segunda-feira, agosto 23, 2004

De dentro de mim fluiu um pensamento que se transformou em ruído triste e profundo. Eu conseguia suportar minhas próprias dores existenciais pensando nas dores dos outros, mas isso sempre me pareceu conversa fiada, de qualquer forma. As dores dos outros pouco importavam porque eram dos outros, e não minhas, eram para os outros e não para mim, eram suportáveis na mesma medida em que as minhas também o eram. Quando isso chegava se arrastando da parte inconsciente no fundo do meu cérebro para a parte onde havia um pouco de luz, eu pensava com intenso desagrado: nada mais faz sentido. E nesse instante de revelação é que o pensamento se transformava em um ruído triste e profundo. Profundo porque vinha de uma zona que me era desconhecida, e minha própria voz tornava-se absolutamente inédita para mim. Eu não podia admitir que aquele som partia de mim, tal a estranheza.

Pensava em meu nome e via o quão rara eu deveria ser. Se aquele nome quisesse dizer alguma coisa, era: você está fora, definitivamente. Você não é o que você imagina ser, e também não é o que não imagina. Você é nada e alguma coisa indescritível. Está se observando sob o ponto de vista do comatoso, que abandona o corpo e assiste, do alto, à toda a movimentação no quarto, os médicos, o parente aos prantos segurando uma mão mole e resfriada pelo súbito estertor da morte. É assim que você se enxerga. Fora do contexto, fora da realidade alheia, fora até mesmo da própria realidade. Tudo parece ficar pequeno diante da grande questão que você tem agora para deslindar: o que diabos é você? Para quê você serve? Qual o propósito de você estar aqui? É estranho, mas a verdade é que havia um propósito, assim como havia um excelente motivo para as baratas terem sido criadas pelas misteriosas forças do Cosmos. Dessa forma, eu achava que era uma questão sobre a qual seria necessário, senão vital, refletir. Quando a questão se impõe, é impossível evitar que se torne a coisa mais importante da sua vida. É imensa a força com que ela invade sua alma e a carrega para bem longe, para o fundo de um baú desagradável cheio de lembranças, lembranças de vida e de fim, reminiscências de falhas, de outras crises, de lágrimas que não vieram no momento certo.

A sensação de estar fora por causa de um nome, ou de uma particularidade que só eu conhecia, me obcecava ao ponto de eu não querer pensar em mais nada. Estava convencida do fato de que jamais seria como qualquer outra pessoa. Cogitava se outras pessoas também se deparavam com tais questões. Se as pessoas que estavam acostumadas a ouvir seus nomes repetidos por toda a parte também compartilhavam da mesma estranheza. Se aquilo acontecia comigo porque eu tinha algum problema de ordem psicológica, uma psicose qualquer, como a síndrome da simetria mórbida, outra coisa com a qual estou perfeitamente familiarizada. Seria isso outra síndrome? Seria grave? Evoluiria até o limite das minhas fibras nervosas? Eu nunca pude responder a isso, e creio que a descoberta levará ainda algum tempo. Na velhice as coisas devem se aclarar.

Eu nunca fui como os outros. Mesmo que eu me esforçasse muito. Mesmo que eu tentasse. Em algum momento uma verdade que eu desconhecia acabaria subindo à tona e tornando-se evidente até para um cego. Nesse ponto os olhares convergiam todos para mim, ou melhor, para a tal verdade anteriormente submersa. Eu estava, então, em uma situação de completo abandono, da solitude definitiva, na maior de todas as escuridões, porque estaria sozinha, nua diante do carrasco, impotente mesmo para chorar, sem desperdiçar um mísero movimento que fosse, o medo de estar deixando a vida fugir para dentro de cada um dos vampiros, das feias sanguessugas que exaltavam-se diante da realidade despida. Devoravam-me em um segundo, e depois esqueciam-se de mim. Os olhos estranhando o que viam, os ouvidos se negando a ouvir, testas franzidas denotando um discreto desconforto travestido de estranheza - mais pueril, mais aceitável pela fera que está sendo analisada, virada do avesso pela consciência alheia, julgada e condenada ao degredo. Tudo em um pequeno segundo. Uma revolução esquecida no instante seguinte, como um pedaço de papel atirado de uma janela em um edifício em chamas.

Ao ser nomeada, chamada, considerada, estava sendo vilipendiada do meu verdadeiro eu. Estava sendo atacada por antropófagos e sentia isso em cada célula do corpo. Um arrepio percorria minhas costas de um ponto ao outro na velocidade de um pensamento ruim e então eu sabia que nada voltaria a ser como antes daquela cerimônia macabra, da qual eu tomava parte mesmo sem querer, mesmo relutando, mesmo sofrendo com isso. Jamais me fez bem ser assim. Sempre doeu não estar em lugar nenhum, ou não conseguir firmar o pé em alguma ilha, algum pedaço de terra que parecesse firme e seguro. Isso porque, quando conseguia entrar em algum útero quente, um vendaval me arrastava para longe dali. Eu nunca mais tornava a ver aquele lugar. Eu não nutria nenhum sentimento especial por aquele lugar. Quanto mais longe o vendaval me carregava, menos parecia importar a distância ou o tempo. Eu estava fora, mais uma vez, e assim seria para sempre, até que minha vida acabasse.

E tudo isso me fez e me faz chegar à conclusão de que tudo é uma questão de natureza. De vivência. De nome de batismo, de maldição uterina, de maldição nas manhãs da escola, nas manhãs de vazio, nas manhãs cantadas pelos passarinhos. Tudo é história, caminho, nascimento, portanto, imutável e indiscutível. A única modificação visível e que pode ser considerada manipulável é o destaque dado pelas circunstâncias a certas características, formando um quadro muito, muito particular de si mesmo. Não se melhora ou piora; só se muda, gira, como imagens de caleidoscópio. Cada desenho formado não é melhor ou pior do que o anterior. Logo, que importa para que lado o caleidoscópio esteja sendo virado? O resultado parece de pouca relevância, até mesmo para aqueles que ainda esperam alguma coisa grandiosa de uma vida sempre e continuamente miserável e tão pouco regulada pelas leis que inventamos, insistimos em criar e destruir ao nosso bel-prazer e conveniência – tudo em vão.

[Marpessa]

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