sábado, outubro 16, 2004

Heroísmo antropofágico

Chega o dia em que ao herói só é dada uma única saída honrosa: alimentar-se de si mesmo. Tal tarefa não é simples, não apenas pelas óbvias limitações psicanalíticas, mas também porque ao herói é concedido o benefício (?) da dúvida. Ele não sabe se é melhor perecer com a naturalidade de um homem ou tornar-se fagócito de si, alquebrando-se em centenas de partes e, dor das dores, sentir o gosto de cada uma delas para então tornar a nascer.

A dúvida, esta varejeira azul que sobrevoa com especial prazer as feridas mais sujas, atormenta o herói à beira do abismo e traz consigo uma necessidade quase animal de compreender o porquê de estar ali e de ter apenas uma única saída (desde que opte por defender sua condição).

Se por misericórdia os deuses acudirem, o herói então entenderá que nada é mais epifânico do que vivenciar este paradoxo final: perecer alimentando-se de si para depois regurgitar-se. Dar-se de comer as entranhas, os membros, as poderosas mãos, a cabeça de pedra maciça. Comer as lembranças. E vomitar, aliviado.


[Marpessa]

6 comentários:

Bruno Domingues Machado disse...

Ótimo texto. Gosto muito desse assunto na literatura. E que situação, como você disse, paradoxal. Bastante inventiva também. Ainda há espaço para lirismo. :)

Anônimo disse...

Pois bem... Otto Rank, Ernest Backer e agora Marpessa de Castro.

Anônimo disse...

Desculpa, não assinei meu comentário anônimo aí de cima... rs

Júlio Castro
http://palavraacesa.weblogger.terra.com.br
http://oestro.blogdrive.com

Anônimo disse...

Muito, muito bom. Parabéns.
Vou voltar,

Márcia

http://www.tabuademares.blogger.com.br
http://www.mudancadeventos.blogger.com.br
http://alfabeto.blogspot.com

Anônimo disse...

Duro é o que acontece comigo: apenas me devoro, a cada dia, a cada momento. Mas não vomito! Vai juntando tudo dentro de mim! Meu medo é um dia explodir!

http://moacircaetano.blog.uol.com.br

Helder da Rocha disse...

Ah, a dúvida... A dúvida é como a dor do esforço, da aprendizagem. Incomoda, mas se ela não se cresce. O herói existe porque existe a dúvida, pois se tudo fosse certo, escrito, não precisaríamos dele, ou ele seria apenas um boneco, criado pelos deuses para nos da a ilusão da dúvida. O problema todo são as palavras, que querem ser certas, precisas, limitadas, quando o universo ilimitado encontra sua razão maior na dúvida, no caos e no acaso.

(muito interessante seu blog)