terça-feira, setembro 21, 2004

Travesseiro de flocos

Tenho a mais clara certeza de que ninguém jamais vai entender a maneira como nós conversamos todas as noites. Quando apoio minha cabeça no travesseiro e vamos conversando daquele jeito mental e suave, percebo que não há mesmo como explicar com as palavras do nosso idioma, e que não adiantaria pegar emprestadas as palavras de outra língua, viva ou morta, para executar tal tarefa.

Em nossas conversas parecemos crianças cheias de idéias. Vadiamos pelos vazios imaginativos que moram em nossas cabeças, flutuando imaculados por outras esferas, por círculos inefáveis, enrodilhados em sonhos alados. Um de nós pergunta e o outro responde; se a resposta não nos agrada, voltamos atrás e começamos de novo, e formulamos nova pergunta para engendrar novíssima resposta, desta vez mais adequada e sonora. O mundo então adquire aquela consistência de algodão doce, e logo estamos em um parque de diversões de filme americano, procurando pelo trem fantasma e torcendo para que a nossa conversa continue cor-de-rosa: você me compra um balão de gás e uma maçã do amor; eu te sorrio de volta com a boca melada de doce.

Quando vamos assim conversando, dessa maneira que é só nossa, não existe pensamento particular. Tudo é nós, querido, tudo é nós nos lençóis limpos, deitados que estamos, um observando a profundidade do rosto do outro e nos perdendo em tonturas estranhas, para depois traçarmos um caminho que nos traga de volta pela escuridão do quarto. Em nosso diálogo, estamos de mãos juntas. Se interrompermos a conversa, ouviremos somente o ruído dos flocos do travesseiro.

O ruído dos flocos do travesseiro, quase sempre, não me deixa dormir. Difícil ignorar. Por isso converso com você, e quando estamos conversando, imersos, não existe floco no mundo que seja capaz de interromper o fluxo da nossa conversa. Com os olhos abertos e cheios de escuro, aprecio sua coleção de gestos e sorrisos. Graças a este mesmo escuro, posso farejar seu cheiro escondido em alguma curva insuspeitada, como aquela formada pela nuca quando o seu pescoço gira quarenta e cinco graus à direita. Um perfeito lírio amarelo.

Enquanto conversamos, você sabe, gosto de enrolar algumas mechas dos seus cabelos nos meus dedos, porque eles têm uma cor inédita para mim. Tento inventar um nome adequado a essa cor; vou ouvindo você me contar sobre a sua vida antes de mim como quem ouve uma repousante e confiável canção de ninar. Fico louca porque não consigo chegar a uma conclusão; passo a chamá-lo de Gilbert e você fica bravo porque não sabe quem é Gilbert. Eu rio e mastigo as mechas. Então você pára de falar para desenroscar meus dentes dos seus cabelos.

Somos muito nostálgicos. Nos perdemos em recordações. Isso não parece estranho? Mal temos uma história. Caso nos perguntem, que diremos? Jogamos com palavras para que a existência nos seja leve, mas estamos sempre a um passo de quebrar um copo. Tomamos cuidado. Para nossa sorte, sempre podemos voltar atrás e apagar o erro, como se jamais tivesse existido.

Noutras vezes não saímos da cama. Curioso é que sempre estou deitada à sua esquerda, observando você meio sentado e meio coberto, as pernas movendo-se sob o tecido e criando elevações pontiagudas nos joelhos e nos pés. Acho interessante porque, ao mesmo tempo em que você fala sobre coisas aparentemente banais, move-se feito uma espécie qualquer de peixe raro. Deve ser somente minha imaginação. Ouço-o passar para as confissões; tudo soa tão natural quanto o rio chegando ao mar, sem sobressalto, as águas se misturando nesse ritmo de enguia que usamos tão bem para nos comunicarmos. É bom. Quase sempre reluto em mergulhar no esperado silêncio que nos ronda e nos chama todo o tempo. Mas é impossível resistir e logo sou apanhada em sua rede infalível. Nessa hora não ouço os flocos, porque ficam quietos, abafados por sons que se impõem com calculada intensidade.

Feito os sons do oceano.

Movo-me de um lado a outro da cama, mas prefiro ficar de costas para a parede. Surge diante dos meus olhos fechados uma série complexa de pontos coloridos, pequenos, que bruxuleiam ao ritmo dos ruídos feitos pelos flocos do meu travesseiro.

Eu aqui e você, amor, longe. Assim conversamos todas as noites.

[Marpessa, 02/2004]

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