segunda-feira, agosto 23, 2004

Triste, em inglês

Enevoados são os olhos daquele que tem diante de si um desafio maior do que pode compreender. Enevoados são. Tristes, sem dúvida. Sombra que oculta o entendimento perfeito. Ignorância fabricada pelo cérebro de quem não vê.

O corpo pede arrego e ajuda, pede socorro, pede mãos fortes que o segurem e sustentem pelo espaço sem chão. Duro é encontrar, meu amigo, essas mãos de ferro. Duro é saber escolher dentre tantas mãos oferecidas qual é a mais forte e ao mesmo tempo a mais bela, pois nem sempre a mais bela é a mais indicada para um caso de resgate desta categoria.

E se um dia você virasse uma flor ou um crocodilo, depois de ser expelido pelo ânus de um bebê? E se um dia você quiser acreditar que isso é realmente possível? E se em uma bela manhã de primavera você amanhecesse como uma vaca ou uma couve-flor? Faria diferença para alguém? Faria diferença acreditar ou não na possibilidade disso acontecer fora de um quadro ou de um sonho? Não importa a crença, e sim o fato; não importa a estatística, e sim a causalidade.

Contrariando todas as disposições, conjugações e interlúdios, consegui amanhecer sem ter me transformado em uma acácia apaixonada ou em um cão sem pedigree. Só não sei que tipo de vantagem obtive em ter continuado como ser humano (talvez não fosse tão mau virar um cão sem pedigree. Pelo menos eu jamais conheceria a morte de uma maneira, digamos, mais metafísica).

Algum conluio universal mofa dos meus olhos castanhos sem que eu possa mudar a cor para verde. Eu moro dentro de uma televisão. Uma TV ligada não representa nada além de um olho-de-tv-sobre-mim. She got a TV EYE on me, e isso não é muito do meu agrado, especialmente quando estou tentando dormitar no sofá ou me masturbando diante de uma tigela de pipocas. Que importa qual antena maldita se eleva sobre os prédios daqueles que estão repousando? É a mesma antena que trará os mesmos sinais para dentro da minha cabeça atônita, porque eu moro dentro de uma televisão.

E a mesma televisão de riso histérico que escarnece da minha tristíssima condição é também a mesma que traz a névoa para minha vista. Os fabricantes de brinquedos da Malásia não ligam e, portanto, ninguém mais liga (segundo as leis das Correspondências Universais). Tudo termina em um imenso pote de queijo derretido no qual os ratos chafurdam, violentos e imorais. A televisão, na verdade, não existe. Ela não está aqui. Eu estou dentro dela, vivendo um certo veneno imbatível, angustiando-me um pouco mais a cada miserável segundo de cada miserável dia em cada miserável existência, dentre minhas muitas existências idiotas.

E o corpo continua clamando por socorro. Ele não consegue se calar porque as mãos me alisam, acariciam, evocando novos gritos e novos desesperos. Mas isso não é para qualquer um. O desejo é de ocultação do cadáver vivo que anda, trabalha, come, dorme, mija, toma banho, fabricado de acordo com as mais rígidas normas haitianas. Um poste seria um bom lugar para se esconder, se já não estivesse ocupado com todas aquelas pessoas desaparecidas que só reaparecem nos jornais, mas quem sabe ainda haja uma vaga? Não posso me esquecer de testar essa alternativa em meu próximo passeio ao sol.

Bem, parece que recuperei minha sanidade.

[Marpessa]

Um comentário:

Mônica Oliveira disse...

totalmente insano, inundado de sentido.