segunda-feira, outubro 25, 2004

O riso da estátua

Chego, agora, ao inefável centro de meu relato; começa aqui meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha tímida memória mal e mal abarca? - Jorge Luis Borges, “O Aleph”

De vez em quando, esquadrinhando pensamentos antigos e fortuitos, encontramos algumas lembranças que, à semelhança de trastes atirados a um canto do porão, permanecem pousadas nos recônditos da mente à espera de serem descobertas, sua poeira sacudida, umas mãos que as trarão à luz para aplicar-lhes a esquecida finalidade. Em silêncio, aguardam sob grossas camadas de pó, camadas estas que lhes conferem um ar de inutilidade, de esvaziamento da função original. É um engano em que corriqueiramente caímos; nada está perdido, nada é morto, e tudo é por princípio perigoso e instigante.

Pois um dia, possivelmente uma tarde velha dessas de quietude – estou quase certa de que era aquela hora sonolenta em que o mundo dorme sua siesta - , ingressei nos mistérios que moram nas estátuas. Eram quase felizes aqueles tempos, não fosse uma certa melancolia azulada, latente e contínua que, acredito, seja própria a todas as crianças. Quase felizes; as camadas mais profundas da psique, os desdobramentos, a multiplicidade da vida interior, tudo isso ia germinando e se formando dolorosamente em meu espírito. Estranho: eu sabia que a vida era assim mesmo e que dali para diante deveria ser ainda mais um eterno quase, sem resposta possível, sem revelação de completa felicidade que não estivesse ligeiramente maculada pelo azul desmaiado das minhas primeiras e sombrias agitações.

Olhando de longe, era uma estátua comum, uma espécie de querubim longilíneo, branco, contrastando com o vermelho dos ladrilhos rústicos do jardim que não era um jardim forrado de grama e sim coberto por ladrilhos vermelho-terra, cacos irregulares emendados com relativa harmonia e nenhum bom gosto. A casa era azul – sempre o azul – e quieta, dessas que não parecem ser habitadas. A estátua exibia-se impudicamente, sob vestes que mal a recobriam, afrontando a normalidade das casas sem estátua. Por que uma estátua, eu queria sempre saber. Por que colocaram uma estátua no jardim?, perguntava-me. Ficava ali, a uma distância segura. Jamais voltava-me, jamais olhava para trás, porque tinha muito medo de que a estátua se mexesse. Por não olhá-la mais que o necessário, ficava com a sensação de ter os olhos de pedra colados em minha nuca, e isso era não só assustador como, de certa forma, divertido e emocionante. Apertava o passo, sem jamais ultrapassar os passos do adulto que me acompanhava. Uma vontade incrível de voltar a cabeça... E sublinhar com os sentidos minha certeza de que a estátua estaria diferente, então.

Pois um dia entrei no jardim. Não sei com quem, nem para quê. O certo é que entrei e logo postei-me, admirada, diante da estátua. O que primeiro me surpreendeu foi sua cor; era um branco cinzento, poroso, típico do gesso. Havia pó nas dobras mais horizontais, e a estátua, por conta disso, desprendia um cheiro que eu associava aos dias de chuva pouco antes de chover. Toquei-a; era gelada, muito gelada, mas isso já era esperado. Minha segunda e maior surpresa foi o que vi no rosto. Os olhos eram vazios, dois globos brancos aprisionados em uma face sem dono. Olhos fantasmagóricos e estupidamente vazios, olhos que nada refletiam, que nada viam. Só que havia nesse rosto também um sorriso: a estátua sorria exibindo os dentes bem desenhados e retos, vincos no interior da boca, um sorriso fechado que acabou por matar a impressão de que os olhos nada viam. Eles viam, porque havia o sorriso.

Eu jamais vira uma estátua sorrindo. Assustei-me; o riso era silencioso e mórbido, estático e frio. Tudo estava centrado naquele riso acinzentado e duro, como se fosse então uma porta, a única porta para que eu pudesse enxergar todo o restante da estátua, todo o restante das coisas ao redor, todo o restante do mundo e depois me voltasse inteiramente para mim mesma e meu tamanho de criança, meus pensamentos de criança, e com que rapidez isso ocorreu! Foi vertiginosa essa fuga, essa estranha escapada dos meus sentidos, o deslocamento físico que me levou a ficar parada, muito parada, deixando-me atravessar pelas sensações e pelos registros da lembrança que jamais se apagou. Vi flores nas mãos dançarinas da estátua. Vi o passado, o presente e o futuro, sua alma aprisionada em um corpo de gesso, sempre a prisão branca e suja, os céus ficaram escuros de tempestade diante de meus olhos.

Era uma estátua, por princípio, má. Seu riso continha algo de muito obscuro, um saber secreto, uma vida oculta e rica em acontecimentos que, naquele momento, estavam congelados sob camadas de massa endurecida. Por que a sensação de solidão? Por que a idéia de ter sido abandonada naquele jardim estranho, diante da estátua? Tudo se calou enquanto a estátua chocava-se contra o céu escuro de tempestade. Se não fosse o riso... O riso, a qualidade do mal, a expressão de zombaria. Não havia naquele rosto nada das expressões etéreas das estátuas de cemitério. Nada do apelo infantil dos anjinhos gorduchos das gravuras. Nada de placidez, nada de paz imortal. Estava diante de uma estátua repleta de idéias travessas, de planos indecifráveis para quando viesse a noite.

Depois de vê-la bem, e depois de sair daquela casa, ficou-me a memória e seus pertences. Ficou a impressão de medo em mares calmos, o espírito sempre a deslizar por águas mornas, e estas águas mornas sempre a um passo de tornarem-se frias e revoltas. Ficou a iminência de qualquer coisa, eu na pontinha dos pés diante de um grande precipício, o qual imaginava marrom, imaginar fazia minhas pernas doerem. Vou cair? Em meus sonhos era a estátua que me derrubava, não porque estivesse próxima a mim, e sim por que eu a podia avistar do outro lado do precipício, ou lá no fundo, imóvel e com seu sorriso ainda maior do que era na realidade. Chamava-me com voz melíflua e doce, a serpente que hipnotiza o pássaro. Chamava-me sem falar. Por toda a vida tem me chamado sem falar.

[Marpessa - não-ficção]

4 comentários:

Anônimo disse...

Adentrei, moribundo, na Cada dos Espelhos. Espelhos que refletem os meus olhos que refletem o meu rosto que refletem a mim que refletem o meu ser. Ser? Não sei se sou. Serei, talvez. Fui, quem sabe. Se somos todos estátuas de um jardim móvel? Não sei. Um anão de jardim ou uma ninfa de chafariz pode guardar segredos ter'ríveis e doces ocultos nas folhagens... só sei que quero ficar nesse jardim. Ou nessa Cada dos Espelhos.
"Espelho, espelho meu, existe alguém mais transparente do que eu?"
Abs felizes pelo encontro.

Anônimo disse...

Ora, Marpessa!!
Eis aqui um jato forte de aguá fresca em meio a sede do deserto. Queima um tanto só a pele mas refrigera a alma e os poros secos do corpo. De fato, oriundo de minha pouca fé, digo que isso sim é o verdadeiro verbo divino. Tua escrita cativa.

Júlio Castro
http://oestro.blogdrive.com

Anônimo disse...

Bravo, Marpessa! Bravo.
Um dos melhores textos que li ultimamente.
Agora, eu retiraria o não-ficção. É desnecssário até porque, o mais real dos fatos quando escrito, ganha alguma cor diferente do original. Senão pelos ao olhar do escritor, decerto, ao do leitor.
Vou por seu link lá nos meus blogs, tá?
Um beijo,

Márcia

http://www.tabuademares.blogger.com.br

http://www.mudancadeventos.blogger.com.br

http://alfabeto.blogspot.com

Anônimo disse...

Um dos carros-chefes do livro.
Agora, ôlho grande se ninguém vai copiar.
O Conto é maravilhoso, como da primeira vez.