Mas atravessando a ponte, com o sol se pondo, os arranha-céus brilhando como cadáveres fosforescentes, a lembrança do passado firmou-se.. Lembrança de ir e voltar sobre a ponte, ir para um emprego que era morte, voltar para uma casa que era um necrotério, decorando Fausto e olhando para o cemitério lá embaixo, cuspindo do trem elevado sobre o cemitério, o mesmo guarda na plataforma toda manhã, um imbecil, e os outros imbecis lendo jornais, novos arranha-céus subindo, novos túmulos onde trabalhar e morrer, barcos passando lá embaixo, a Fall River Line, a Albany Day Line, porque eu estou indo trabalhar, que farei hoje à noite, a fêmea quente ao meu lado e será que posso enfiar minha mão entre suas coxas, fugir e virar vaqueiro, tentar o Alasca, as minas de ouro, descer e virar as costas, não morra ainda, espere outro dia, um golpe de sorte, rio, acabe com isso, para o fundo, para o fundo, como um saca-rolhas, cabeça e ombros na lama, pernas livres; peixes virão morder, amanhã uma nova vida, onde, em qualquer lugar, por que começar de novo, a mesma coisa em toda parte, morte, morte é a solução, mas não morra ainda, espere outro dia, um golpe de sorte, uma cara nova, um novo amigo, milhões de oportunidades, você ainda é muito moço, você tem melancolia, você não vai morrer ainda, espere outro dia, um golpe de sorte, vai se foder de qualquer jeito, e assim por diante sobre a ponte, entrando na casa de vidro, todos colados juntos, vermes, formigas, rastejando para fora de uma árvore morta e seus pensamentos rastejando da mesma maneira...
(...) toda vez que passava lá em cima eu estava verdadeiramente sozinho e sempre que isso acontecia o livro começava a escrever-se, gritando as coisas que eu nunca murmurava, os pensamentos que eu nunca expressava, as conversas que eu nunca tinha, as esperanças, os sonhos, os delírios que eu nunca admitia. Se esse era o verdadeiro eu, então era maravilhoso e, ainda mais, parecia nunca mudar, mas recomeçar sempre a partir da última parada, continuar na mesma veia, uma veia que eu descobri quando, ainda criança, desci sozinho a rua pela primeira vez e lá, imóvel no gelo sujo da sarjeta, jazia um gato morto, a primeira vez que eu vi a morte e a compreendi.
[Henry Miller, Trópico de Capricórnio]
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