quarta-feira, setembro 08, 2004

Em um cinema dentro de mim

Então é óbvio que Paco está vivo (de que inútil terrível maneira terei que dizê-lo também para me aproximar, para ganhar um pouco de terreno) enquanto durmo; isso se chama sonhar.
[Julio Cortázar, Aí, mas onde, como, in Octaedro]


Eu faço filmes. Sou diretora, roteirista e atriz. Também dirijo fotografia, edito, cuido do elenco e dos figurinos. É bastante trabalho, mas não tenho do que me queixar. Todas as noites eu os realizo com a minha imaginação e meu talento. Fazer filmes me distrai, embala minha consciência para um apagar suave e lento. Prepara-me para os filmes do sono, aqueles nos quais eu não mando nada, só obedeço as ordens de um diretor invisível e invariavelmente maluco.

Não saberia viver sem fazer os meus filmes. Na maioria dos casos, eles são feitos sem roteiros rígidos, apenas invento uma premissa, um ambiente e os personagens. Não é difícil; a imprevisibilidade relativa que consigo nesse sistema é muito instigante, porque permite uma liberdade que satisfaz completamente os meus desejos. Só que os meus filmes nunca acabam, porque eu me demoro nos meandros, vou e volto, penso e repenso, faço cortes e intercalo adicionais aqui e ali - durante a trama! E por isso meus filmes não chegam a acabar, de verdade. Na noite seguinte estou eu e o meu filme, recriando-o mais uma vez, e sempre sei que não será a última, e nunca sei quando será a última vez em que mexerei no meu filme. Uma bela noite qualquer, eu o abandono e é como se o atirasse ao lixo, porque nem mesmo consigo me recordar de quando deixei-o de lado.

Havia um filme que eu gostava muito. A ação se passava toda em uma casa, que era uma mistura de casas que eu conhecia, como quando a gente lê um livro e imagina o ambiente como algo conhecido, simplesmente não sabemos o porquê da escolha, e muito menos conseguimos mudar o cenário, mesmo que se passem anos entre leitura e releitura. Pois deste filme sobre o qual quero falar, a casa tinha dois quartos e uma sala grande e comprida, muito semelhante a uma casa em que uma determinada tia minha morou por longo tempo. Tudo acontecia sempre à noite, e pela madrugada. Havia música, de vez em quando, mas jamais consegui me decidir quanto à trilha oficial. Uma invariável penumbra resolvia os meus problemas de iluminação – eu usava a luz da rua, que entrava pelas frestas das janelas.

Neste filme habitam dois personagens: eu e Paulo. Na história, dividimos a casa. Somos amigos. Cada um tem seu par romântico, que por vezes, para criar corretamente as situações dramáticas, costumavam aparecer. Na verdade vivemos um amor platônico, que ainda não desabrochou. Não nos cremos enamorados. As pistas são constantemente negadas, mas o espectador vê a tudo: olhares maiores do que o necessário, pausas incertas, silêncios densos e críticos. Eu, por ser mulher, preocupava-me com a tensão anterior a qualquer resolução, desejando (segredos de diretora) que a resolução não chegasse para melhor poder mergulhar no drama que desenhava à força de imaginação e ânsia de amor. De amor, porque na vida real eu o amava.

Os roteiros sofriam bruscas mudanças a cada noite, mas o cerne era a descoberta da paixão. Havia uma discussão, às vezes. E outras vezes o mesmo filme se passava em vários dias e noites, os fatos dos dias se acumulando para engendrar os da noite, das noites em que passávamos absortos em pensamentos, um assistindo ao outro em sua falsa felicidade, um vestindo-se para um encontro, e o outro sofrendo calado por isso. Ou uma noitada de bebida e choro, muitos cigarros acesos nos momentos mais tensos, uma carícia nos cabelos e lágrimas enxugadas com dedos macios. Também era possível provocar, eu seminua caminhando de um canto a outro da casa, porque afinal somos como irmãos, Paulo assistindo a tudo e fingindo não se importar. Ele saindo do banho, toalha enrolada na cintura, penteando os cabelos de costas para mim, eu o observando firme, o torso branco e magro, ele vendo-me observá-lo do espelho e não compreendendo, ou não querendo compreender, mas sentindo um inequívoco prazer em ser observado.

Qual fosse a situação, havia sempre uma crise prestes a explodir. E sua explosão se dava da maneira mais passional e comum: o amor no sofá azul-acinzentado. Só que poucas vezes assisti a este final, porque depois dele não haveria mais nada além do normal dos casais que se unem. Quando alcançava este ponto, corria a imaginar a manhã seguinte cheia de constrangimento, de culpa, bons-dias carregados como nuvens de tempestade. Criava a perspectiva de ter mais uma equação a resolver, aproveitando para enfiar os pares românticos traídos (ignorantes do fato) bem nesse ponto, o que provocaria mais complicações para nós. Em meu filme, o amor não acontece, está por um fio de acontecer, mas não acontece. É uma possibilidade certa, mas os desencontros que eu criava tornavam o caminho sempre mais longo do que seria natural entre duas pessoas que se descobrem dessa maneira, da maneira como eu contava no meu filme.

E então um dia eu soube, tardiamente soube, que ele estava morto. Dia quente, eu acho, e me contaram entre um gole e outro de cerveja, como se não fosse nada, você ficou sabendo, faz tempo, uns dois anos. Após o choque das estrelas, o colapso, a alma rangendo em febres de luto atrasado, a confirmação, só então pude pensar que fazia filmes com um ator que já havia morrido. Deveria considerar a inutilidade destes filmes e não fazê-los mais, só que o hábito, a dor auto-imposta, dor necessária e gostosa de sentir, tudo isso preservou a minha carreira e minha determinação de fazer roteiros com o ator morto. Continuei para senti-lo mais próximo, dava-lhe vida, animava-o de acordo com a minha base de dados a seu respeito, não muita coisa, alguns encontros, umas pouquíssimas visitas.

Fiz um filme maravilhoso baseado em nosso último encontro e alterei o final. Para ser mais Hollywood terminava muito bem, com beijo e promessas, quando na realidade fora apenas um encontro de amigos que há tempos não se viam, encontro a três, devo salientar. Alguma bebida, muita conversa, risos, contentes os três por estarem juntos ali, depois o adeus acenado, ele ficou acenando de longe com aquela expressão de adeus para sempre que nunca me abandonou, e eu sabia, só podia ser o último dos encontros porque ele também sabia, fixei os olhos naqueles olhos dele que ficaram tão estranhos, tanto notei isso que fiz um comentário, “que cara estranha a dele, você viu?”. Este o verdadeiro filme, só que muito europeu, e verdade seja dita, não gostamos de filmes europeus se intrometendo em nossas vidas assim, o tempo todo.


[Marpessa]

Nenhum comentário: