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Lady Catherine suicidou-se, situação inquestionável porque fora encontrada pendurada pelo pescoço, o corpo ainda quente. A bela dama deixara um bilhete enigmático, mistério para família e polícia. Os jornais exploraram o caso, especularam, armou-se um escândalo; o que ninguém soube, no entanto, é que no espelho de lady Catherine havia uma aranha.
Não nos caberá, aqui, questionar as falhas das leis naturais, as surpresas e o constrangimento que provocam tais leis quando falham. Um dia a moça olhou-se no espelho e avistou a aranha grudada nele, bem no lugar onde o aço refletia seu olho direito. Não era uma aranha grande, mas ocupava todo o espaço do olho direito de lady Catherine e lady Catherine não gostou de ver seu olho direito sendo ocupado por uma aranha que nem era tão grande assim.
Com uma folha de jornal enrolada, aproximou-se do espelho enquanto a aranha, apesar de imóvel, passeava sobre seu rosto refletido, dos olhos à boca, da boca ao queixo, do queixo à garganta. Trêmula, a aranha deslizava sem querer sobre o reflexo, e o reflexo estava agora encolerizado. Mas, em vez de bater o jornal na aranha, lady Catherine aproximou o rosto do espelho, ficando assim a uns quinze centímetros de distância do inseto que neste instante voltou a ocupar o olho direito de lady Catherine sem no entanto preenchê-lo completamente como antes, posicionando-se sobre a pupila.
Era possível enxergar o movimento das quelíceras. O corpinho rajado pulsava em silêncio, lady Catherine em silêncio sentiu pena da aranha e durante dois minutos nada aconteceu. Então, o olho direito de lady Catherine começou a mover-se pelo espelho, primeiro subindo, depois andando mais à direita, desenhando uma curva irregular para depois tornar a subir, sem pressa, é verdade, e até parando por alguns segundos antes de empreender algum movimento mais complexo.
Horrorizada, lady Catherine via com seu olho esquerdo o caminhar seco de seu olho direito, sem que pudesse tomar nenhuma providência a não ser matá-lo com o jornal que estava ainda em sua mão, matá-lo antes que fosse tarde, evitar a todo custo o desastre social e moral. Apavorou-se ainda mais quando viu seu olho quase abandonando a superfície do espelho para na certa alcançar a parede e depois o teto. Era necessário impedi-lo.
O bilhete final de lady Catherine era bastante mal escrito, posto que a dama havia cometido um assassinato e estava prestes a suicidar-se. Por tudo isso, é certo que não estivesse em condições de enxergar com clareza as linhas por onde corria a pena – lembrando que lhe restava apenas um olho, o esquerdo. Era como uma dança, as letras tremidas, irregulares, se acabando repentinamente, como se a pena houvesse escapado para fora da superfície branca, das linhas azuis. E se no bilhete lady Catherine falara em aranha, ninguém soube notá-lo, assim como ninguém pôde compreender por que razão havia escrito três vezes, em tão acanhado pedaço de papel, a palavra fome.
[Marpessa - publicado na edição #5 do Aquele]
2 comentários:
Olá! Belo texto, começa muito bem. Acho, porém, que do terceiro parágrafo em diante, perde o ritmo, perde a ironia bizarra da situação. A meu ver, os tempos verbais perdem a clareza, e já não sabemos se estamos ouvindo um narrador "pos-mortem" de Lady Katherine ou se retornarmos para vê-la manipular o jornal. De qualquer forma, parabéns pela criatividade. E para te possibilitar uma "réplica" (caso deseje) visite-me no "Contos & Crônicas - Ragazzo di Famiglia" - http://ragazzodifamiglia.zip.net. Será um prazer tê-la por lá. Grande abraço, Ragazzo. (email: ragazzodifamiglia@yahoo.com.br)
O tal Ragazzo nada sabe. Era disso que eu falava naquele dia. Estórias a contar. Perfeito, dona Marpessa. Perfeito.
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