segunda-feira, agosto 23, 2004

Inferno V

Altas horas da noite, despertei de repente à beira de um abismo nunca visto. Rente à minha cama, um abalo sísmico rachou a pedra escura que se desmoronou em semicírculos, deixando escapar um tênue vapor nauseante e uma revoada de aves negras. De pé sobre um pedestal de lavas, quase suspenso em sua vertigem, uma figura irrisória, cingida por uma coroa de louros, estendia-me a mão num convite à descida.

Dominado pelo terror noturno, recusei amavelmente, ponderando que todas as expedições ao fundo do homem acabam sempre em um vão e superficial palavrório.

Preferi acender a luz e me deixar cair, outra vez, na profunda monotonia dos tercetos, onde uma voz, que fala e chora ao mesmo tempo, repete que não há maior dor do que rememorar o tempo feliz na miséria.


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O Encontro

Dois pontos que se atraem não têm por que seguir forçosamente uma linha reta. Sem dúvida, é o caminho mais curto. Há, no entanto, os que preferem o infinito.

As pessoas caem umas nos braços das outras sem delinear a aventura. Quando muito, avançam num ziguezague. Mas, uma vez no rumo certo, corrigem o desvio e se juntam. Amor tão repentino representa um choque, e aqueles que assim se defrontarem são devolvidos ao ponto de partida como por efeito de um disparo. Projetados violentamente, sua trajetória de retorno os incrusta novamente, canhão adentro, num cartucho sem pólvora.

Vez por outra, um par se afasta desta regra invariável. Seu propósito é francamente linear, não carece de retidão prévia. Misteriosamente, escolhem o labirinto. Não podem viver separados. Esta é a única certeza que os possui, e terminam perdendo-a ao se procurarem. Quando um deles erra e marca o encontro, o outro finge não perceber e passa sem cumprimentar.

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Cavaleiro Desarmado

Não podia tirar aquelas idéias da cabeça. Mas, um dia meu amigo, o arcanjo, ao dobrar uma esquina e sem dar-me tempo sequer de saudá-lo, agarrou-me pelos chifres e, suspendendo-me com sinceridade de atleta, fez que eu descrevesse no ar uma cabriola (tour de force magnifique), e eu caí de bruços, cego pela dupla hemorragia. Antes de perder os sentidos esbocei um gesto de agradecimento para com o amigo que fugia, às pressas, desfazendo-se em desculpas.

O processo de cicatrização foi lento e doloroso, embora eu tentasse encurtá-lo lavando as feridas, diariamente, com um pouco de soda cáustica dissolvida em águas do Letes.

Reencontrei hoje o arcanjo, quando estou comemorando meu quadragésimo aniversário. Com uma estranha expressão, ele trouxe de presente os meus chifres, agora incrustados numa bela testada de veludo. Coloquei-os, num impulso instintivo, na cabeceira do meu leito, como um símbolo prático e funcional: esta noite, antes de dormir, dependurei neles todos os atavios da juventude.

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Liberdade

Acabo de proclamar a independência dos meus atos. À cerimônia compareceram apenas alguns desejos insatisfeitos, duas ou três atitudes condenáveis. Um propósito nobilitante, que prometera aparecer, enviou à última hora sua escusa humilde. A cena transcorreu num silêncio pavoroso.

Creio que o erro esteve na proclamação ruidosa: trombetas e sinos, foguetes e tambores. E, para culminar, uma engenhosa queima de moral pirotécnica, que não chegou a arder de todo.

No final das contas, achei-me sozinho comigo mesmo. Despojado de todos os atributos de caudilho, os confins da noite me encontraram empenhado na simples tarefa de escritório. Com os últimos restos de heroísmo, atirei-me à penosa incumbência de redigir os artigos de uma extensa constituição, que amanhã submeterei à assembléia geral. O trabalho divertiu-me um pouco, apagando do meu espírito a triste impressão do fracasso.

Leves e insidiosos pensamentos de rebeldia voam como mariposas noturnas em volta da lâmpada, enquanto sobre os escombros de minha prosa jurídica passa, de quando em vez, um tênue sopro da marselhesa.

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Gravitação

Os abismos se atraem. Eu vivo à borda de tua alma. Inclinado sobre ti, perscruto teus pensamentos, indago a origem dos teus atos. Vagos desejos se contorcem no fundo, confusos e ondulantes em seu leito de répteis.

De que se nutre minha contemplação voraz? Vejo o abismo e tu jazes na profundeza de ti mesma. Nenhuma revelação. Nada que se pareça ao súbito despertar da consciência. Nada senão o olho que, implacável, devolve meu olhar perscrutador.

Narciso repulsivo, contemplo minha alma no fundo de um poço. Por vezes, a vertigem desvia-me os olhos de ti. Mas sempre volto a escrutar a furna. Outros, felizes, detêm-se um momento diante de tua alma, e se vão.

Eu permaneço na margem, ensimesmado. Muitas criaturas se despencam do alto. Seus despojos surgem insignificantes, dissolvidos na satisfação. Atraído pelo abismo, vivo a certeza melancólica de que nunca irei cair.

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Post Scriptum

Com o cano da pistola contra o céu da boca, por entre o untuoso e frio sabor do aço escuro, senti a náusea incoercível que me produzem todas as frases feitas. “Ninguém...”

Não tenhas medo. Não colocarei aqui o teu nome, tu, a quem devo a morte. A morte melancólica que me deste há um ano e que, lucidamente, consegui aplacar para não morrer como um louco. Recordas? Deixaste-me só. Pugilista nocauteado em seu repouso, com a cabeça imersa num balde de gelo.

É verdade. Após o golpe, senti-me desfigurado, confuso, indefinível. E ainda me vejo caminhar tropegamente, atravessando a rua com o cigarro apagado na boca, até o poste em frente.

Cheguei em casa bêbado, com o estômago revolvido. Curvado sobre o lavatório, ergui a cabeça e me contemplei no espelho. Estava com um semblante de El Greco. De um bufão de Toledo. E não quis morrer assim. No trabalho de destruir tal máscara, todo um ano transcorreu. Recuperei minhas feições, uma a uma, posando para o cinzel da morte.

Há condenados que se salvam quando já a caminho da execução. Eu pareço um deles. Mas não pretendo salvar-me. Desfruto os momentos da espera com os rigores de estilo. E aqui estou, ainda vivo, traspassado por uma frase: “não culpem a ninguém...”


[Juan Jose Arreola, Confabulario Total]

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