sábado, novembro 13, 2004

fragmento encontrado num HD. não me lembro de ter escrito este texto. espero que seja realmente meu, e deve ser, porque alguma coisa nele me soa muito familiar.

Foi dentro de um sonho que vi você pela primeira vez. Seus olhos eram claros – não sei se verdes – e seus cabelos estavam curtos. O rosto que vi não foi o rosto que adivinhei, antes de finalmente contemplá-lo; era uma outra coisa, outros traços que guardavam apenas uma dolorosa semelhança com aquele rosto que adivinhei e depois perdi no fundo do meu sonho. E isso é o mais estranho: não sei de você nada além do que quis mostrar-me ontem à noite.

Em meu sonho, você me procurava, todos diziam “ele a procura”, e quando nos esbarrávamos em alguma esquina, em algum café, em um bar qualquer, nos compreendíamos. Eu ansiava por estes vagos encontros, e estou certa de que você também ansiava por eles. Mas a nós era impossível entender o porquê. Éramos conhecidos e estranhos, díspares e iguais.

Sua respiração, seu beijo, essas coisas que são sempre maiores e mais profundas do que parecem, essas coisas que são enigmas, lagos imensos, solidão ampla e inexaurível, essas coisas se escondem para surgirem onde menos imaginamos. Era apenas um sonho, afinal. E você estava nele, e eu estava nele, e sua respiração e seu beijo me fizeram lembrar de coisas tão antigas quanto impossíveis, pois um milagre estava nascendo ali entre os nossos lábios unidos. Subiu-me o sangue e com ele a antevéspera de minha existência, o tempo em que nada havia, nem eu mesmo havia, um tempo, umas flores amarelas.

Acredita-me? Você sabe de tudo. Estava me procurando porque sabia, sabia do beijo e do milagre, conhecia cada dobra dos meus pensamentos e veio abrindo caminho por entre as fendas do tempo para cair justamente dentro do meu sonho. Uma primeira vez e você, tão furtivo quanto angélico, encontrou-me – como se tivéssemos mesmo marcado um encontro nos confins de um sonho qualquer.

A segunda vez que o vi, você apareceu-me como um invasor que arromba uma casa no meio da tarde, uma tarde de chuva, para misturar-se aos outros invasores, ocultar-se em meio a eles e por fim derrotá-los de modo irremediável. Seus cabelos estavam crescidos, castanhos, e estávamos tão juntos quanto duas pessoas podem estar. Olhos azuis? Desta vez me pareceram azuis. Foi rápido demais; logo você sumiu sem dizer adeus, um fantasma cuja imagem fixou-se acidentalmente graças a uma fotografia Kirlian.

[Marpessa]

2 comentários:

Anônimo disse...

Deliciosamente triste...

http://moacircaetano.blog.uol.com.br

Nora Borges disse...

Uma fotografia Kirlian da alma e seus desejos.