Logo depois do local onde as pessoas costumavam acender suas velas – um espaço quadrangular, de paredes altas e enegrecidas pelo fogo que jamais deixava de arder – vinha o primeiro túmulo a visitar. É que lá estava o menino misterioso. Um menino que não era da família mas fora colocado ali, um favor feito aos pais dele.
_E por quê não tem fotos da vovó nem do vovô aqui?
_Não quiseram colocar...Eles não tinham fotos.
_Então ficou só o Peter?
_Sim, só o Peter.
Olhos escuros, só um menino. Que idade poderia ter? Qualquer idade. Era bonito, o menino do retrato. E ela ficava pensando que agora mesmo ele era só uma caveira, ou será que ainda tinha carnes presas aos ossos? Não era certo que até ele ficasse feio e caveira. Só que ela também sabia que todo mundo ia ficar feio e caveira, até mesmo o seu pai e ela mesma. Aí segurava as lágrimas, porque era tão bobo ficar chorando, e se chorasse seu pai a levaria embora, e ela não queria ir.
_Por quê todos os retratos são ovais?
_Não sei, filha, ele respondia sorrindo.
_E por quê todos amarelos?
_Porque são velhos, muito velhos, e ficam mais bonitos. Vamos do outro lado?
Havia muitas estátuas para se ver. Algumas brancas, outras pretas, todas silentes, guardando seus mortos. Para isso estavam lá. Muitos anjos, mulheres chorando, santas e Cristos pálidos, monges calvos. E sob cada um deles, havia uma sepultura erigida com maior ou menor capricho. Tinha pena das que não tinham nada, nem cruz, nem estátua, e eram só terra e mato. Ficava ainda mais penalizada se havia daquelas flores falsas encardidas enfiadas em um vaso de pedra, condenadas a jamais habitarem um jardim. Feitas somente para ser uma cópia ruim da realidade. Essas flores não conversavam nem bebiam água.
Sabia ler, e lia muito bem. Então ia decifrando os nomes, e as datas em que nasceram e morreram. Alguns estava ali há bastante tempo. Outros haviam acabado de chegar; havia coroas de flores frescas enfeitando lápides recentemente abertas e logo fechadas. Um enterro era como um almoço: muito tempo para prepará-lo, quinze minutos para o ato propriamente dito, e depois a digestão lenta e incômoda.
Não doía? Era um pouco doloroso, sim. Afinal, gente morta. Era esquisito. Mas ela não perdera ninguém ainda, ninguém próximo, havia o John Lennon, lembrava-se do mês em que o haviam assassinado, tempo de calor, e todo mundo só sabia falar disso e em todo lugar era só aquela música que soava como um lamento fúnebre e que até ela, com cinco anos, sabia cantar. Mas ela não fora ao enterro do John Lennon e nem mesmo parecia que ele havia morrido, porque havia fotos dele em revistas e imagens na televisão. Quem morria era aquela gente da guerra do Irã e do Iraque. Esses morriam mesmo porque era uma guerra com bombas e tiros, e no jornal da noite diziam. Era uma guerra que nunca acabava.
Aí correu atrás de outro gato. Era como perseguir a sombra: completamente inútil. Só que, perseguindo o bichinho, viu ao longe um bando de pessoas; um enterro. Ficou muito animada. _Vamos ver, pai? Vamos ver o enterro, por favor, por favor!
_Não, não podemos ir ver o enterro de quem não conhecemos!
_Ah, que droga...Ah, vamos, vai! Ninguém vê a gente...Eu quero ver!
_Não podemos. Fique olhando daqui mesmo.
_Então me pega no colo!
Ficou assistindo de longe, mas não dava pra enxergar quem estava sendo levado. Só via o bando de gente andando, e uns quatro homens que carregavam um caixão. Só isso. Queria ver colocarem o morto, queria ver enterrarem, porque não sabia como era. Será que jogam o caixão no buraco e depois cobrem de terra? Não sabia direito sobre as gavetas. Ou melhor, sabia que existiam porque ficava espiando dentro dos túmulos, pelas gradezinhas, e enxergava as repartições que pareciam prateleiras de armário. Só que não entendia muito bem; os caixões entram ali, pai? Sim, estão ali, os coveiros colocam e depois tampam com cimento e tijolo. Ah, bom.
Às vezes morria um bebê. Era ruim quando morria um bebê porque a mãe dele deveria ficar muito triste. Não deveriam morrer.
_Por quê Deus deixa os bebês morrerem?
_Ora, porque todo mundo deve morrer um dia, não importa se quando é bebê ou quando for velhinho. Os bebês ficam doentes e morrem, ou se viajam de carro e sofrem um acidente também morrem, ou se caem do colo... Entendeu?
Dois anos mais tarde veria um bebê morto; estava azulado, e era seu priminho. O pai do bebê beijou a testa dele, mas não pôde acordá-lo. E ela sabia que antes, bem antes de ela nascer, dois de seus irmãos haviam morrido bebês. Por isso não gostava quando os bebês morriam. Não era justo; por causa disso, ela não tinha irmão nem irmã.
Estava ficando frio, e tarde. Logo fechariam os portões; precisavam ir embora. Ela não queria, mas o pai sugeriu que comprassem biscoitos na saída. O céu ficou vermelho e uma luminosidade rósea deitou-se sobre tudo com uma solenidade aveludada e macia, não desejando incomodar as coisas desse mundo. Ela sentia-se bem em estar viva; não queria que a deixassem ali, sob a terra úmida, sozinha e sem os seus brinquedos. Sentiu pena de si mesma, mas nada disse. Ficou cismando com o olhar, tentando distrair-se, desviando o pensamento daquela imagem de si, criança morta assistindo a seus parentes irem embora, dando-lhe as costas, todos para suas casas quentinhas enquanto ela permaneceria, sentada sobre o túmulo cor-de-rosa, vestida com roupinhas de boneca. Pelo menos Peter estaria ao seu lado, também sozinho em sua dor, mas ao seu lado. Brincariam juntos pelas alamedas, de mãos dadas, e perseguiriam os gatos, e colheriam flores de mentira, e entrariam nas casinhas. Brincariam de tomar chá sentados nos banquinhos, a toalhinha rendada. Ele se cansaria logo e ficaria perscrutando o vazio com seus olhos escuros, sua pele sépia como no retrato. Ela saberia por quê: ele havia morrido antes dela e estava mais apagado. Haveria um retrato dela no túmulo; queria que também fosse amarelo.
Ela adorava comprar biscoitos, mas por causa do vendedor. Tinham quase o mesmo tamanho. Mas era um adulto, um tipo indígena, de olhos biliosos, sempre com uma imitação infeliz de sorriso. Com as mãos rústicas, apanhava um pacote; ela não entendia porquê, mas incomodava vê-lo, e quanto mais incômodo, mais ela queria. Também incomodava ver o pai procurando o dinheiro na carteira, e entregando ao anão, que o apanhava agradecido. Ela entendia que era pouco aquele dinheiro, e que, para que o anão conseguisse viver, era preciso muitos daqueles pais com menininhas. Por quê vender biscoitos na porta do cemitério? Quem compraria? Só crianças, pensava. Mas ela nunca via outras crianças ali. Tinha a certeza de que o anão era pobre e triste, porque seus olhos eram tristíssimos, e aquele sorriso era muito doloroso. Cara bovina e cansada, e se ela conhecesse a palavra naquele tempo, diria que era uma cara resignada. Era assim que ela sentia, enfim, aquilo que os adultos chamam de depressão, de tédio, de vazio, de mil outros nomes diferentes e que são uma coisa só.
Foram embora, descendo a rua calma e morta de domingo. Ela e seus biscoitos, no céu de outono os hematomas; mãos dadas e carros antigos, rua e poste, estátuas que ficaram para trás, boa noite aos anjos que adormecem em suas pequenas casas. O vento esfria ainda mais e ela sabe que aquilo não ia mesmo durar. Vê que cedo ou tarde vai morar lá, com os anjos e os gatos ariscos. É o que vê: um dia vai chorar. Um dia, vai doer. Muito em breve. Nada será como antes daquele instante de compreensão.
[Marpessa]
Um comentário:
É preciso que algumas pessoas te conheçam...que venham aqui e bebam do mel, do fel, da cicuta.
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