segunda-feira, agosto 23, 2004

Também eu devo parecer morta aos olhos atentos de alguém. Também a minha vida pode estar presa sob uma crosta. Também eu pulso sob o magma resfriado, e a lava corre, é o meu sangue vermelho. Por fora, a rocha inerte. A máscara rígida, a expressão imutável de um rosto de Veneza.

Há mais do que inação. Aquele enxame que vem ao meu encontro, hora de ir, todo mundo seguindo em frente com muito afã, no desespero para morrer de verdade. Todos parecem desejar apenas isso - deitar-se para sempre e nunca mais ter de suspender seus corpos acima dos limites verticais de um caixão.

A vida transcorre em duas linhas horizontais e paralelas. Uma é o que nos acostumamos a chamar de "vida": rasa, permeável, volátil e insegura, é o que temos cotidianamente. É o piloto automático da existência, poroso e circunstancial. Outra, logo abaixo, é firme e constante, como se desenhada com uma régua. Não permite ajustes, pois abriga somente o que verdadeiramente importa, o Eu além de quaisquer paradigmas comportamentais. Abriga a alma, o cerne, o núcleo maçiço e perene. É aquilo que cada um pode ser; é a porção mais tenra e ao mesmo tempo a mais firme. E quase nunca vem à tona.

[Marpessa]

Nenhum comentário: