quinta-feira, dezembro 30, 2004

Z e p h y r u m

Sou um nada. Jamais alcancei ultrapassar esta condição; nem mesmo ao lado de outros torno-me melhor ou dão-me nome diferente (aproveito para dizer que meu nome tem sido usado desde sempre de modo pejorativo, indicando um estado de existência ora nula, ora maldosamente parasitária). Tal condição está longe de ser confortável. Sempre desejei dar ao mundo alguma contribuição, mas a despeito de meus esforços permaneço dolorosamente isento de significado.

Dizem que a vontade pode superar tudo, até mesmo os desígnios divinos, dando-lhes novo formato, torcendo-lhes o rumo, muitas vezes de modo favorável. Deixei de acreditar nisso no momento em que, resolvido a exercer minha vontade, olhei-me em um espelho para tentar descobrir o que havia em mim que pudesse servir de fio condutor para uma nova condição. O que vi, no entanto, foi um frouxo conjunto de ausências sobrepostas. A realidade se impôs, com seu peso e textura insuportáveis.

Falácias e tratados, volumes e análises, cálculos e fórmulas, não têm me ajudado a compreender. Tais construções do intelecto passam por mim como o vento entre as grades de ferro de um portão. Por onde quer que eu ande, errando entre os homens, sou apontado por dedos de indisfarçável escárnio. Permaneço mudo, à espera de que façam de mim o que quiserem, porque só nestes momentos tenho a ilusão de estar sendo algo mais do que tenho sido.

Noite passada sonhei. Estava em uma planície viçosa, porém estranhamente vazia. Um caminho reto e traçado a tinta me indicava por onde deveria seguir. De súbito, surgiu à minha frente outro caminho, desta vez vertical e se perdendo no céu. Não havia meio de prosseguir pela planície. Tampouco pude escalar a rota ascendente, posto que não havia degraus, imprescindíveis para subir ou descer. Fiquei parado, à espera. Silenciosamente, começaram a brotar, em ambos os caminhos, pequenos pontos sem forma definida. Estes pontos se multiplicavam com muita rapidez, antes que eu os pudesse interpretá-los. Perdiam-se nos horizontes acima e adiante. De repente, pararam.

Uma quietude sombria se fez, envolvendo-me em um desespero surdo, uma angústia indescritível. Tentei mover-me, mas uma dor agudíssima nas costas impediu-me. Que era aquilo? Para baixo, como em busca do centro da Terra, um caminho descendente apareceu, e atrás de mim outro caminho ia sendo desenhado. Quatro caminhos e eu no cruzamento deles, sem poder avançar ou retroceder. Nessa prisão instantânea, subitamente compreendi que estava na origem de um grupo de retas e que cada um dos pontos que vi surgindo eram, de fato, números. Cada número comportava outros e outros, infinitos. Era natural, portanto, que eu fosse obrigado pela névoa do sonho a permanecer imóvel. Sim, fazia sentido e as coisas estavam todas em seus lugares. Tal compreensão acabou por me despertar.

Não teria sido isto um aviso? Ao acordar, no meio da madrugada, abri minha trouxa e dela retirei um pedaço de pão. Mastiguei-o com cuidado, sentado na calçada fria, enquanto remontava na vigília o que vivera no sono. Matando a fome, enterrei minha esperança: o sonho era o espelho da vida, a vida reflexo do sonho. Eu nada mais podia esperar, uma vez que estava condenado a chorar no vértice de um grupo de retas paralelas e perpendiculares, o limite máximo de minha alma. Entendi, então, que ali onde estava era o meu lugar, o único possível. Meu nome me predestinara a esta condição. Ergui-me da calçada, ajeitei meus trapos e com grande esforço segui em frente, com a certeza maligna de que não iria muito longe. Eu voltaria, ainda naquela noite e em todas as outras, obedecendo humildemente ao chamado do mundo.

[Marpessa - publicado originalmente no Aquele de Quem lhe Falei, edição n.0]

Um comentário:

Márcia Maia disse...

Atordoante. Um soco. Um 2005, jóia. E meu beijo.