quarta-feira, setembro 15, 2004

Como se passa ao lado

As descobertas importantes se fazem em circunstâncias e nos lugares mais insólitos. A maçã de Newton, veja só se não é coisa para a gente ficar espantado. Ocorreu-me, em meio a uma reunião de negócios, pensar sem saber por que em gatos - que não tinham nada a ver com a ordem do dia - e descobrir repentinamente que os gatos são telefones. Bem assim, como sempre com as coisas geniais.

É natural, uma descoberta dessas suscita uma certa surpresa, posto que ninguém está habituado a que os telefones vão e venham e sobretudo que bebam leite e adorem peixes. Custa tempo compreender que se trata de telefones especiais no sentido de que até agora não tínhamos compreendido que os gatos eram telefones e, portanto, não tínhamos pensado em utilizá-los.

Dado que esta negligência remonta à mais alta antiguidade, pouco se pode esperar das comunicações que conseguimos estabelecer a partir da minha descoberta, pois é evidente a falta de um código que nos permita compreender as mensagens, sua procedência e a índole daqueles que no-las enviam. Não se trata, como já se terá percebido, de tirar do gancho um tubo inexistente para discar um número que nada tem a ver com os nossos algarismos, e muito menos compreender o que do outro lado possam estar nos dizendo por algum motivo igualmente confuso. Que o telefone funciona, todo gato o prova com uma honradez mal correspondida por parte dos assinantes bípedes; ninguém negará que seu telefone negro, branco, cinzento ou angorá chega a cada momento com um ar decidido, pára aos pés do assinante e produz uma mensagem que nossa literatura primária e patética translitera burramente em forma de miaus e outros fonemas parecidos. Verbos sedosos, felpudos adjetivos, frases simples como estas mas sempre escorregadias e glicerinadas formam um discurso que em alguns casos se relaciona com a fome, em cuja oportunidade o telefone não é nada mais que um gato, mas muitas vezes expressa-se com absoluta prescindência de sua pessoa, o que prova que um gato é um telefone.

Preguiçosos e pretensiosos, deixamos passar milênios sem responder às chamadas, sem nos interrogar de onde vinham, quem estava do outro lado dessa linha que um rabo trêmulo cansou de nos mostrar em qualquer casa do mundo. De que me serve e os serve essa minha descoberta? Todo gato é um telefone mas todo homem é um pobre homem. Sabe-se lá o que continuam nos dizendo, os caminhos que nos mostram; de minha parte só tenho sido capaz de discar em meu telefone comum o número da universidade para a qual trabalho, e anunciar quase envergonhadamente minha descoberta. Parece inútil mencionar o silêncio de tapioca congelada com que a receberam os sábios que respondem a este tipo de chamadas.


[Julio Cortázar]


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