segunda-feira, agosto 23, 2004

Despertar

Deus, estarei sonhando? Não. Eu estive. Não dormi. Era bom e quente, era um espaço e um tempo além do real e de repente fez puf! e fui atirada na chuva. Foi bom e quente; durou pouco e muito. Não quis me mover, quem dera também tivesse sido impedida de escutar – mas tudo estranhamente ficou em silêncio por alguns instantes que foram horas e dias e eras no passado e no futuro.

Fechar os olhos e sonhar, sonhar, não deixar o mundo intervir. Não permitiria. Era escuro, um canto, uma volta em um arco-íris negro, uma escada rolante sempre descendo, dando voltas em si mesma, ânsias de vomitar, vomitar de prazer.

Eu quis morrer ali mesmo. Era denso e macio como a eternidade. Jamais tamanha sensação de conforto, jamais, todo mundo deve saber que nunca fora assim. Um ninho para pequenos gatos de orelhas também pequenas – gatos vermelhos.

Nunca, por minha própria vontade, abandonaria aquilo que era forte e robusto, uma árvore antiga na tempestade de milênios, sob o açoite do vento inclemente, e no entanto invulnerável e sólida. Petrificada em seu lugar, oferecendo vida e abrigo. Quis transformar-me em cipó e ali permanecer, acompanhando aquela existência lenta de dor e rigidez.

Tornei-me, em vez disso, o menor dos seres vivos. Desejei permanecer escondida em uma caixa de fósforos, e eu bem sei que poderia caber em uma, ali como estava, tão reduzida, tão à mercê de tudo, tão frágil. Porque sou frágil. Porque sou ainda mais frágil do que o mais humilde dente-de-leão. E também posso voar; basta que me assoprem com uma certa energia. Eu quis voar, eu quis derreter, eu quis acorrentar-me, por favor, acorrente-me, açoite-me agora com seus galhos, faça o que quiser comigo mas não permita que eu acorde, por Deus, não permita que isso aconteça, não agora, nem dessa maneira brusca como todos nós acordamos dos nossos sonhos noturnos.

E de súbito fui atirada na chuva. Com tanta força. Na mesma proporção e profundidade em que eu estivera mergulhada até aquele instante. Doeu e guardei as lágrimas para depois. Eu sei, não minta, não pode mentir, nem mesmo para mim: doeu? Eu sei, não preciso de respostas, eu sei porque estive perto demais para não saber. Algo se misturou à minha própria dor e a elevou até muito alto, naquela escada rolante rodopiando direto para o fim, o frio da chegada do inevitável, aquele sopro apavorante que antecede o final de todos os sonhos.


[Marpessa]

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