segunda-feira, agosto 23, 2004

Vejo o vento, atiçando a alma das árvores, empurrando nuvens, lavando o céu - mas não o sinto. Tu encolhes o pescoço no casaco para te defenderes dele. Se ao menos eu pudesse dominá-lo, por um segundo que fosse, dar-lhe a forma dos meus dedos mortos e acariciar-te lentamente esses fios brancos, desordenados. Persigo-te para que o tempo exista. Porque andas, e olhas o céu, e o encontras às vezes negro, ou cintilando como um escuro mar de jóias, ou chuvoso, ou ressequido de sol, sei que os dias passam.

Mas sei cada vez menos. De repente, o passo torna-se-te elástico e és o meu primeiro namorado, de rabo de cavalo, procurando constelações novas num firmamento longínquo. Não consigo ver os contornos desse rapaz no tempo do meu amor por ele, de cabelo curto, e sempre vestido de preto. Mas acontece-me uma vertigem instantânea sobre os corpos amados, acontece-me ter-te diante de mim com o olhar, o gesto, o passo de outros que amei de outras maneiras. Ah, se esta vertigem me tivesse sido dada em vida, até onde eu poderia ter ido. Abre um livro, por favor.

Podemos amar no escuro, sim, podemos amar na luz sonâmbula da ausência, podemos tanto que inventávamos Deus. Tu dizias que Deus era o teu personagem de ficção favorito. Mas não querias entender que os personagens de ficção existem tanto como tu.

[Inês Pedrosa]

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