quarta-feira, outubro 20, 2004

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Hoje é o último dia. O sol nasceu tão vermelho como sempre, depois amarelando, clareando o céu. Uma destas manhãs em que nos perguntamos o porquê do dia não ser verde-água, tem o azul e o amarelo, por quê? Os pássaros cantaram como sempre, sacudindo-se na rotina de ser pássaro e ter de cantar para espantar a noite. E como sempre, as pessoas despertaram para os banhos e para o café, os carros e seus motores, os bons-dias e o trabalho sobre a mesa. As pessoas constróem o último dia como todos os outros dias.

Alguns, no entanto, permaneceram quietos, ouvindo os ruídos de fora. Quietos em suas camas, enroscados em amores, sonhos, ressaca, silêncios. Faltas e falhas. Ou preenchimento total. Olharam pela janela e ficaram a ver as flores do canteiro, as borboletas. Outros riscaram inutilmente nomes e rostos no espelho. Alguns quedaram-se tristonhos sobre suas xícaras, mastigando torradas murchas com estudada e contemplativa lentidão.

Tudo se seguiu como sempre, naquela seqüência de fatos e de acasos e de ausências e pensamentos e gestos. Tudo como nos dias em que se vai para o banho, o café, os bons-dias, os carros e seus motores, o trabalho sobre a mesa. Tudo como quando se fica mergulhado em cama, amor, borboletas e torradas, rabiscos em um espelho embaçado pelo vapor de um banho como nos dias em que.

Não parece ser o último dia, mas sim o primeiro.


[Marpessa]

Um comentário:

Anônimo disse...

Gostei bastante do seu texto. Imagens legais, ritmo adequado ao tema. Mas eu sou suspeito: tenho predileção por textos dessa natureza... (hehehe!)
Um beijo.
Ricardo Miyake (viu, eu apareço aqui...)