terça-feira, outubro 05, 2004

Quatro

Começou assim: com uma inocente atração. Um olhar mais atento, apenas. Quase como uma torta de limão que namoramos em uma vitrine, e que sempre que passamos diante da doceria, torcemos o pescoço e espiamos na prateleira se por acaso a torta de limão está lá (que deverá ser outra e outra, nunca a mesma, se a doceria for honesta e vender produtos frescos). Então, eu estava atraído pelo número quatro.

Passei a dar quatro passos de cada vez, contando-os um, dois, três, quatro, um, dois, três, quatro, concentrando-me em sempre pisar cada número com o mesmo pé, em todas as vezes. Naturalmente, evitava pisar em linhas entre os ladrilhos das calçadas, porque jamais gostei de pisá-las, mesmo, isso pouco tem a ver com o número quatro, mas dá um panorama mais geral do meu comportamento naquele tempo. Era uma criança com manias.

Voltando ao assunto: contava os ladrilhos de quatro em quatro, olhando firme para o chão com o propósito de evitar as linhas. Quando falhava, ajeitava o passo como os membros de uma fanfarra, ao se atrapalharem com os pés na marcha “esquerda, direita, esquerda! esquerda, direita, esquerda!”. Tudo em minha vida ia muito bem, mesmo quando recusava-me a comer “três” ou “dois” pedaços de frango, ou “um” pêssego; cortava-os até obter quatro pedaços menores ou pelo menos um múltiplo satisfatório, como o oito, o doze, o dezesseis. Mantinha quatro lápis no estojo, e muito me agoniava ter cinco livros para levar à escola. Se fossem dois, ao menos! Números ímpares eram assustadores.

Os anos correram e quando vi estava adulto. Não devo aqui enumerar todos os novos fatos referentes aos meus sentimentos em relação ao número quatro; basta dizer que houve muita novidade e avanços nesse terreno. Posso exemplificar com as quatro namoradas, quatro exemplares do mesmo livro, oito pares de sapato e dezesseis camisetas. Era perfeitamente possível viver em função de um algarismo, eu provara, uma vez que minha mania não fazia muita distinção entre o objeto e seus derivados. Vinte, vinte e quatro, vinte e oito, eram tão bons números quanto o próprio quatro, isso eu achava de verdade e portanto não me incomodava.

O interessante era que ninguém, ninguém percebera nada disso. Eu nunca falava a respeito, e todos os meus amigos, minha família, estavam longe de conhecer esse traço que me caracterizava no mais fundo do meu ser. Todos tão desatentos! Acho mesmo que só vieram a saber muito depois, e tarde demais, é claro; de qualquer forma, preferiram o silêncio.

Ao participar do assalto, o primeiro erro foi que decidi por conta própria arrombar quatro apartamentos em vez de três. O quarto domicílio era de um policial, e fomos todos presos - eu e mais três. Confessei mais do que precisava (segundo erro) e ganhei belos oito anos. Não pretendo pedir apelação, já que o quarto aniversário de cadeia já passou. Estou no quinto ano, e por isso tento preenchê-lo o mais possível para que passe logo. Escrevo, pinto quadros, faço miniaturas de papel. Tenho uma grande coleção de miniaturas aqui, guardadas em quatro caixas de sapato.

Por isso fui pego. Minha história não é patética? Por que não revelei aos outros o que me acontecia? Era mais forte do que eu. Ainda é mais forte do que eu, porque nada faço aqui se não for de quatro em quatro. Temos quatro na cela, veja só que sorte a minha. Morro de medo de que enfiem mais um. Terei que clamar por outros três para conseguir dormir, conseguir viver, concentrar-me em minhas atividades. Nenhum diretor de presídio entenderia o meu problema, e então eu teria que me conformar. Conseguiria, assim, curar-me? Não posso saber, nem sei se quero, essa mania é minha, é a única coisa de minha-somente-minha que possuo. Não vão tirá-la de mim tão facilmente.

Para finalizar, crio este oitavo parágrafo (bom múltiplo, mas inferior ao dezesseis). Como nada mais desejo dizer, ficará quase em branco. Sua existência já diz muito. É preciso que exista.

[Marpessa]

2 comentários:

Anônimo disse...

De fato seria este o destino de Melvin Udall caso não fosse um escritor... Construção fabulosa da personagem.

Júlio Castro

Anônimo disse...

Não piso nos riscos da calçada.
Nem nos buracos.
E sempre conto os degraus das escadas que subo.
Destesto números ímpares.
Exceto o cinco e seus múltiplos.
De resto, tudo tem que ser em número par.
E detesto o número 111.
111 foram os mortos na Casa de Detenção no Carandiru.
E esse número me persegue.
O vejo pr todo o lado, todo o tempo.
Para os que duvidam, e convivem comigo, mostro sempre quando eles me aparecem.
Mas não sou louco!
(Será???...)