segunda-feira, agosto 23, 2004

Vomitando

Muito me apavora a solidão dos espaços infinitos que existem entre as pessoas e dentro delas. É assustador apoiar-se na beira do abismo e olhar para baixo, enxergando um nada, um grande nada circundado por tênues resquícios de luz. Todos andamos cegos tateando no breu, feito almas no inferno, procurando, chocando-se e pedindo desculpas, sobressaltando-se com qualquer forma de contato, assombrando-nos o incrível medo de descobrirmos, finalmente, alguma coisa. Porque ainda mais tenebroso do que navegar pela solidão do escuro é tocarmos em algo que não podemos ver, e mais ainda, não conhecemos. Sentimos a forma, a temperatura, as texturas, e ainda assim, por não ser nada do que povoa nossas mentes acostumadas aos falsos brilhantes existenciais, encolhemo-nos com medo, e tentamos com todas as forças fugir e vazar nossos olhos e perfurar nossos ouvidos, amputar nossas mãos, anularmo-nos, anularmo-nos em nome do que é conhecido, deixando para trás e no limbo do desconhecimento aquilo que permanecerá irrealizável, irreal, e é como gostamos. No mundo em que eu vivo, dentre as pessoas que conheço e reconheço, dentre as relações, os fatos, o tempo e os deslocamentos espaciais dos quais me sirvo diariamente para viver e seguir em frente, noto nas entrelinhas as extraordinárias possibilidades jamais possíveis; a galáxia de mitos, de imagens falsas, de engodos engendrados com displicência e inconsciência. Nós, cartas de um baralho gasto e seboso, caminhando em duas dimensões quando existem tantas inexploradas... Entrevejo nos rostos as cores da mentira, de todas as mentiras, o cerne de toda a confusão, de todo o gelo fino e cinzento que recobre a superfície de um lago denso e frio. Estamos encapsulados em um estranho jogo, cuja regra de ouro é FINGIR, engendrar máscaras, capas, capotes, algemas, luvas, vendas, tampões ginecológicos, mordaças, e mantermo-nos ocultos sob todos estes acessórios para protegermos nossas preciosas existências de todo o mal decorrente do desconhecido.

É o mal social global, não importa que estejamos ao sul do Equador, agraciados pela bênção do sol, incitados em nossas naturezas primitivas a sermos reais e não espectros, a sermos de carne e ossos e sangue, e não caldo de repolho. Estamos aqui contaminados, nessa pobre América dos Países Baixos, por uma herança indigna da grandeza de nossos antepassados. Contaminados pelo frio dos colonizadores. Contaminados pelas doenças que trouxeram, pelas doenças do corpo e da alma, contaminados e condenados a sermos cada vez mais iguais, porém sem ultrapassar os limites do arremedo, da imitação, tornando nossas vidas sempre uma espécie de nuvem que engolfa em seu caminho tudo o que pode haver de pior – esponjas atiradas no esgoto, mais precisamente. Estes tempos, que tempos, meu Deus! Que tempos. Seguindo as leis do retorno, os ciclos históricos, vivenciamos nós, pobres homens e mulheres do terceiro milênio, a alvorada da escuridão. Mergulhamos a cada segundo, a cada notícia, a cada crença derrubada ou erigida, a cada parto e morte e sono e câmbio e falência, a cada estúpida declaração na tv, a cada momento na Grande Rede, a cada linha ou letra ou número, a cada queda de energia, a cada beldade, a cada fealdade, a cada sintoma de ódio, fé, desespero ou desconforto – mergulhamos todo o tempo e para sempre, pelo resto das vidas de quem lê isso e de seus filhos e netos¸ na Idade das Trevas. Conhecimento em demasia gera ignorância em demasia. Vamos abolir o estudo do Medievo dos livros, porque não é mais necessário e urgente do que estudar este tempo de agora, aqui bem onde estamos, o novo Medievo, até que as forças superiores decidam acabar com tudo e voltar à prancheta. Esta Idade das Trevas será ainda maior, mais forte, mais negra, mais devastadora do que qualquer peste. Deixemos os ratos de lado, pois temos o homem, e o homem, em toda sua terrível força, encaminha este mundo e esta sociedade terrestre para o fundo do rio... Nunca se viu tamanho esforço empreendido por uma raça para acabar consigo própria e garantir que não haja possibilidade de sobrevivência. Alguns estão querendo escapar pela tangente, querendo voar para outros mundos, querendo habitar estações no espaço. Outros esperam, os pobres coitados, serem despertos de um estado criogênico para um novo mundo, melhor, mais justo, etc. Esperem em suas cápsulas. Esperem como múmias. Quando a justiça for finalmente feita, isso significa que não haverá mais mundo, tampouco países tropicais de águas azuis e terapêuticas. Não haverá mais nada, porque estamos diligentemente devorando feito traças toda a nossa esperança. Essa raça feita de pessoas herdeiras da doença crônica de todas as sociedades e de todos os milênios desde a sopa primordial, essa raça não está apta, nem cientificamente e muito menos espiritualmente, para salvar-se. É como querer ver Deus e depois tentar escrever a respeito: não podemos porque não temos elevação anímica nem capacidade física para tal. Nossas mentezinhas, que julgamos tão avançadas, e nossas almazinhas, que cremos tão esplêndidas, estão manchadas irremediavelmente pelas fezes de trilhões. Estamos sujos, completamente maculados, e este sim é o Pecado Original do qual não podemos nos redimir com algumas gotinhas na cabeça e o sinal da cruz. Somos os maiores pecadores de todos os tempos; somos o erro bem acabado, o topo da civilização, vorazes predadores autofágicos, os mais eficientes canibais de que se tem conhecimento. É impressionante como pudemos chegar a tal estágio. Impressionante como a evolução é perversa, em todos os sentidos. Impressionante como, tanto aqui como acolá, é sempre mais do mesmo. E aqui neste país, tão difícil de definir e categorizar, estamos ainda mais sujeitos a todo tipo de resíduo. Somos mais permeáveis, mais maleáveis, e nossa personalidade enquanto povo é fraca, fraca, porque trata-se de uma mistura que não teve tempo de maturar antes de ir para o forno. Um bolo cru, é o que temos. Um imenso bolo de queijo com seus vários buracos vazios, cru e começando a apodrecer antes mesmo de ficar pronto. O que é uma pena.

Este pobre país, esta pobre gente que é cozinhada diariamente pelo sol e depois esmagada feito as batatas do purê, é fruto de erro, involução e globalização. Essa pobre gente foi gerada pelo ódio, pela maldade, pelos interesses, pela bestialidade européia; pela servidão e pelas lágrimas e rancor dos negros; pelo aturdimento e impotência dos donos da terra diante da invasão sem misericórdia. Nós, os herdeiros, não crescemos orgulhosos. Não sentimos palpitar o verdadeiro sentimento de unidade nacional, porque cada um de nós é muitos, colados como um vaso remendado por uma criança. Nos assemelhamos mais a cavalos selvagens que por acaso pastam no mesmo descampado do que a um povo. Não temos identidade racial, nem em genótipo e muito menos em fenótipo. Isso é bom quando produz um resíduo artístico interessante, mas é só. Não tem nos ajudado. Nem por isso somos melhores ou piores do que outros povos, mas somos a síntese da potencialidade do vir-a-ser, que jamais virá-a-ser, para nossa desgraça. Estamos corrompidos desde o berço e ainda querem nos fazer crer que somos especiais, mas não somos! Apenas andamos como todos, com duas pernas e dois pés, sendo tão ruins, tão criativos, tão gananciosos, tão falsos, tão inteligentes, tão ignorantes quanto qualquer outro habitante deste vasto e intrincado mundo. Com a desvantagem clara de não sermos levados a sério, no fundo, porque não somos mesmo encarados com seriedade em quaisquer níveis. Pela polidez e pela economia, nos despejam cordiais saudações. Nem piores, nem melhores; animais estranhos. Temos os atrativos dos bonecos vudus haitianos, dos mares caribenhos, da cor exótica, da beleza feminina, do que é pitoresco, analisado com superficialidade com aquele olhar de turista, que se encanta com ninharias apenas porque não as conhece de perto, mas tão logo retornam ao conforto e à civilização fria que deixaram para trás, esquecem-se de nós. Ficamos na memória como um sonho arquetípico, de paraíso perdido, e não como gente de verdade. Aos olhos dos outros, estamos sempre tentando igualar-nos, e essas tentativas resultam em sorrisos condescendentes e uma indiferença constrangedora. Somos constrangedores enquanto país e enquanto indivíduos, por mais que existam dentre nós aqueles que merecem respeito porque ultrapassam as definições nacionais, porque são cidadãos do mundo em todos os sentidos, em suas conquistas e em seus pensamentos.

A dedicação do mundo à causa da morte e da destruição é mais um importante item do testamento, do legado histórico. Hoje, tudo parece ‘over’, superaperfeiçoado, especialmente esta inclinação tácita e palpável para o que é negativo, para tudo que contradiz os objetivos Reais, nos afastando cada vez mais de nossa verdadeira missão – que seria viver. Paradoxalmente, a destruição (democrática) do mundo como o conhecemos parece ser a única maneira de salvá-lo e mantê-lo vivo antes que o Sol se ponha para sempre. Como no Apocalipse, a redenção só pode acontecer pela aniquilação do antigo. O novo, o puro, só pode brotar sobre a terra limpa, cauterizada, lavada purificada. O fogo, a água, o sangue – no alvorecer do milênio, tenho a mórbida sensação de que nem mesmo para mártires servimos, apesar de nossos erros colossais, de nosso modo de vida irrefletidamente horrendo, de nosso cheiro. Creio que ainda não será desta vez, e que a raça humana terá pelo menos mais duzentos anos para superar-se na espantosa arte de fazer tudo errado.

[Marpessa]

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