terça-feira, setembro 21, 2004

Difícil

É difícil mesmo, espero que você saiba. Dizendo assim parece conversa de taxista, a coisa está feia, preta, hoje chove, esse prefeito de merda. E é justamente dentro de um táxi, as gotas correndo histericamente pelo vidro, o mundo entortado, que vou pensando em quanto, no quão difícil é.

No começo tudo parece simples. Afinal, eu, senhora dos meus caminhos, estou firmemente plantada no solo com os meus ferimentos e as janelas fechadas, todos os meus sábios conselhos aos que são mais puros do que eu, dama altiva, envenenando esperanças, apagando-as como se apaga um cigarro em um cinzeiro de bar – sem cerimônia, sem educação, sem melindres. Eu, onde o começo e o fim de tudo parece ser algo delimitado, visível, concreto e sobretudo provável. Eu, que olho de um lado a outro e permito emocionar-me apenas porque sei que sou capaz, pobre diaba, de não emocionar-me seriamente com mais nada. Eu, brincando e jogando e perdendo, virando livros de capa a capa sabendo de antemão o que contêm, averiguando com completa descrença cada vislumbre de poço, depois dando de ombros porque já sei, já sei o que encontrar. E o que não encontrarei jamais.

Agora a chuva engrossa. Não há nada nítido do lado de fora do táxi. O motorista não é de conversa. Permaneço imersa naquele cheiro próprio de todos os táxis de todos os mundos. Encosto a cabeça na janela, que é o melhor jeito de pensar, mas você sabe (ou deveria saber): é difícil, mesmo assim. Porque tenho um pouco de pitonisa e por isso sei que quando estiver diante de você direi “decifra-me ou te devoro” e você temerá decifrar-me, preferindo antes me devorar com sofreguidão, daquele seu jeito doido que se esconde sob um manto roxo e blasé. A cada instante mínimo tentarei vomitar setecentas e doze palavras, todas elas querendo dizer, querendo ser a mesma coisa, irmanadas no destino de morrer na enseada de uma boca trêmula e morna.

Essa chuva que não pára. Essa maldita corrente de ex-suicida que carrego por onde quer que vá e que não me permite gozar da beleza das palavras fáceis. Porque, como já disse, é tudo muito difícil. O nó aumenta, o pescoço apertado como o de uma galinha a caminho da panela, aquela coisa que chamo de “coisa” só para ver se fica menos horrível, mas que na verdade tem nome próprio e é bastante feio, ou quem sabe lindo, nos limites do miraculoso, do epifânico, não sei, não sei, olhe que chuva e que difícil é estar aqui falando para o nada dentro da minha cabeça, negando com força, reagindo às artimanhas do pulso e do verbo.

Vem para mim o Cortázar, olhe, é terrível como chove, vem para mim porque por dentro dessa moça que chamo de Eu também está uma chuva que nem gosto de pensar. O chiado das rodas no asfalto encharcado vai me embalando, me vem um sono e um pavor de não mais acordar, curioso, me vem junto um medo de não mais ver seu rosto. Um chamado tímido: vem, vem para mim, você, por favor me beije agora.

Como é difícil. Está bem aqui, na enseada da boca. Enquanto você aproveita sua tranqüilidade, seu conforto interno, suas certezas todas, eu estou do outro lado da cidade, afundada em um táxi, sofrendo a maior das angústias, que é deparar-se com a dificuldade intrínseca das coisas absurdamente simples. As pessoas que moram nos hospícios usam camisa-de-força porque não suportam, precisam expandir-se para todos os lados, e ninguém as compreende tão bem quanto eu, nesse justo momento em que passo a aceitar a dor da impotência como algo natural.

O taxista liga o rádio. Por certo, incomodado com o meu silêncio. Rezo para que não seja nada assim escandaloso, nada daquelas canções populares que eu e você detestamos, nada que seja vulgar e macule o meu instante. Por sorte, a única estação que está pegando nessa chuvarada toda é erudita. Parece, você sabe, uma coisa de destino: é um tango. Quase saio de dentro das minhas roupas, quase quero cantar e gritar, mas em contrapartida a toda essa excitação um soluço seco agoniza em minha garganta. Tenho sede e um pouco de fome, mas sei que isso tudo não passa de um aviso e um pedido de socorro.

Sinto meus olhos ardendo em lágrimas e realmente não consigo enxergar a rua. A chuva é muito forte e a morte na enseada da boca é metálica como um bom tango. Astor Piazolla. Que hora! Coisa de destino. Tão difícil que subitamente parece fácil, plano, limpo, uma vereda aberta para que eu possa me derramar toda sobre você, com todas as letras. Mas... Você entende? Acho que sua carne é feita de rosas azuis, porque te vejo como algo tão absurdo e raro que nem posso pensar em tocá-lo sem acreditar estar violando uma estátua santa. Vê só? Essas coisas eu sei dizer. Você me chamaria de literata, poeta ou algo assim, mas eu responderia que não sou de nada, merda nenhuma, porque o mais fácil não sei dizer.

É melhor parar com isso. Estou chegando. Estou arrepiada. Tão nervosa que nem sei como vou olhar nos seus olhos e manter a calma, a civilidade. Outro tango. Quero dançar, quero esquecer que tenho coisas aqui morrendo dentro de mim, frutas que crescem rápido demais e que, por um capricho além da minha compreensão, apodrecem antes de amadurecer, o que é uma subversão vital. Nesse instante problemático, em que tenho que tirar dinheiro da carteira, dizer boa-noite ao taxista, descer do carro com minha bolsa e minha garrafa de vinho, abrir um guarda-chuva rosa e saltar definitivamente para a vida... Chega de pensar. Prometo: não vou apodrecer. Mas por favor, dê-me tempo, enquanto lutarei para manter-me fresca como a primeira flor que você colheu em meus jardins.


[Marpessa, 02/2004]

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